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2.3. Uma leitura de Adorno

2.3.2. A obra musical e o objeto notado

O século XX trouxe uma grande quantidade de transformações para a estética musical. Se na produção da música tonal os compositores produziam a partir de um único sistema, a nova música ampliou os sistemas, permitindo ao compositor a tarefa de criar o seu próprio sistema.

A profusão de novas formas de organização da música teve reflexo nos intérpretes, que se viram diante de um repertório novo, sem muito tempo para adaptações. Trata-se de um intérprete proveniente da prática romântica, acostumado à textura tonal, aos temas, à melodia bem definida, ao percurso de tensão musical muito claro, elementos musicais que, se não foram totalmente erradicados, sofreram transformações muito drásticas. Se hoje ainda temos dificuldades em interpretar a música do século passado, os intérpretes responsáveis por este repertório então contemporâneo

certamente tinham também. Ravel bradava que "não estava pedindo para a música ser interpretada, mas somente tocada" (WALLS, 2002, p. 17).

Esta dificuldade em entender o novo repertório, aliada à prática da interpretação do repertório romântico, provoca duas reações por parte dos compositores: houve um aumento acentuado do detalhamento do texto musical, as partituras passaram a apresentar um número maior de signos e os compositores passaram a defender mais veementemente uma leitura mais literal da partitura.

Podemos tomar Stravinsky como um representante destes compositores, que muitas vezes viam suas idéias completamente "destruídas" nas mãos de determinados intérpretes, alertando : "o pecado contra o espírito da obra sempre começa com um pecado contra sua literalidade, e leva às intermináveis loucuras que uma literatura sempre florescente, do pior mau gosto, faz o possível para sancionar" (STRAVINSKY, 1996, p. 113). Ele continua, dizendo que "a música deve ser transmitida e não interpretada, porque a interpretação revela a personalidade do intérprete mais do que a do autor, e quem pode garantir que um determinado executante refletirá a visão do autor sem distorção?” (WALLS, 2002, p. 17). Stravinsky estava propondo uma mudança na interpretação vigente, formada pelo romantismo. Ele propunha uma leitura mais literal, a restrição à personalidade do intérprete, defendendo que não há o que procurar nas notas senão o que está lá, bastando tocá-las corretamente para se realizar a obra.

Entretanto, as diferenças entre compositores e intérpretes sempre existiram ao longo da história, pois estes desvios fazem parte da música: "o

desvio entre a partitura e o resultado sonoro é tão grande que a notação não pode ser pensada como uma imagem válida da obra" (NATTIEZ, 1990, p. 79). Nas palavras de Adorno, "nunca e em passagem alguma o texto musical notado é idêntico à obra"; para ele ser fiel ao texto é preciso captar aquilo que está oculto, senão "a fidelidade transforma-se em traição" (CARVALHO, 2005, p. 210). A busca deste sentido oculto deve ser uma preocupação da interpretação, pois não se pode considerar que um texto musical revela-se a partir de si mesmo. Deve-se considerar que ele é "algo que ainda tem de constituir-se a si próprio" (ibidem, p. 210-211).

Se fizermos uma comparação com a poesia, poderemos entender um pouco melhor o que se quer dizer com "constituir-se a si próprio". A poesia permite uma performance; no entanto, ela não é absolutamente necessária, visto que o texto poético escrito já está num formato sensivelmente captável: qualquer um pode tomar o livro, ler e interpretar de acordo com seu universo cultural.

Já o texto musical precisa de algo de fora, precisa necessariamente da performance para converter os signos da partitura, sem sacrificar o que está e o que não está escrito, o oculto. O texto musical precisa do intérprete, que é o responsável pela zona de indefinição na notação musical. Desta forma, não podemos dizer que o texto musical está completo, uma vez que, sem o intérprete, ele não passa de uma folha de papel; isso quer dizer que a música só se constitui verdadeiramente como texto através da interpretação (Adorno, 2006, p. 181).

Mas a necessidade do intérprete lança um problema para a escrita musical, inexistente na poesia, fazendo com que a partitura seja um "enigma

insolúvel" e, ao mesmo tempo, o "princípio da resolução do enigma" - expressões de Adorno. É um enigma, pois nunca se encontrará uma solução, cada intérprete achará a sua; e o princípio da resolução está nos próprios signos, que são o que permite alcançar a música propriamente dita. O trabalho do intérprete, em relação à escrita, é mergulhar no texto notado e adquirir um conhecimento que torne possível transformar a indefinição, que é uma essência do texto, em uma definição que torne a obra legítima (ibidem, p. 241) e concreta. Assim, pelo caminho inverso, a obra, no momento de sua execução, não se confunde com o texto notado. O texto é um componente; a obra, porém, possui uma objetividade, uma existência que legitima a definição do texto escrito, ou seja, cria uma identidade entre a partitura e a performance.

