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2 A FUNDAMENTAÇÃO INTERCULTURAL DOS DIREITOS

3.3 A NEGOCIAÇÃO DE ENTRADA EM CAMPO

O meu primeiro contato com a comunidade guarani do tekoa Itaty se deu através de uma amiga pessoal, que fizera aula de língua guarani na UFSC, nos anos de 2006 e 2007, tendo como professores alguns dos membros das aldeias do Morro dos Cavalos e Massiambu, também no município de Palhoça (SC). Foi através da abertura facilitada por ela que estabeleci contato telefônico com o cacique dessa aldeia, Marco António Oliveira. A escola da aldeia de Massiambu foi escolhida pela sua proximidade a Florianópolis, e por se tratar de uma comunidade com quem eu poderia ter um primeiro contato através de alguém com quem tivéssemos, tanto os Guarani quanto eu próprio, certa confiança.

Ao longo da nossa primeira conversa, o cacique Marco fez referência a alguns dos motivos pelos quais atualmente a comunidade está modificando a sua atitude a respeito da pesquisa universitária na aldeia, como por exemplo: alguns dos membros da comunidade cursam, na atualidade, a Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC, razão pela qual as pesquisas na aldeia hoje estão sendo desenvolvidas por outros “parentes”, o que torna desnecessário o envolvimento de pesquisadores não-indígenas alheios à comunidade. Por outra parte, muitos dos pesquisadores que desenvolveram pesquisas na aldeia ora não ofereceram retorno suficiente dos resultados das suas pesquisas, ora interromperam instantaneamente o seu envolvimento com a comunidade uma vez concluído o prazo de realização da pesquisa, ou ainda, em alguns casos, fizeram ambas as coisas. A comunidade sente falta de um maior retorno tanto da informação obtida quanto das implicações dos resultados para melhora na vida das aldeias. Além disso, ainda segundo Marco, o envolvimento emocional com os pesquisadores é motivo de certo desconforto e tristeza quando estes interrompem subitamente o seu envolvimento com a comunidade, uma vez que a maioria deles nunca mais os visitam, na medida em que as suas carreiras acadêmicas e profissionais vão progredindo (DIÁRIO DE CAMPO, 17/07/2011).

Meses depois, indaguei os professores guarani sobre este assunto, e perguntei sobre as suas perspectivas a respeito da pesquisa acadêmica. As suas respostas apenas confirmaram ou enfatizaram as colocações de

Marco sobre os motivos para a modificação da atitude a respeito da pesquisa universitária nas aldeias:

Tem muitos [pesquisadores] que sai falando guarani, e tem outros que vêm e não voltam mais, não se adaptam, tem uns que vêm e exploram e aí é ruim, quando é exploração é ruim, já passei por muito dessas também, a pessoa chega ai começa a explorar, explorar muita coisa e depois some, nunca mais volta, nem a resposta, nem uma cópia, né, e ai muitas vezes vai dizer que... nem coloca o nome de quem ele pesquisou (ENTREVISTA COM ADÃO ANTUNES, 01/11/2011).

Nesta fala, o professor Adão Antunes reitera que, embora muitos deles se envolvam nas práticas sociais locais que constituem a língua guarani, e aprendam a falar a língua, são também muitos os pesquisadores “exploradores”, que mal colocam em circulação o conhecimento gerado com as comunidades — “nem a resposta, nem uma cópia”. O professor Adão, além disso, reclama por esses pesquisadores nem ao menos reconhecerem a autoria — “nem coloca o nome de quem ele pesquisou” — das pessoas e comunidades que os receberam.

Posteriormente, o professor Marcos Morreira reiterou, na fala que exponho a seguir, não só o distanciamento dos pesquisadores após a finalização das pesquisas, mas também o distanciamento da própria instituição, a universidade, da qual possuem maiores expectativas:

A aldeia sempre tá de portas abertas às pessoas que querem conhecer a realidade, pesquisam, né, porque a gente espera que através disso, dos alunos da universidade que vêm pesquisar, que a própria universidade com isso abre as portas também pra comunidade indígena, pros alunos que se formarão no ensino médio, que abra as portas pra fazer não só o vestibular, mas entrar em algum meio de cotas... E também apoio nas universidades a partir do momento em que a comunidade precisa de um apoio pra defender alguma causa indígena, que a universidade está apta ali pra nos ajudar, porque tantos universitários que vieram fazer pesquisa né, a comunidade deu tudo pra essa pessoa fazer,

recebeu de mãos abertas, só que muitas vezes nunca teve retorno, simplesmente terminaram e esqueceram [...]. A própria universidade também, né, e eu espero assim, que essa pesquisa ai seja uma ferramenta na universidade pra tar abrindo outros olhares, outros pensamentos, né, que a universidade possa respeitar o nosso pensamento (ENTREVISTA COM MARCOS MORREIRA, 31/10/2011).

