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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3. Oralidade e Escrita sob a ótica sociointeracionista

2.3.3. A oralidade na escrita

Já foi dito que, no início das investigações sobre a fala e a escrita, a visão mais comumente encontrada sobre o assunto era a que compreendia essas duas manifestações da língua como opostas e impossíveis de se analisar conjuntamente. Contudo, o pensamento dos teóricos, com o passar do tempo, foi se ampliando, e novas visões foram sendo criadas e incorporadas às perspectivas de análise.

Para exemplificar as afirmações acima, é possível citar Oesterreicher (1996). De acordo com o teórico, traços de um texto falado podem ser encontrados dentro em um texto escrito, como é o caso de bilhetes e cartas pessoais que, apesar de grafadas, mais parecem exemplos de fala; isso pode ocorrer em virtude da despreocupação com a colocação das palavras, estruturas gramaticais, escolha lexical e a informalidade em geral. Conforme explica o estudioso, a existência de textos escritos que apresentam traços da oralidade ocorre por motivos particulares a este fenômeno, sendo algumas destas razões explanadas nos parágrafos subsequentes.

Um texto escrito pode apresentar inúmeras características da fala em razão da falta de formação cultural do escritor, por exemplo. Por algum motivo particular, um locutor pode não dispor dos conhecimentos necessários para a escrita de um determinado gênero textual, não saber a respeito da variedade linguística exigida pelo tipo de texto e desconhecer as regras discursivas para a estruturação do discurso. Sobre esse tipo de ocorrência, Oesterreicher (1996, p. 325) afirma:

Ademais, muitas vezes, não se sabe aproveitar as possibilidades da comunicação escrita. Em consequência disso, o texto produzido passa a apresentar construções e elementos que normalmente são utilizados apenas em situação de imediatez comunicativa (...) Para ilustrar este fenômeno com material atual basta analisar as cartas produzidas por gente humilde. 14 Em verdade, nota-se que um escritor que não apresente habilidades suficientes para a produção de um texto escrito, poderá escrever um tipo de enunciado muito mais parecido com a fala do que com a escrita, por causa da ausência de conhecimentos necessários para a execução da tarefa proposta. Como mencionado no trecho acima, as cartas pessoais são gêneros textuais que podem atingir o cotidiano de pessoas pertencentes a todos os níveis

14Tradução ossa: Ade ás, u has vezes, o sa e aprove har las possi ilidades de La o u i a ió es rita. Em consecuencia, el texto producido contiene, por regla geral, construcciones y elementos que normalmente solo se utilizan em el ámbito de La inmediatez comunicativa (...) Para ilustrar este fenômeno com material a tual asta a alizar las artas es ritas por ge te hu ilde.

sociais, mesmo aquelas inseridas em grupos menos escolarizados; por esse motivo, observam- se textos escritos com uma vasta quantidade de aspectos caracterizadores da fala.

Um locutor poderá também produzir textos escritos com traços de oralidade quando ele for um falante bilíngue, e uma língua ter posição dominante sobre a outra. Escritores em tal circunstância, por não disponibilizarem de um vasto repertório vocabular e não conhecerem construções sintáticas mais formais, utilizam-se de modos de fala bastante simples, mesmo em situações de formalidade. Sobre o assunto, Oesterreicher (1996, p. 326) exemplifica:

Penso aqui nos soldados romanos que, estabelecidos no Egito no segundo século d.C., empregam em seus escritos um latim bastante familiar , às vezes mesclado com elementos do grego, que era a língua dominante. Outro exemplo seriam os falantes de quechua das zonas andinas da América que escrevem em castelhano...15

Assim como se notou com a leitura do fragmento acima, enunciadores bilíngues, em situação de interferência de uma língua dominante sobre outra, correm o risco de produzirem textos escritos que mais parecem exemplos de fala, ou mesmo, textos mistos, posicionados entre a oralidade e a escrituralidade devido à presença de características tanto desta quanto daquela.

