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2.3. Uma leitura de Adorno

2.3.3. O sentido

Uma primeira noção de sentido é um efeito que um objeto gera quando entramos em contato com ele de alguma forma. Uma definição geral pode ser formulada como sendo "um objeto qualquer gera sentido em uma apreensão individual deste objeto, assim que o indivíduo o coloque em uma relação com áreas de sua experiência vivida - isto é, em relação à coleção de outros objetos pertencentes à experiência do indivíduo no mundo" (NATTIEZ, 1990, p. 9). Nesta definição, "objeto" se refere a qualquer coisa, sejam

elementos simbólicos como as palavras, coisas materiais ou imateriais, fatos sociais, etc. O uso do "individual" é importante para a compreensão de que o efeito dos objetos deve ser estudado nos indivíduos como prioridade em situações de análise de um fenômeno em relações interpessoais ou coletivas. Por fim, a palavra "apreender", diferentemente de "produzir" ou "perceber", indica que "o sentido de um objeto existe não só para quem o recebe, mas também para seu produtor" (ibidem).

Em relação ao objeto, a noção de sentido é um horizonte, é o futuro que surge e dá vida ao objeto. Horizonte pode ser entendido como destino; neste caso, o significado que será atribuído pelo indivíduo ao objeto, que sem esta relação não é nada, só existe no momento em que o objeto é percebido por alguém.

O horizonte é também um limite da visão, o máximo que ela alcança, compreendido como o limite da nossa percepção, em função da nossa experiência de vida. Se estamos num quarto vazio, vemos as paredes, a porta, as tomadas elétricas, a lâmpada no teto, ou seja, não temos muito o que ver, nosso horizonte de visão é pequeno. No entanto, ao olharmos pela janela e avistarmos toda uma cidade, o alcance da visão amplia-se consideravelmente, temos muito mais coisas que podem ser observadas. Desta forma, o sentido é uma constelação de significados, de efeitos que um determinado objeto possui. A capacidade de percebê-los, todos, vai depender da experiência individual, de cada um.

Porém, no território da música, especificamente, quais horizontes uma obra musical pode evocar? Obviamente são inúmeros, heterogêneos, abrangem dimensões diferentes do sentido musical, podendo estar ligados a

aspectos biológicos, sociais e culturais do homem. Podemos encontrar todo tipo de sentido para uma música, alguns mais aceitos por uma coletividade e outros absolutamente individuais, mas eles podem ser classificados em categorias, de acordo com o julgamento de quem o faz, segundo Francès (1988, p. 259-260).

A primeira categoria é a Normativa, quando se produz avaliações pessoais, julgamentos de gosto, o que praticamente é impossível de não ocorrer na música de concerto ocidental. Em praticamente qualquer fato musical, incluindo a música das tradições orais, a reação mais comum das pessoas é avaliar se gostaram ou não.

A segunda é a Objetiva, quando os julgamentos são de natureza técnica, como analisar alguma propriedade física da música (timbre, tempo, vibrato); a forma (estrutura, gênero, estilo histórico); ou o tipo de escrita. Esta categoria é importante em relação à discussão a respeito da música: ela é apenas uma pura estrutura formal, não se refere a nada a não ser a si mesma, ou é capaz de inspirar associações externas? A resposta para esta pergunta é que a música pode ter tanto referências intrínsecas como extrínsecas (Nattiez, 1990, p. 103). Desta forma, os julgamentos objetivos são os que envolvem as referências internas da obra, assim como a próxima categoria está relacionada às referências externas.

Julgamentos a respeito de significados extra-musicais são produzidos por sujeitos que atribuem à obra fatos extra-musicais. Esta terceira categoria é dividida em três tipos:

a. em relação a uma referência individual: o significado está relacionado com alguma experiência pessoal; esta música é igual a um passeio com meu carro pelo centro da cidade, por exemplo, podendo ser acompanhado ou não por imagens.

b. sentido concreto: um aspecto específico da natureza, um fenômeno do mundo externo ou uma situação dramática. La Mer, de Debussy, pode ser considerada um exemplo, deixando claro, porém, que é preciso se esclarecer o contexto ao ouvinte antes da escuta, para que seja possível a compreensão da obra de acordo com o seu roteiro dramático.

c. sentido abstrato: estado psicológico (alegria, entusiasmo, serenidade); ou representações generalizadas (ordem, desordem, hierarquia). Uma obra é alegre ou triste, é caótica ou não.