Nesta fala, o professor Marcos dá voz à esperança guarani de que, do mesmo modo em que eles abrem as portas das suas aldeias para os pesquisadores universitários, a universidade retorne essa abertura para eles, não só através de políticas afirmativas — vestibulares, meio de cotas — como também colaborando com as suas causas e abrindo passagem para “outros olhares e pensamentos” dentro dela. Em concordância com as posições que argumentei no capítulo anterior, uma proporção considerável das atividades de pesquisa científica e produção contemporânea de conhecimento das instituições de ensino superior tomam como base o totalitarismo epistêmico científico (MIGNOLO, 2004), que necessita do silenciamento da sua alteridade. Assim, ao fazer referência à universidade, Marcos indica a expectativa de que as atividades de pesquisa realizadas nas aldeias sejam uma ferramenta para que a universidade comece a legitimar os significados, regimes de verdade, conhecimentos, economia e cosmologia guarani — “que a universidade possa respeitar o nosso pensamento”.

Contudo, motivados pelo retorno que esperam da própria universidade, na qual estão sendo progressivamente incluídos com maior visibilidade, e com a qual têm estabelecido parcerias mais simbióticas, os Guarani não querem fechar as portas aos pesquisadores universitários. São muitas também as experiências positivas, em que o envolvimento dos pesquisadores se estende ao longo dos anos em parcerias e cooperações duradouras, satisfatórias e estáveis. Assim, no nosso primeiro encontro, Marco comprometeu-se a consultar a comunidade e a dar-me um retorno posterior sobre a minha proposta de visitar a escola da aldeia para acompanhar as suas atividades cotidianas. Após a resposta positiva à minha proposta, para questões de ordem prática, ele me indicou o contato de um professor não-indígena morador da aldeia. Esse professor me aconselhou a realização da pesquisa na EIEF Itaty do Morro dos Cavalos, por vários motivos, dentre eles, o número de alunos nela ser notavelmente maior do que na escola do Massiambu; o fato de nela serem oferecidas turmas de ensino

médio e Educação para Jovens e Adultos, e a facilidade de deslocamento até o Morro dos Cavalos, muito mais fácil do que até o Massiambu, uma vez que a escola Itaty fica à beira da BR-101, perto de pontos de ônibus com frequência regular de diferentes linhas interurbanas, conforme pode-se ver na fotografia abaixo. O professor para quem fui encaminhado facilitou-me ainda o contato do professor Adão Antunes e do então cacique do tekoa Itaty, para eu apresentar a minha proposta de pesquisa para eles.

Figura 2 - O ponto de ônibus, sentido norte, da aldeia do Morro dos Cavalos

Fonte: Fotografia de Carlos Maroto Guerola, 2011.

O professor Adão me recebeu e escutou a minha proposta, mostrando-se durante todo o tempo disposto e interessado nela. Aceitou que eu começasse a frequentar a escola quando eu quisesse, e nos dias que me resultasse mais conveniente, concedendo-me plena liberdade e colaboração para a observação das aulas e do dia-a-dia da escola.

Posteriormente, após um primeiro contato via e-mail, agendei um encontro com o diretor juru’a da escola no semestre de observação, com quem conversei acerca da minha pesquisa, sendo que ele também se mostrou receptivo e disposto a colaborar, enfatizando que não haveria nenhum inconveniente em eu frequentar a escola com a regularidade e nos dias que eu estimasse necessário. Finalmente conversei com o então cacique da aldeia, que também aceitou sem problema o meu projeto, oferecendo-me a sua ajuda e outorgando-me total liberdade para visitar a escola, conversar com os professores, observar as aulas, e, em definitivo, para desenvolver à vontade o meu estudo na escola da aldeia.

Tendo discorrido sobre o meu processo de negociação de entrada em campo, contextualizo, a seguir, o campo social da pesquisa: o povo Guarani, o tekoa Itaty ou aldeia guarani do Morro dos Cavalos, e a Escola Indígena de Ensino Fundamental Itaty.