A partitura como um enigma; seu estado de definição ou indefinição; a objetividade (existência) da obra e sua historicidade interna são os pontos que servem de referência para a abordagem da interpretação como um problema, segunda a análise de Adorno.

Se compararmos a escrita musical com a escrita da fala temos em comum que ambas são sistemas de signos. Entretanto, a diferença básica entre elas é que a escrita musical não tem a possibilidade de formar complexos sonoros que possam significar coisas ou objetos, o que é possível com as palavras. Adorno considera a escrita musical como uma escrita não- intencional, o que faz da música uma linguagem não-intencional, pois sua interpretação/performance ocorre no terreno qualitativo e não no simbólico, ou seja, a música atua no nível das sensações (ibidem, p. 168). Mas para a música se organizar é preciso um elemento articulador que possa ser

organizado sob o ponto de vista de uma certa lógica; Este elemento é o mimético.

Em grego, mimeses que dizer imitação ou representação, e tanto para Platão como para Aristóteles significava a representação da natureza. Entretanto, para Platão, qualquer criação é uma imitação das coisas verdadeiras que estão no mundo das idéias. Dessa forma, o processo de criação artística seria uma imitação de segunda mão, pois a arte imita a natureza do mundo dos homens. Já Aristóteles via o drama como sendo a imitação da uma ação. Como rejeita o mundo das idéias de Platão, ele considera a arte como representação do mundo (Auerbach, 1996, p. 522).

Podemos tomar a música dos Pigmeus como exemplo de como era sua relação com o mundo que estava ao seu redor. Se a música de concerto de hoje é algo abstrato e sem um simbolismo direto, para os Pigmeus era a forma de se relacionar com a natureza e ao mesmo tempo tentar compreendê-la. Sua atitude era bem simples: copiar as ações de seu cotidiano. Desta forma, músicas como "Chegada da chuva no acampamento", ou "A caçada do elefante", tentavam recriar sonoramente estas situações.

Sob este aspecto, para Adorno a música é uma linguagem puramente mimética, tanto livre de um objeto concreto como da significação. Ela é um gesto organizado segundo uma lei, um gesto acima do mundo corporal, um gesto sensorial. No entanto, quando a música subiu aos palcos das salas de concerto européias, deslocou o elemento mimético para a periferia da construção musical. Mesmo assim, os traços deste elemento ainda podem ser encontrados no nível partitura, da notação. Assim, segundo Adorno, os

signos musicais, tomados pela ambiguidade e pela transitoriedade do gesto, são "imagens de gestos" e a notação teria surgido para fixar a prática mimética, quando a memória desta já começava a desaparecer das práticas musicais (Adorno, 2006, p. 171).

O surgimento da notação da música da Igreja Católica na Idade Média demonstra esta transformação. Os primeiros sinais desta escrita do século IX, que evoluiria até a escrita da música ocidental moderna, eram traços pequenos e curtos, que indicavam apenas se a voz deveria ir para o agudo ou para o grave. Até então, a memória dos padres cantores era suficiente para manter a tradição do canto gregoriano. No entanto, sua difusão pelo continente europeu e seu uso como instrumento unificador da doutrina católica começaram a prescindir de uma notação mais esclarecedora. Nas palavras de Candé, "resolveu-se ajudar a memória dos cantores, colocando acima das sílabas do texto signos que sugeriam o movimento da melodia". Os chamados Neumas primitivos não eram mais do que lembretes, mas, "no início do século X, em razão de um curioso sentimento de analogia entre sensações visuais e auditivas, imagina-se colocar os signos em alturas diferentes, conforme correspondam os sons mais ou menos agudos. Com este processo obteve-se uma "uma guirlanda de Neuma cujo movimento pode provocar a 'curva' da linha melódica" (CANDÉ, 2001, p. 205-206).

Uma questão importante, da notação no processo de unificação do culto católico em torno do canto gregoriano, é a necessidade de dominação de classes. Mais do que preservar um passado musical, passado que nunca poderia ser recuperado pela notação extremamente vaga da época, a escrita tinha a função de disciplinar a prática musical, ou seja, fazer com que todos

falassem "a mesma língua". A intenção era que a tradição musical - devemos lembrar que a missa era totalmente cantada - não fosse modificada pela necessidade de expressão das massas, forçando-as à mera transmissão da tradição, o que era chamado de escola da obediência (Carvalho, 2005, p. 213).

Se retornarmos à defesa de Stravinsky por uma leitura mais fiel da partitura, podemos traçar um paralelo com o canto gregoriano. Mas neste caso temos uma defesa de uma estética, um pensamento muito individualizado dos compositores do século XX, que na maioria das vezes não era compreendido por intérpretes impregnados dos maneirismos românticos. Estes fatos levam Adorno a acrescentar um elemento antimímico, definindo a notação com uma síntese de elementos divergentes; se por um lado ainda restam traços do mimético, por outro ele acrescenta o antimímico como sendo o significacional e racional.