A quarta categoria são os julgamentos que levam ao relato de aspectos psicológicos interiores do sujeito em relação à experiência. Neste caso, os sentimentos que possam ser generalizados são considerados individualmente. Nem sempre uma obra triste é compreendida como tal por todos; se a apresentamos a pessoas de uma cultura diferente, teremos opiniões pessoais muito mais diversificadas, por exemplo.

De forma geral, as opiniões verbais a respeito de uma música são feitas a partir do mundo próprio de cada um, de sua experiência pessoal, de forma que sua reação será em função de sua bagagem sócio-cultural. Mas

outro elemento está também fortemente ligado à produção de sentido na música, que é o biológico (Nattiez, 1990, p. 104).

Molino divide a apreensão de sentido sob o ponto de vista biológico em duas dimensões. A primeira é denominada "coenestésica", entendida como a impressão, ou emoções que se revelam a partir de um conjunto de sessões internas, não específicas, que habitam em nosso corpo. Molino diz que gostar ou não de uma obra é uma forma de simbolizar uma reação corporal, representada pelas emoções. A segunda dimensão é a "kinestésica", que é a impressão de movimento que alguém sente em determinado ponto do corpo. Se a música nos desperta, é porque ela está nos incitando a mover (ibidem).

As categorias de Francès e as dimensões de Molino nos colocam de frente para o debate a respeito da oposição entre Natureza e Cultura, presente em inúmeras áreas de estudo do conhecimento humano. No entanto, elas demonstram que na música não são uma oposição, mas componentes de uma mesma experiência, que pode produzir conhecimentos técnicos musicais, a partir dos julgamentos objetivos; conhecimentos a respeito de aspectos históricos, sociais, ou psicológicos; até a incitação do movimento e de reações emocionais específicas e individuais.

Ao longo da história, o estudo do sentido na música produziu uma série de correntes e formas de pensamento. O próprio conceito de música se modifica, refletindo e sendo reflexo das sociedades nas quais foi elaborado. Segundo Gilson, a história da estética é dividida em quatro grandes famílias que se sucedem, sendo que uma é sempre a reação contra a anterior e que elas podem coexistir em algum momento. As três primeiras são a imitação, o

expressionismo e a simbólica, nas quais a música é capaz de reproduzir, expressar ou simbolizar significados, sentimentos e alguma realidade exterior à obra. Na quarta e última, o formalismo, o sentido da música acontece nela mesma, é intrínseco à forma, à estrutura e suas relações sonoras, rejeitando qualquer elemento exterior (ibidem, p. 107).

A doutrina da imitação explica-se pelo próprio nome. Seu princípio está baseado na poética de Aristóteles: as artes são cópias, representações da natureza. No universo musical, o princípio da imitação está ligado à relação entre a música vocal cristã da Idade Média e sua escrita, os Neumas, que eram inicialmente imitações das inflexões vocais, como apresentado no tópico anterior, segundo Adorno. Na música vocal é fácil se identificar a imitação.

Porém, para os filósofos, a chegada da música instrumental autônoma dificulta este entendimento, por isso o expressionismo gradualmente se impõe, agora como uma imitação das emoções: "uma importante questão é saber se o trabalho do artista é ou não uma expressão da emoção e dos sentimentos, [ser a obra] uma expressão, uma tradução artística destes sentimentos" (GILSON, 1963, p. 67). Esta questão nos remete ao próximo passo, que é definir onde está o sentimento, na consciência do artista ou na obra.

