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3.3 Elementos da commedia dell'arte

3.3.4 Dom Quixote: Ator-Autor

Na obra de Cervantes, a personagem Alonso Quijana funciona como um autor e também ator nos moldes da commedia dell'arte. Ele utiliza os romances de cavalaria como se fossem um scenari para construir sua personagem – o dom Quixote – e estabelecer um jogo cênico com as demais personagens fazendo com que, dessa forma, se desenvolva toda a narrativa cênica da forma como ele entende ser semelhante aos romances de cavalaria, dando a parecer às demais personagens da obra, e também aos seus leitores, que ele seria um louco. Carlos Arturo Arboleda, sendo citado por Héctor Urzáiz, esclarece esse aspecto dizendo que:

[...] «a loucura» de Dom Quixote, sobre a qual tantas páginas se escreveram, poder-se-ia ver como um estado racional consciente dentro do qual Alonso Quijana se comporta como comediante profissional. O que parece «loucura» é no fundo uma entrega absoluta a outra vida. Também os comediantes «dell arte» italianos utilizaram técnicas («jogos») similares para fazer mais «efetivas» suas improvisações. Fazer teatro é um jogo, mas um jogo sério, tão sério que parece outra realidade.146

A partir da reflexão de Arboleda, percebe-se que dom Quixote, dessa forma, vai criando outra realidade e vai transportando as demais personagens, assim como os leitores/espectadores, para ela. Para compreender o que ele diz e entender as ações praticadas por ele, é necessário saber que o seu "scenari" tem como base a cavalaria andante e, a partir daí, entrar no jogo proposto, assim como feito pelo duque e a duquesa.

Outro exemplo disso é o episódio da princesa Micomicona, em que se tem o seguinte artifício: o padre, amigo de dom Quixote, pede que a personagem Doroteia  uma donzela que eles conhecem em seu trajeto de busca do engenhoso fidalgo  se

carnaval de Milão, por isso seria possível que ele já houvesse assistido alguma representação da companhia I Gelosi.

146 ARBOLEDA, 1991, p. 47 apud URZÁIZ, 2007, p. 474, tradução minha. "[...] «la locura» de Don Quijote, sobre la cual tantas páginas se han escrito, se podría ver como un estado racional consciente dentro del cual Alonso Quijano se comporta como comediante profesional. Lo que parece «locura» es en el fondo una entrega absoluta a otra vida. También los comediantes «dell arte» italianos utilizaron técnicas («juegos») similares para hacer más «efectivas» sus improvisaciones. Hacer teatro es un juego, pero un juego serio, tan serio que parece otra realidad."

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passe por uma suposta princesa de um reino denominado Micomicón. Sua missão era convencer dom Quixote de que um cruel gigante havia invadido seu reino e somente o cavaleiro manchego seria capaz de expulsá-lo de lá. Com essa artimanha, o padre faria que, ao investir em tal empreitada, ele rumasse de volta para sua terra e, assim, conseguissem mantê-lo por lá, de forma tal que ele abandonasse, temporariamente, sua "loucura", dando fim à sua segunda saída. Para interpretar tal princesa, Doroteia se vale dos romances de cavalaria, já que: "[...] ela havia lido muitos livros de cavalaria e conhecia bem o estilo que as donzelas em desgraça tinham quando pediam mercês aos cavaleiros andantes" (CERVANTES, v. 1, cap. XXIX, 2012, p. 358). Mais a frente se desenvolve um diálogo entre o padre e Cardênio em que afirmam que dom Quixote é capaz de improvisar, a partir de uma proposta que contenha argumentos, sobre a cavalaria andante.

 [...] Mas que coisa estranha, não, ver com que facilidade este fidalgo desgraçado acredita em todas as invenções e mentiras, só porque têm o estilo das tolices dos livros dele?

 É, sim  disse Cardênio.  Tão incrível e esquisita que não sei se alguém, querendo inventá-la e vivê-la fantasiosamente, teria imaginação tão afiada que pudesse topar com ela.

