• Nenhum resultado encontrado

2 A FUNDAMENTAÇÃO INTERCULTURAL DOS DIREITOS

2.3 A UNIVERSALIDADE RADICALMENTE EXCLUDENTE

2.3.2 A obrigação universal do letramento

O letramento tem sido defendido como parâmetro de demarcação de uma linha “abissal” (SOUSA SANTOS, 2010) — ou “grande divisão” nas palavras de Gee (1994) — entre culturas orais — com pouco ou nenhum uso da escrita — e culturas letradas — com utilização extensiva de escrita e edição impressa e virtual. Esse argumento tem sido embasado numa tradição etnocêntrica de pesquisas científicas — conforme analisada por Kleiman (1995) e Galvão e Batista (2006), dentre outros —, em que a cultura escrita sempre foi considerada algo

11

“A escola tem constituído a agência por excelência para a difusão da palavra escrita, como ferramenta que também acarrete uma paulatina deslocalização da vida e do conhecimento, e consequentemente também uma universalização do saber e do conhecimento, processos nos quais o alfabeto desempenha um papel preponderante.” (LÓPEZ, 2006a, s/p.)

positivo (GRAFF apud GALVÃO; BATISTA, 2006), diretamente relacionada às “necessidades vitais de pessoas e sociedades ‘modernas’ e ‘desenvolvidas’” (GALVÃO; BATISTA, 2006, p. 424). Nessa tradição, a escrita não só tem sido supervalorizada, mas também considerada o único sistema válido que “demonstra a capacidade de abstração humana” (GALVÃO; BATISTA, 2006, p. 428).

Assim, uma das obras mais coerentes com esta visão preconceituosa a respeito dos grupos humanos de tradição não-letrada ou oral, foi a obra do jesuíta americano Walter J. Ong (1982, 1986 conforme citado em obras como GEE, 1994; KLEIMAN, 1995; GALVÃO; BATISTA, 2006, etc.). Este autor é dono de afirmações tais como “a escrita é absolutamente valiosa e aliás essencial para a realização do potencial interior humano mais completo” ou “a oralidade necessita produzir e destina-se a produzir escrita”. Para Ong, dentre outras desprezáveis características, “o pensamento oral é redundante e pouco original”, razão pela qual as pessoas “radicadas na oralidade primária”, devido à inevitabilidade da transformação de muitas das suas práticas orais em práticas letradas, ver-se-ão obrigadas a “morrer para continuar vivendo" (ONG apud GEE, 1994, p. 54).

Em relação à universalidade de um senso comum único, as práticas de conhecimento orais são desumanizadas e tornadas práticas de carência, pois elas são definidas a partir da sua negatividade em relação à positividade universal da escrita. Essas concepções deficitárias “podem fornecer argumentos para reproduzir o preconceito, chegando até a criar duas espécies, cognitivamente distintas: os que sabem ler e escrever e os que não sabem” (KLEIMAN, 1995, p. 27).

Em linha com o totalitarismo epistêmico da ciência moderna, o “mito do letramento” (GRAFF apud KLEIMAN, 1995) outorga ao letramento um leque de efeitos positivos, desejáveis para todos, no âmbito da cognição e no âmbito social. Quero fazer referência, mais especificamente, ao mito do letramento autônomo (STREET, 1984), que representa o processo de letramento, ou apropriação da escrita, como um processo neutro. De acordo com Street (2003, p. 77), o modelo autônomo de letramento trata-se simplesmente da “imposição das concepções ocidentais de letramento sobre outras culturas, ou, dentro de um país, de uma classe ou grupo cultural sobre outras”. Outros autores referem-se a esse mito como a “maldição da cultura escrita”, em que “o poder e a arrogância” dessa cultura “não conhecem limites” (SHIRALI apud PATTANAYAK, 1995, p. 117). Esse mito tem fornecido “instrumentos aos burocratas, gerenciadores, políticos e planejadores,

para perpetuarem a opressão em nome da cultura escrita e da modernização” (PATTANAYAK, 1995, p. 117).

A República Federativa do Brasil e o Ministério de Educação (1998), por sua vez, declararam a sua concordância com o mito do letramento no âmbito da educação escolar indígena, por exemplo, ao afirmarem no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) que

O professor indígena deve, ao planejar e realizar seu trabalho com a escrita, estar sempre pensando sobre as seguintes questões: A escrita é uma atividade que exige muito mais reflexão e elaboração do que a oralidade (BRASIL, 1998, p. 138, grifo meu).12

Assim como a objetividade do conhecimento científico e da ciência moderna não garante os benefícios universais do conhecimento que gera, também o letramento autônomo e a sua universalidade não mostram evidências da sua correlação com a prosperidade econômica ou a igualdade social (KLEIMAN, 1995). Às vezes resulta mais fácil, pelo contrário, entrever a correlação entre o letramento universal e a atrelagem universal em relação às estruturas de poder globais do capitalismo, em sua reinterpretação neoliberal contemporânea. César e Cavalcanti afirmam:

No Brasil, é flagrante, por exemplo, a contradição entre o surgimento de novas tecnologias e o crescimento do desemprego e da desigualdade na distribuição de renda. Nesse cenário, são mais contundentes os discursos de universalização da educação, da quase obrigatoriedade do letramento digital, da “erradicação” do analfabetismo — visto como doença, uma vez que precisa ser erradicado —, dentre outros. Parece que tanto mais o modelo é totalizador e excludente, mas se acirra a necessidade do discurso da inclusão. Que tipo de