A corrente simbólica define a obra musical como uma forma simbólica, ou seja, ela simboliza, representa algo. Retomando a corrente expressionista, poderíamos imaginar que o sentimento está representado na obra, mas nesta nova corrente a obra pode representar muito mais e, principalmente, não representa uma única coisa ou fato. Langer diz que a música é um

"símbolo não consumado" (LANGER, 1957, p. 240), o que quer dizer que é um objeto que representa algo, mas sem que esta representação se realize de forma convencional, sem que remeta a um sentido específico. Ela diz que é um processo que "direciona alguma luz ao obscuro conflito de julgamentos que são evocados a partir de uma performance" (LANGER, 1957, p. 241)

Considerada uma reação contrária às concepções semânticas das música, que pressupõem uma ligação da música com algo externo, a doutrina formalista defende a música por ela mesma. A virada decisiva nesta direção é marcada pelas idéias de Hanslick, segundo as quais a "beleza da obra é especificamente musical, produto apenas das combinações de sons e independente de qualquer coisa externa, qualquer noção extra-musical" (Hanslick apud Nattiez, 1990, p. 108). Para Varèse, a música não é capaz expressar nada, senão ela mesma. Stravinsky considera música, em sua natureza, incapaz de expressar qualquer coisa, seja um sentimento, uma atitude, um estado psicológico, um fenômeno natural, etc. “Expressividade nunca foi algo imanente na música" (ibidem). É importante notar que os formalistas não necessariamente afastam as emoções da música. Stravinsky não disse que a música não pode provocar associações; o que ele diz é que em seu nível imanente, enquanto um objeto, a música não é expressiva, ou seja, a música provoca o nascimento de sentimentos em nós, mas como uma consequência do ato musical.

A história da estética musical pode ser comparada com um pêndulo oscilando entre as concepções semânticas, que consideram referências externas à música, e os formalistas. Neste longo percurso histórico, muitas vezes as concepções coexistem, às vezes muito proximamente, como no

século XX de Boulez, que defende uma música livre de relações externas; e Stockhausen, com toda a sua visão cosmológica e relações espirituais.

2.3.4 O sentido em Adorno

Em Adorno, a imitação é o ponto de partida para se obter o sentido musical. Em sua teoria da interpretação, a noção de sentido não está ligada à produção e apreensão de significados, como descrito anteriormente, ou como resultado de uma combinação de signos que produzam um significado como na linguagem. Para ele, o sentido da música corresponde ao gesto global que é recomposto a cada performance de uma obra. Desta forma, os elementos de uma partitura não dão sentido à música, eles fornecem caminhos a partir dos quais se realiza a imitação da música, os signos da partitura como mimese. Este gesto global é o todo, é a forma musical (Adorno, 2006, p. 191).

Imitar é ter algo como modelo e tentar reproduzir, é fazer algo semelhante. Se pensamos em seu uso comum, compreendemos que ao imitarmos algo não estamos realizando uma cópia fiel. O uso da palavra por Adorno está na base da idéia de que nesta relação música - partitura - intérprete, um imita o outro. Assim, a partitura imita a música e o seu movimento, somente sendo capaz de fazê-lo através de um sistema de signos, que por sua vez é imitado pela interpretação.

Este processo pode ser melhor entendido se tomarmos um desenho como exemplo: Como fazemos para desenhar uma casa que está à nossa frente? Analisamos sua forma; se ela é quadrada desenhamos um quadrado,

se é vermelha colorimos de vermelho. A chave do processo é a análise das estruturas e das características da casa que possam ser transpostas para o papel. Da mesma forma, no processo de imitação da música, a partitura simplesmente apresenta alguns aspectos fundamentais da música. Em uma partitura gráfica, a relação com o movimento do som é mais próxima, mas essa relação também está presente na partitura tradicional, na qual o movimento é representado pelos símbolos musicais. Desta forma, cabe ao intérprete imitar a partitura. Cada elemento da relação imita o outro: no entanto, um na dimensão das idéias- a música enquanto composição; outro na dimensão simbólica- a partitura e o intérprete na realização sonora.

Mesmo não estando preocupado com a capacidade ou incapacidade de produção e apreensão de significados, podemos notar na teoria de Adorno aspectos marcantes de duas correntes de Francès, a imitação e a formalista. Se voltamos ao exemplo dos Pigmeus, temos uma música feita para se relacionar com a natureza; ela busca imitá-la e podemos dizer que, para os Pigmeus, sua música tem como modelo a natureza. Temos aqui uma relação de significação direta: ao ouvir sua música, o pigmeu é remetido a algum aspecto de sua vida.