 Mas há outra coisa nisso  disse o padre.  Excetuando-se os absurdos que esse bom fidalgo diz que no que se refere a sua loucura, argumenta muito bem se tratam com ele de outras coisas e mostra ter uma mente clara e serena; assim, se não se falar de cavalaria, não haverá quem o julgue sem juízo.147

A reflexão das duas personagens é sobre o fato de que dom Quixote possui uma grande capacidade de improvisar a partir do "argumento"148, ou seja, acerca da cavalaria

andante. Isso se dá pelo fato de que ele tem amplo conhecimento sobre o assunto, de tal forma  como eles mesmos chegam à conclusão  que uma pessoa sem a mesma base que ele seria incapaz de criar essa fantasia e, dessa forma, ser capaz de improvisar tão bem sobre o tema. De acordo com Arboleda (novamente sendo citado por Urzáiz), dom Quixote se assemelha aos comediantes dell'arte.

Igualmente a estes comediantes [italianos], Dom Quixote é um ator profissional. Quando dizemos que Dom Quixote é um ator profissional, pensamos nesta grande capacidade que possui para inventar improvisadamente a grande maioria das cenas que ao largo de

147 CERVANTES. Dom Quixote, v. 1, cap. XXX, 2012, p. 378.

148 Na commedia dell'arte, o argumento "condensa a ação e o contexto anterior à ação cênica; enumera personagens e ‘coisas’ necessárias à encenação, menciona o lugar geográfico da ação" (BARNI, 2003, p. 41).

102 sua representação vai desenvolvendo e na maneira como se entrega a esta difícil tarefa da improvisação.149

Pode-se dizer, então, segundo esses autores, que a imaginação de dom Quixote, no que se refere às coisas que leu nos romances de cavalaria, era tão aguçada que ele era capaz de criar situações  parecidas com as dos canovacci  que o assemelhavam aos atores improvisadores da commedia dell'arte.

Nota-se também que Doroteia se vale de um artifício teatral ao interpretar uma personagem dentro da narrativa. Assim como dom Quixote, ela se baseia nos livros de cavalaria para realizar sua improvisação. Porém, é interessante perceber que não é ela que propõe o jogo cênico ao fidalgo  como Cervantes faz parecer, mas, sim, dom Quixote, a partir do momento que é ele quem traz o "argumento" da cavalaria andante para a história, como mostra Urzáiz citando Arboleda.

Para por em cena seu espetáculo, Alonso Quijana necessita de uma companhia de atores e atrizes. Da mesma forma que os atores-autores da commedia dell'arte italiana, ele também é autor e ator. Como autor será encarregado de criar todo o espetáculo e como ator, o encarregado de representar o personagem central, Dom Quixote. Desta maneira, Alonso Quijana vai pouco a pouco construindo sua própria companhia. O primeiro que faz é localizar seu traje ou vestuário e todo o adereço que o identifique com o fidalgo que tem em mente representar.150

Dessa forma, como mostra Arboleda, dom Quixote vai se utilizando das demais personagens da obra para compor seu espetáculo: "improvisado", como a commedia dell'arte propõe. Além do improviso, ele vai trazendo outros elementos teatrais para incorporar a sua encenação, como o figurino e os adereços que ele julga serem similares aos presentes nos livros de cavalaria. Há, ainda, outros elementos presentes na obra de Cervantes que vão ao encontro de uma construção literária nos moldes da commedia dell'arte. É muito provável que ele tenha absorvido grande parte desses elementos ao

149 ARBOLEDA, 1991, p. 47 apud URZÁIZ, 2007, p. 475, tradução minha. "Al igual que estos comediantes [italianos], Don Quijote es un actor profesional. Cuando decimos que Don Quijote es un actor profesional, pensamos en esa gran capacidad que posee para inventar improvisadamente la gran mayoría de las escenas que a lo largo de su representación va desarrollando y en la manera como se entrega a esta difícil tarea de la improvisación."

150 Ibidem, p. 474-475, tradução minha. "Para poner en escena su espectáculo, Alonso Quijano necesita de una compañía de actores y actrices. Al igual que los actores-autores de la commedia dell'arte italiana, él también es autor y actor. Como autor será el encargado de crear todo el espectáculo y como actor, el encargado de representar el personaje central, Don Quijote. De esta manera, Alonso Quijano va poco a poco construyendo su propia compañía. Lo primero que hace es localizar su disfraz o vestuario y toda la utilería que lo identifique con el hidalgo que tiene en mente representar."

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assistir representações de companhias de grande fama na Europa, conforme documenta Héctor Urzáiz em seus estudos.