Outra justificativa para a constatação de aspectos de fala em contextos grafados é o descuido com a produção escrita. Oesterreicher (1996) explica que, mesmo escritores cultos e experientes em redigir textos de todos os tipos, podem apresentar descuido em situações de espontaneidade, intimidade e familiaridade com o interlocutor. Observa-se que esse descuido pode ser constatado, principalmente, no âmbito de produções privadas, como é o caso da carta pessoal. O escritor conhece as normas de escrita padrão, no entanto, está tão à vontade e tão envolvido em seu discurso que mais parece estar em meio a uma interação face a face.

Observam-se, também, casos em que características da fala são encontradas no texto escrito como forma de adaptação das expressões linguísticas do texto às possibilidades do interlocutor. Escritores, mesmo cultos e com grande capacidade estilística, podem desejar, em determinados contextos, adequar seu discurso ao nível intelectual e de compreensão dos

15

Tradução nossa: Pienso aqui em los soldados romanos que, estabelecidos em el Egito del segundo siglo d.C., emplean em sus escritos um latín bastante familiar, a veces mezclando com elementos del griego, que es La língua dominante. Outro ejemplo serían los quechuahablantes de La zona andinas de América que escriben en castelhano. (Oesterreicher, 1996, p. 326)

leitores. Oesterreicher (1996) salienta que “esta opção ‘pedagógica’ se observa geralmente em textos escritos para crianças, jovens, gente humilde ou para estrangeiros”16.

Pensando nesse tipo de escrita muita familiar à fala, como tentativa de auxiliar o interlocutor na atividade de compreensão do texto, é imprescindível citar Tin (2005, p. 29) que sintetizando a Ars rhetorica de Victor, escreve:

...muitas diretrizes que pertencem ao discurso oral também se aplicam as cartas. (...) deve-se evitar muito mais a obscuridade nas cartas que no discurso e na conversação. Pois, nas cartas, não é possível interpelar o remetente para esclarecer pontos obscuros, uma vez que está ausente, ao contrário de quando se fala com pessoas que estão presentes.

A próxima justificativa para o encontro da oralidade em contextos escritos é muito próxima à anterior e refere-se ao fato de que algumas tradições discursivas, literárias ou não, exigem, por si mesmas, a simplicidade e a compreensão em suas escolhas linguísticas. No parágrafo anterior, tratou-se de uma opção que dependia da escolha individual do enunciador que se dirigia a um dado receptor, já neste caso, refere-se a um elemento constituinte do próprio texto. Podem ser citados, como exemplos, as notícias de jornal, as bulas de remédio, os livros didáticos, entre tantos outros que, independente do redator, já exigem por si, uma construção simples e de fácil apreensão por parte dos leitores. (Oesterreicher, 1996)

É possível relacionar as afirmações do parágrafo anterior ao entendimento que a retórica clássica tinha a respeito do gênero textual carta: “recorrendo a alguns autores clássicos, procurou provar que a carta era uma conversação entre amigos ausentes a respeito de seus negócios e, como tal, deveria ser escrita no sermo latino e não no estilo oratório” (Bebel, apud Tin, 2005, p.48). De acordo com o fragmento, nota-se que, mesmo os antigos estudos a respeito de cartas, já a compreendiam na mesma perspectiva de Oesterreicher (1996), entendendo-a como um tipo de gênero que requer simplicidade em suas escolhas lexicais e construções sintáticas, semelhantemente à conversação.

Imagina-se que a oralidade também possa estar presente em textos escritos em razão de uma opção particular do escritor. Um enunciador, conscientemente, pode querer construir textos mais informais e que remetam à proximidade da interação face a face.

Em capítulo anterior, foi dito que a carta é um colóquio entre ausentes, uma tentativa de aproximação espacial de pessoas que estão em posições geográficas díspares. Sendo assim,

16 Tradução ossa: Esta op ió pedagógi a se o serva ge eral e te e textos concebidos para ninõs, jóvenes, gente humilde y, em parte, para extranjeros (xenolecto) (idem).

um remetente de uma carta pessoal, quer seja para um amigo, quer seja para um amante, pode escolher utilizar traços da oralidade, em uma produção gráfica, de forma intencional, como meio de tornar-se mais presente ao outro, construindo na ausência, um diálogo mais próximo da presença.