Já na música de concerto atual, o processo de imitação ocorre, porém sem um modelo; são cópias de um original que não existe. Adorno não credita à música uma capacidade de representar algo e nem discute este aspecto, o que o aproxima dos formalistas. Podemos, entretanto, propor que quando ele sugere a idéia de "mimese", deixa uma porta aberta à significação, pois a música pode se ligar a qualquer significado, devido à sua

característica mimética; podemos relacionar qualquer coisa de acordo com uma lógica pessoal no processo de escuta.

À interpretação cabe atuar nestes dois aspectos do texto escrito: o simbólico e o mimético, que são absolutamente ligados, de maneira que um não existe sem o outro. Na definição da escrita da música atual, estes dois pólos são uma linguagem sígnica no singular e gestual ou figurativa no todo. Cada nota e indicação expressiva têm que ser traduzidas em representação mental e realizadas sonoramente, como parte integrante da imitação do gesto da escrita na sua totalidade (Adorno, 2006, p. 205-206).

Devemos observar que a idéia do gesto como figura significa uma espacialização do percurso do tempo (Carvalho, 2005, p. 218). Uma figura é uma imagem visual, desta forma podemos ver o que acontece do ponto de vista do movimento da música no tempo, como em uma partitura gráfica. O gesto transformado em figura vai contra a idéia de mimeses original. Perde- se a atualidade do gesto, já que ele é um acontecimento, ele simplesmente existe, é um momento presente, o que deixa de acontecer para ser eternizado numa figura. A fixação do gesto em figura permite que ele seja relacionado a outros, tanto na sucessividade quanto na simultaneidade, deixando de ser, em certo sentido, "o gesto musical" para ser "o gesto concreto", passível de análise e de princípios de organização (ibidem).

Ser linguagem sígnica e figurativa aprisiona a escrita musical e sua insuficiência num paradoxo de ser "signo linguístico do não-linguístico, significante do não-conceitual, concretização do inconcreto, fixação do não- fixável" (ibidem, p. 219) e, principalmente, o paradoxo de ser uma coisa, um objeto que se modifica na história. A interpretação como problema revela

essa historicidade ao captar e procurar resolver o paradoxo presente no duplo caráter da escrita musical. É importante realçar que não se trata simplesmente de se adaptar a obra ao momento histórico em que foi concebida, mas sim compreender nela própria sua regras interpretativas, suas leis internas.

Além dos elementos mimético e simbólico, a interpretação ainda depende de um terceiro elemento, o idiomático. A relação entre estes três meios é que torna claro o caminhar das obras na história.

2.3.5 O idiomático

O elemento idiomático é ligado à partitura, porém não está escrito, ele é tudo que, por ser óbvio na prática musical, não aparece na notação, sejam aspectos dos signos ou aspectos miméticos. O idiomático é ligado à maneira de tocar aceita por uma maioria, seja no contexto em que a obra nasce ou no local onde é executada. O idiomático é também a subjetividade do intérprete, seu estilo pessoal de execução. "O idioma é o contexto que sustenta a obra no momento histórico em que ela surge e/ou naquele em que ela é interpretada" (ibidem, p. 220).

É uma cultura de escuta e interpretação que define um coletivo de coisas a se fazer em determinada música. Sua ligação com a partitura se dá através desta cultura, que diz como devem-se realizar os elementos da partitura, não apenas os pertencentes à micro-forma, como ornamentos em geral, mas também os da macro-forma : andamentos, dinâmicas, articulação da estrutura formal, instrumentação, entre outros. Adorno considera que "as

maneiras de tocar e frasear dominantes" (ibidem) asseguram uma interpretação "correta", que não vai contra a coletividade, considerando esta prática como uma espontaneidade aparente, que demonstra, efetivamente, uma ingenuidade.

