• Nenhum resultado encontrado

2 A FUNDAMENTAÇÃO INTERCULTURAL DOS DIREITOS

2.2 SIGNIFICADO E IDENTIDADE NO SUPERMERCADO CULTURAL

2.2.1 As práticas sociais locais translíngues: desinventando a linguagem

Em contraposição ao citado anteriormente, não são “minorias” as comunidades e indivíduos que acessam recursos linguísticos e culturais múltiplos em sociedades plurais, falam duas linguagens culturais e traduzem e negociam entre elas. De acordo com García (2009), a tendência mais habitual na maioria dos contextos a nível mundial é que

os indivíduos façam um uso bilíngue da linguagem — “linguageiem bilinguemente” —, isto é, translinguageiem ao comunicar-se na mesma comunidade bilíngue ou com comunidades diferentes (GARCÍA, 2009). Esse é o “modo normal de comunicação […] que caracteriza as comunidades ao redor do mundo” (GARCÍA, 2009, p. 44). Os indivíduos e comunidades translíngues engajam-se em múltiplas práticas de linguagem bilíngues ou multilíngues não só para facilitar a comunicação entre si e com os outros, mas também para construírem significado e conferirem sentido aos seus mundos bilíngues (GARCÍA, 2009).

A tradição linguística tem estudado o bilinguismo da perspectiva da língua em si mesma, e não da perspectiva dos falantes bilíngues (GARCÍA, 2009). Esse paradigma de estudos linguísticos responde a fundamentos epistemológicos e políticos da tradição científica ocidental, motivados por interesses específicos e contextuais. Assim, a noção de língua é uma noção recente com uma origem cultural específica — vinculada ao surgimento do Iluminismo e dos estados-nação europeus —, e faz pouco sentido para a maioria das sociedades ditas tradicionais (MÜHLHÄUSLER apud PENNYCOOK, 2010). A fronteira entre línguas, e entre línguas e outras variedades, não é linguística, e sim política (SKUTNABB-KANGAS, 2002).

Não tendo, portanto, fundamentos linguísticos que as separem, não existem fronteiras definidas entre as línguas dos bilíngues, antes pelo contrário, elas constituem um continuum que é acessado (GARCÍA, 2009). Os bilíngues não são dois falantes monolíngues numa pessoa só, e não devem ser estudados de perspectivas monolíngues: os bilíngues realizam usos diferentes, e com diferentes competências, das línguas nas quais translinguageiam, de acordo às várias práticas sociais em que se engajam (GARCÍA, 2009). Uma vez que diferentes práticas requerem diferentes usos da linguagem e das línguas em que os falantes translinguageiam, não é para eles necessário apresentar em todas as suas línguas, e para todos os domínios, os mesmos níveis de proficiência dos falantes monolíngues (CENOZ; GENESEE apud GARCÍA, 2009).

O translinguismo é uma abordagem que foca não nas línguas como estruturas ou objetos fechados em si mesmos, mas nas práticas observáveis dos falantes (GARCÍA, 2009). Essa mudança de objeto — de língua como estrutura e entidade abstrata para língua como prática social observável — constitui uma resposta à necessidade, colocada por Pennycook (2010, p. 5, grifo do autor), de “desinventar e reconstituir” as línguas e a forma em que elas têm sido construídas, com o fim de encontrar caminhos alternativos para pensar a linguagem. O

translinguismo representa também um novo olhar a respeito do multilinguismo, que, como afirma esse autor, tem sido visto apenas como uma “pluralização do monolinguismo” (PENNYCOOK, 2010, p. 12).

Problematizar a língua em termos de prática social possibilita a problematização da diversidade linguística não em termos de contagem de línguas e sim em termos de diversidade de práticas sociais (PENNYCOOK, 2010). De acordo com esse autor, a problematização da diversidade linguística em termos de práticas sociais remete também a uma problematização em termos de diversidade de significado.

Pennycook (2010) defende uma visão de língua como produto das atividades socioculturais em que as pessoas se engajam. É por meio de práticas sociais locais que se constitui a linguagem. As práticas são ações com história (BOURDIEU apud PENNYCOOK, 2010), isto é, não são atividades apenas, e sim o encadeamento infinito dessas atividades, que organizam a vida em sociedade. Pennycook (2010, p. 2) propõe um deslocamento de uma visão de língua como estrutura, como sistema a que se recorre, em direção a uma visão de língua como ação, “como uma parte material da vida social e cultural”.

As práticas sociais locais constituem a própria linguagem, e é a partir daquilo que fazemos com ela, como interação multifacetada entre seres humanos e mundo, que refazemos a língua e o local em que as práticas acontecem (PENNYCOOK, 2010). É através das práticas sociais locais que se constituem os sujeitos — as identidades —, os objetos — os significados —, e a própria língua. A língua é, portanto, uma atividade central na organização da vida social e, consequentemente, econômica, política e cultural, dos locais específicos. Pennycook (2010, p. 4) faz referência ao termo “local” como aquilo que é arraigado e particular num contexto determinado, o lugar da “resistência, da tradição, da autenticidade, e de tudo o que há de ser preservado”. Esta ênfase no local ecoa a distinção que Sousa Santos (2004, p. 792) estabelece entre globalismo localizado — “o impacto específico da globalização hegemônica no local” — e localismo globalizado — aquilo que “no local não é efeito da globalização hegemônica”. O local constitui, portanto, a especificidade que distingue comunidades inseridas no mercado global, e centra a atenção no vínculo dos seres traduzidos com as suas origens, com os traços que os particularizam.

O localismo na linguagem como prática social põe em foco as irregularidades, as particularidades dos locais, enquanto essas particularidades restringem as intepretações dos significados, das

identidades e das práticas. Pennycook (2010) ressalta também as irregularidades e particularidades presentes dentro dos próprios locais, onde é constitutiva a heterogeneidade de perspectivas.

Esse autor enfatiza o local também por causa da sua concordância com a necessidade de descentrar-se em relação à tradição filosófica ocidental. Abordar a língua enfatizando o seu caráter local supõe também entender os significados locais de linguagem, fundamentados em formas de pensar locais (PENNYCOOK, 2010). Problematizar a língua como prática social local é, portanto, o caminho para a mudança de perspectiva em direção ao “reino do impensável na modernidade ocidental” (SOUSA SANTOS, 2010, p. 49), ao “outro lado da linha”, às perspectivas tradicionalmente silenciadas.

Entender a língua como prática social e as práticas de linguagem dos indivíduos e comunidades bilíngues como ação, como atividade social translíngue em que eles constituem as suas identidades, constroem os seus significados e conhecimentos, e a própria língua que os une, possibilita captar a pluridiversidade necessária para abordar a reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos escolares da EIEF Itaty.

Abordo a seguir, para concluir a fundamentação intercultural desta pesquisa, a noção de direitos humanos de que parte este trabalho, que, em função de tudo o que foi discutido anteriormente, se afasta de visões totalitaristas “universais” e propõe reconstrui-los interculturalmente.