O racional, na música, são os elementos da escrita que se desenvolvem ao longo de sua história e a aproximam da escrita da fala. A presença de elementos simbólicos - os sinais gráficos de alturas, ritmos, dinâmicas... - afasta definitivamente o elemento mimético e aumenta a autonomia da partitura em relação ao criador. Esta autonomia provoca uma perda da memória e é fundamental para a interpretação:

A notação expropria a memória, na medida em que a auxilia: ela constitui o primeiro passo para a socialização da memória. A notação quer que a música seja esquecida, para fixar e gravar na memória: trata-se de a transformar na repetição idêntica, na reificação, transformação em coisa, do gesto, À eternização da música pela escrita pertence um momento mortal:

aquilo que ela, escrita, detém, torna-se simultaneamente irrecuperável (Adorno, 2006, p. 172). Siohan reforça este pensamento ao considerar a partitura um mero artefato auxiliar à memória. Ele diz que "o signo musical, enquanto elemento gráfico, não é música, nem um reflexo, mas somente uma ferramenta mnemônica" (SIOHAN, 1962 apud NATTIEZ, 1990, p. 71)

A notação pretensamente assume para si a responsabilidade de manutenção da memória musical. Acredita-se que ela tenha o poder de transmitir um pensamento musical sem a necessidade da presença do compositor. Elemento virtualizador da música e da memória, a partitura começa a ser editada e distribuída em larga escala no classicismo.

O esquecimento da música é o esquecimento das práticas interpretativas pertencentes a ela, de forma que, neste ponto, Adorno concorda com Gadamer, que defende uma absoluta coincidência temporal entre a obra e o ouvinte, acreditando que, por maior que seja a consciência histórica, esta relação ainda assim permanece imutável. Para ele, praticamente não há uma herança histórica em uma obra quando ela está fora de seu tempo, sendo que o ouvinte sempre deve ser um contemporâneo do compositor (Gadamer apud Carvalho, 2005, p. 208-209).

A impossibilidade de se recuperar a música em sua origem através da escrita cria uma situação de utopia para a interpretação. No entanto, esta impossibilidade é justamente a chave para a dialética entre o "rigor" da partitura e a "liberdade" da interpretação; ou seja, a música só se desenvolveu em direção à autonomia e agregou toda uma gama de expressividade através da mediação gráfica, da partitura, que a tornou disponível, praticável, acessível às pessoas em geral e desmemoriada, o que

cria um horizonte para a interpretação. Por outro lado, a partitura "reifica" a música, a transforma em uma coisa qualquer, privada de qualidades e individualidades, em um objeto de consumo sem personalidade que, sem a presença da memória como suporte, torna-se algo para uso.

O desenvolvimento da notação, na tradição musical européia, acentua esta dialética e apresenta uma "visualização", herdada dos antigos Neumas, que está ligada à idéia de gesto musical. A escrita torna possível visualizarmos o gesto, descrevê-lo no espaço, estando aí justamente o elemento mimético. Desta forma, temos um paradoxo: o elemento racional - os símbolos da escrita musical - que torna possível a tradição e a própria história, e em certo sentido é inimigo da expressão, é aquele que torna possível e sob o qual está o mimético. Ao contrário, a música propriamente dita, no momento da execução, pura gestualidade se formando e se diluindo no tempo, é absorvida pela escrita através de seus elementos simbólicos.

A racionalização, que corresponde ao desenvolvimento dos elementos simbólicos na notação, permite organizar fatores como alturas, ritmos e instrumentação, com o objetivo do controle das estruturas musicais, e representa a invasão do intencional na notação. Para Adorno, a racionalização impossibilita uma experiência musical mais sincrética que envolva, além do som, gesto e movimento, como ocorria antes da ingerência da igreja nos cantos dos primeiros cristãos.

Já o gestual, o não-intencional, é temporário, efêmero, não sobrevive à história e não está preocupado com isso. Por outro lado, na escrita, a intenção é a eternidade, ela mata a música como fenômeno natural e espontâneo, para a conservar fragmentada no mundo das idéias. Desta

forma, o elemento mimético da música está ligado aos elementos simbólicos introduzidos pela notação, aproximando-a da escrita da fala, mas com o custo de perder sua própria homogeneidade como música (Adorno, 2006, p. 178). Entretanto, o elemento da expressividade está tão ligado ao seu oposto, ao dos símbolos musicais, que isso torna a racionalização da escrita um organismo de subjetividade.

Nesta duplicidade entre o elemento mimético, não-intencional, e o simbólico, intencional, reside o problema da interpretação no sentido mais rigoroso do termo: a fidelidade gestual-visual da escrita contém algo da rigidez dos signos linguísticos, assim como a indicação da execução mais rígida e rigorosa contém algo de necessariamente ambíguo. Esta característica de duplicidade da escrita como mimese e como linguagem torna necessária a interpretação musical, cujo objetivo é resolver a questão: "Como pode a mímica tornar-se linguagem e, inversamente, o signo transformar-se em imagem?" (ADORNO, 2006, p. 180)

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