De fato, o idiomático reflete um pensamento dominante de um meio musical, o que muitas vezes não permite uma leitura e uma performance mais críticas da partitura. O problema é que este pensamento dominante sustenta a obra, o que tende a fazer com que se acredite em uma coincidência entre a obra e a forma de compreendê-la e interpretá-la; ou seja, não necessariamente a forma de compreensão de uma obra de determinado momento é a forma como a obra deva ser interpretada. Este descompasso entre o idiomático e a obra provoca, segundo Adorno (2006, p. 212), uma crítica da História a uma tradição interpretativa que oculta ou distorce a concepção verdadeira da obra, que impede a capacidade de transformação da obra. Para Mahler, a "tradição é desleixada" (ibidem, p. 67).

Se por um lado o idiomático é efêmero, por outro, os signos musicais, a escrita da partitura, são permanentes. Mesmo que tenhamos algumas mudanças nos diapasões de cada época, ou que a construção dos novos instrumentos possibilite novas relações dinâmicas, o sistema continua o mesmo. A partitura é o esquema da obra, o que garante sua identidade sobre o curso da história (Ingarden, 1989 apud Nattiez, 1990, p. 69-70).

A relação do elemento permanente com os variáveis, o mimético e o idiomático, propicia o dinamismo da obra, revela sua historicidade interna. Se a escrita é permanente, a carga histórica está presente nos dois outros elementos. O mimético apresenta a história interna, de certa forma o

pensamento do compositor; e o idiomático, a história externa, o momento histórico da época em que a obra foi composta ou que é tocada. A relação entre a escrita e os outros dois elementos é conflituosa, ou melhor, negativa, pois a necessidade do idiomático e do mimético mostra o seu vazio significacional, mostra que os signos precisam de ser completados, necessitam da interpretação, responsável pelos outros dois elementos, para serem de fato uma obra musical. Devido ao vazio significacional do elemento escrito, Adorno o considera "a identidade da não-identidade" (ADORNO, 2006, p. 199), ou seja, a partitura que tendemos a considerar como a obra a identifica, mas de fato não a representa em sua totalidade. Hans-Joachin Koellreutter (1915-2005) costumava dizer que o mapa não é o território;a escrita é este mapa, a interpretação percorre o território.

O idiomático, efêmero, não está registrado na escrita. Desta forma, ele é uma coisa de fora, sendo, no entanto, o elemento capaz de fazer com que o texto produza sentido. A efemeridade do idiomático e sua ausência no sistema de codificação do texto o levam a ser perdido, em função das mudanças das sociedades no decorrer da história. Como ele é o responsável pelo sentido, isso cria um problema para o texto notado. Órfã do idiomático, a obra só tem como possibilidade de reconstrução do gesto musical seu elemento permanente, os signos da escrita. Isso implica também a reconstrução do elemento idiomático a partir do texto notado, através da busca do gesto oculto nos símbolos musicais. Todo este processo de reconstrução, no entanto, só é possível através da análise.

Podemos dizer que esta é uma proposta de mudança de paradigma para as práticas interpretativas. O comentário de Mahler - a "tradição é

desleixada"- é a marca de um momento problemático da linguagem musical, um momento em que o discurso da tradição deve ser substituído por um discurso analítico-construtivo (Carvalho, 2005, p. 221). Este, por sua vez, passa a ser o responsável pela reconstituição do gesto musical da obra como um todo, devido ao fato da escrita levar-nos ao elemento mimético e vice- versa, como foi dito anteriormente.

O desleixo da tradição é uma crítica, mais do que isso, uma condenação da distorção provocada pelo elemento idiomático cristalizado, que rejeita as transformações históricas, sociais e culturais; um idiomático que tem como base regras externas à obra, formadas por uma consciência coletiva e que são usadas sem um juízo crítico, quase que como um manual do proprietário. Esta prática destrói a verdade dinâmica da obra, sua propriedade de estar em constante transformação ou adaptação a novos tempos.

Adorno cita como exemplo as práticas de interpretações históricas da música que negam a história por serem unicamente baseadas na tradição do momento de nascimento da obra, que buscam reconstruir o idioma do antigo ideal de execução (Adorno, 2006, p. 229). Este tipo de prática obstrui a

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