12

“Considerar o mundo da oralidade como mundo da pobreza, da sobrevivência e da ignorância é a visão que a cultura literária possui da oralidade. O ‘escritismo’ está presente no projeto de educação bilíngue ao considerar a oralidade da cultura indígena como um problema resolvido pela introdução da tecnologia da escrita. A escola bilíngue acaba tratando a oralidade indígena como analfabetismo” (BARROS, 1994, p. 33; Cf. HAMEL, 1995).

inclusão? Para reafirmar os projetos políticos e ideologias dominantes? (CÉSAR; CAVALCANTI, 2007, p. 51)

A “erradicação” do analfabetismo, de fato, pode acarretar a substituição e apagamento da oralidade e das práticas sociais orais, desacreditadas pela legitimação de epistemicídios (SANTOS; MENEZES, 2010). Esses epistemicídios resultam e se originam na substituição das práticas econômicas e socioculturais orais, próprias de tradições subalternizadas, por práticas econômicas e socioculturais escritas da tradição ocidental hegemônica.

Em contraposição ao modelo de letramento autônomo, os Novos Estudos de Letramento (GEE, 1994; STREET, 1984) analisam o letramento a partir das práticas sociais em que as atividades de ler, escrever e conversar estão implicadas, por meio de uma abordagem sociocultural da linguagem. Os Novos Estudos de Letramento tomam como objeto as práticas sociais nas quais as pessoas são instruídas como parte de um grupo social (GEE, 1994). De acordo com esse autor, a distinção entre oralidade-letramento torna-se verdadeiramente problemática quando levamos em conta que aquilo que estamos contrastando são, de fato, práticas culturais distintas que em contextos diferentes requerem usos diferentes da linguagem.

A visibilização e o privilégio das práticas de conhecimento escritas em relação ao silenciamento e apagamento das práticas de conhecimento orais também são caros à propagação do capitalismo e à utilização do indígena em seu potencial de produção e consumo (Cf. BARROS, 1994). A este respeito, cabe destacar as célebres palavras do fundador do Summer Institute of Linguistics, Cameron Townsend, que relacionava a iniciação dos índios nas práticas de leitura com a iniciação no interesse por comprar produtos manufaturados:

Uma vez que pode ler, embora inicialmente seja só no seu próprio idioma, perde o complexo de inferioridade. Começa a interessar-se por coisas novas. Interessa-se por comprar artigos manufaturados — implementos, moinhos, roupa, etc. Para fazer tais compras, ele precisa trabalhar mais. A produção aumenta e portanto o consumo também. A sociedade inteira, menos o cantineiro e o bruxo, tira proveito. Descobre-se que o índio vale mais como homem culto que como força

bruta sumida na ignorância (TOWNSEND apud BARROS, 1994, p. 25).

Levi-Strauss (1957), conforme citado por Meliá (1979), ressalta o autoritarismo da universalidade do letramento. Levi-Strauss relaciona a ação sistemática dos países europeus em prol da instrução “universal” obrigatória, a partir do século XIX, com a extensão do serviço militar e da proletarização. A luta em prol do alfabetismo, “indispensável para fortalecer as dominações [...], se confunde assim com o aumento do domínio dos cidadãos pelo poder”, e está relacionada à submissão de maiores contingentes populacionais ao sistema capitalista e às suas leis, “pois é preciso que todos saibam ler para que este último possa dizer: ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (LEVI-STRAUSS apud MELIÁ, 1979, p. 57).

Segundo este autor, a escrita “parece favorecer a exploração dos homens antes que iluminá-los”, pois ela permite e naturaliza que milhares de trabalhadores se submetam a tarefas extenuantes em troca de um salário. Levi-Strauss defende, portanto, que “a função primária da comunicação escrita é facilitar a servidão”. Os servos, graças à sua capacidade de acessar o saber escrito acumulado nas bibliotecas, tornam-se vulneráveis “às mentiras que os documentos impressos propagam em proporção ainda maior” (LEVI-STRAUSS apud MELIÁ, 1979, p. 57).

Para possibilitar a “universalização” da escrita, as vozes dos indígenas a respeito da cultura letrada têm permanecido tradicionalmente silenciadas. Franchetto (2008, p. 31) afirma que

Entre as experiências mais marcantes da história do encontro entre populações indígenas e colonizadores estão a descoberta, a entrada, a aquisição e o impacto da escrita, com seus inevitáveis corolários: alfabetização, letramento e escolarização. Instrumentos delicados e ao mesmo tempo poderosos nas mãos dos agentes “civilizadores”, essas experiências operam mudanças significativas nas sociedades indígenas. Todavia, com o fim de silenciar, invisibilizar e naturalizar essas significativas mudanças nas práticas dos indígenas, “pouco se tem refletido sobre este tema no âmbito da história dos povos indígenas no Brasil e pouco se tem ouvido o que os índios dizem e contam sobre ele”

(FRANCHETTO, 2008, p. 31). Este silenciamento acompanhou o apagamento das perspectivas indígenas sobre a própria escolarização13.

Apesar de tudo, nem a ciência moderna, nem a escola nem o letramento constituem males em si mesmos. É o uso que deles se tem feito, o totalitarismo universalista com que a sua objetividade e a sua racionalidade se expressam, e a arrogância excludente com que são visibilizados, que os torna instrumentos de opressão estratégicos para a perpetuação do sistema econômico capitalista. É por isso também que essas obrigações humanas universais, se forem reconstruídas interculturalmente como direitos, podem constituir instrumentos de resistência.