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Tipo de fala dirigida a bebês (motherese)

3. ANÁLISE DAS MARCAS DE ORALIDADE PRESENTES NA CORRESPONDÊNCIA

3.3. Escolhas lexicais típicas da oralidade

3.3.2. Tipo de fala dirigida a bebês (motherese)

Observa-se que a fala de um adulto, quando dirigida a um bebê, é muito diferente de outras espécies de interação oral. Verificam-se, nesse tipo de colóquio, características bastante intrigantes: é, notavelmente, mais simples em termo de sintaxe, conteúdo semântico e prosódia. Nesse evento interacional, o adulto recorre a elementos paralinguísticos e busca sonorizar e musicalizar sua fala, “além disso, as vocalizações são mais curtas e as pausas mais longas” (Valentim, 2002, p, 12). É imprescindível ressaltar que um dos mais importantes

aspectos dessa interlocução é o fato de ser essencialmente oral, só existindo em produções fônicas.

Valentim (2002) salienta que a fala dirigida a bebês, denominada motherese, infant-

direct speech, babytalk, mamanhês, entre outras nomenclaturas, além de ser, obviamente,

encontrada em interações de adultos com bebês, pode também ser utilizada por casais de namorados em situações de fala, com o intuito de expressar afetividade. Esta afirmação, somada às analises que têm sido realizadas nesta dissertação, pode ajudar a sustentar a tese de que o verdadeiro espaço do discurso afetivo é, realmente, a oralidade.

Decidiu-se incluir este assunto na seção relativa às escolhas lexical, pois se compreende que, para a produção de um tipo de fala como a motherese, a rigorosa seleção de palavras é importantíssima. Contudo, além da opção por palavras extremamente simples, a fala dirigida a bebês exige, de quem a produz, relativa modificação e adaptação do léxico selecionado.

Por motivos evidentes, motherese deveria ocorrer somente em situação de fala, contudo observa-se nas cartas de Fernando Pessoa, assim como previsto por Valentim (2002), a presença desse modo de expressão, evidenciando, mais uma vez, que o poeta compreende suas cartas como um tipo de interação equivalente às conversações face a face; ele busca traduzir, graficamente, um tipo de discurso que é típico da oralidade.

“Uma função primária dessa forma de falar seria a de atrair a atenção e manipular os estados bebê” (Valentim, 2002, p. 15). Conforme a afirmação da pesquisadora, motherese é uma forma de fala, e não de escrita, que busca estabelecer e manter maior proximidade entre os interlocutores, garantindo-lhes uma interação mais íntima: “se queremos convidar o bebê a uma integração social, utilizamos contornos melódicos crescentes” (idem, p.15); do mesmo modo, entende-se que o poeta português, não satisfeito com um discurso de proximidade, estabelecido apenas por meio da escolha de palavras informais, introduz e reproduz, em suas cartas, um tipo de fala específica das interações orais com bebês.

Para exemplificar as afirmações acima, decidiu-se transcrever, integralmente, o texto remetido em 31.5.1920 por Fernando Pessoa:

Bébézinho do Nininho-ninho Oh!

E também tive munta pena de não tá ó pé do Bébé pâ le dá jinhos. Oh! O Nininho é pequenininho!

Hoje o Nininho não vae a Belem porque, como não sabia s’havia carros, combinei tá qui ás seis o’as.

Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa é que sahe d’aqui pelas cinco e meia (isto é a meia das cinco e meia).

Amanhã, o Bébé espera pelo Nininho, sim? Em Belem, sim, sim? Jinhos, jinhos e mais jinhos

Fernando (Carta nº 24 – 31.5.1920)

Como se pode observar, a carta destacada é um caso peculiar, em que se verifica rígida seleção e manipulação de léxico. A maior parte das palavras empregadas tem significado simples e pertence ao âmbito coloquial. No corpus escolhido, foram feitas adaptações que, normalmente, são realizadas apenas em produções sonoras, em razão de a interlocutora ser compreendida como um bebê. Entre as modificações lexicais ocorridas, nota-se a ausência da consoante r em algumas palavras: pâ (para), dizê (dizer), catinha (cartinha), sê (ser). É importante lembrar que crianças e pessoas menos escolarizadas apresentam dificuldade na realização sonora desta consoante, o que também pode refletir-se na escrita. A respeito do assunto, Dias (2003, p. 176) salienta que:

Podemos observar o apagamento do fonema /r/ pós-vocálico no final de vocábulos (nominais verbais), nas situações informais de fala (ex.: cantá no lugar de /cantar/), independentemente de fatores sociais (...)

Assim como previsto pela autora, o apagamento de r ocorre, principalmente, em situações de fala informal por pessoas com menor grau de escolaridade; desse modo, observam-se, mais uma vez, traços que identificam as cartas de Fernando Pessoa com algumas interações orais, visto que, em ambas, a ausência da consoante r em certas lexias pode ser verificada. Diferentemente de falas produzidas por crianças, indivíduos com pouca escolaridade ou estrangeiros, o apagamento de r em palavras do corpus é feito intencionalmente, como tentativa de aproximação do texto escrito à situação oral, a fim de, talvez, amenizar a distância entre remetente e destinatária.

Ainda quanto ao campo fonético, nota-se a interessante representação da palavra

muita, escrita, pelo enunciador como munta, por querer evidenciar a nasalização ocorrida na

possível citar “não sabia s’havia carros”, “Amanhã, a não sê qu’o Nininho não possa”, entre outros trechos, em que se observa a exaustiva tentativa de oralização da correspondência. Contudo, de acordo com Urbano (2000, p.110):

(...) por mais que um escritor pretenda reproduzir fielmente a língua oral, prosodicamente falando, no seu texto escrito, seu propósito estará destinado à frustração; quando não, seria de efeito duvidoso, em vista da enorme dificuldade em vencer a tradição escrita do leitor.

Na carta destacada, constata-se a presença de sentenças pequenas e simplificadas, diminutivos, omissões de termos, assim como frases sem nexo aparente. Também são identificadas rimas e repetições melódicas que ajudam a construir a musicalidade do texto e procuram imitar as alterações prosódicas que, normalmente, ocorrem em fala dessa natureza. Em 31.5.1920, o poeta escreve: “Bébézinho do Nininho-ninho, O Nininho é pequenininho, Jinhos, jinhos e mais jinhos”; nos três exemplos, ele utiliza palavras bastante recorrentes em conversações com crianças, flexionando algumas no diminutivo com o intuito de conceder mais melodia ao texto.