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A ordem das razões: a Ratio cognoscendi e Ratio essendi

3 DA DÚVIDA METÓDICA AO COGITO

3.5 O COGITO – EU PENSANTE

3.5.3 A ordem das razões: a Ratio cognoscendi e Ratio essendi

Na busca pela ordem das razões, Descartes mostra na ideia que o saber tem limites grandes sobre a inteligência que persegue a certeza das coisas de forma a não restar-lhe sequer fragmentos de dúvidas e que é preciso duvidar de tudo, exceto que pela inteligência se terá a consciência de existir. E que nada se pode conhecer antes da inteligência, por isso, argumenta Gueroult (1968, p. 16) que: “o

cogito é o primeiro dos conhecimentos, o espírito é mais fácil de conhecer do que o

corpo, pois o espírito se conhece sem o corpo,...” 36.

Como resolver a tensão em que se encontra entre o cogito como primeiro princípio na ordem das razões, a Ratio Cognoscendi (razão para conhecer) e de Deus como primeiro princípio na ordem das razões, a Ratio Essendi (razão de ser)? Porém, é sabido que o cogito não é o principal fundamento do pensamento cartesiano por encontrar-se como descoberta da primeira certeza, a evidência do sujeito pensante importante, pois, para a demonstração de Deus como fundamento que garante a estabilidade e a verdade, inclusive daquele que é autor do ato de pensar e da ideia que possui do próprio Deus. Mas, ao olhar-se o cogito como aquele que deverá ser instaurado bem anterior em sua forma subjetiva, até mesmo com esse entendimento de que sua descoberta é passo necessário para se chegar a Deus, então, nesse sentido, Deus não é o primeiro princípio dessa ordem. Isso se se pensar na ordem das razões do “eu sou, eu existo” das Meditações Metafísicas é

uma verdade que não depende epistemologicamente de nenhuma outra, mesmo estando com a dúvida colocada pelo método como ausência de verdades. Assim, na ordem das razões realmente o primeiro princípio é independente de elementos que o fizessem ser o que é.

Essa independência se dá através do ponto de vista puramente epistemológico, é claro que não se está colocando em outro sentido a não ser este. Agora, olhando na dimensão ontológica, o cogito aparece como aquele que participa do Ser, pois, por ele não poder criar-se nem conservar-se a si próprio, depende,

35 Razão para conhecer e Razão de ser como ordem das razões apresentadas por Martial Gueroult no vol. 1 de seu livro Descartes selon l’ordre des raisons – l’ame et Dieu que utilizei para compreensão dessa tensão entre o Cogito como primeiro princípio na razão do conhecimento e Deus como primeiro princípio na razão de ser.

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le cogito est la premiére des connaissances, l’sprit est plus aisé à connaître que le corps, car l’sprit se connaît sans le corps,…

portanto, ontologicamente da criação e conservação de Deus. Assim, Ibrahim (2007, p. 87) argumenta que se pode falar em primazia do cogito como autônomo na medida em que por si só chega-se ao conhecimento de si. Tal primazia, portanto, é apenas no campo epistemológico, pois, é nesse campo que ele se afirma como primeiro e como princípio. Por esse raciocínio, o conhecimento de Deus verdadeiro depende, na ordem das razões da antecedência do cogito.

No cogito há ordem das razões e tem duas verdades. Primeiro, da existência dotada de valor objetivo independe da garantia divina. Segundo, a verdade da natureza depende de uma garantia divina. É o que se chama de cisão do cogito apresentada por Gueroult.

Para tentar resolver esse impasse em que se encontra o cogito, Martial Gueroult em seu livro Descartes selon l’ordre des raisons apresenta uma análise de

como é estabelecido, segundo ele, o primeiro princípio nessa ordem das razões, onde Descartes faz uma distinção das duas ordens: analítica e sintética. Tanto no

DM quanto nas MM a ordem é analítica, já na exposição das Segundas Respostas37

ou dos Princípios, a ordem será a sintética. Mas, sendo para se optar por entre essas duas ordens de acordo com Gueroult (1968, p. 22-3): “O próprio Descartes nos diz: é a ordem analítica. A demonstração sintética, com efeito, não é a ‘verdadeira via’...”38e acrescenta: “A via sintética, portanto, é sobretudo cômoda para

apresentar o conjunto dos resultados já obtidos graças ao método da descoberta, de forma que o leitor o possa ‘compreender de um só golpe.’”39 (Tradução nossa). Claro

que seguindo a ordem das Meditações com ordem da análise é quase impossível separar da ordem da síntese. Essa confusão poderá ser logo dirimida por defender que as duas ordens são opostas. Assim, argumenta Gueroult (1968, p. 26):

...a ordem da análise é a ordem da invenção, aquela, portanto, da

ratio cognoscendi; ela se determina segundo as exigências de nossa

certeza; é o encadeamento das condições que a tornam possível. A ordem sintética é, ao contrário, aquela que se institui segundo os resultados da ciência; e esses resultados, é a verdade da coisa. É,

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Nas Segundas Respostas de Descartes às Objeções ele apresenta uma compreensão da ordem e da análise e síntese. (SR, 1973, p. 176-177).

38 Descartes nous Le dit lui-même: c’est l’ordre analytique. La démonstration synthétique n’est pas, em effet, La ‘vraie voie’...” (GUEROULT, 1968, p. 22-3).

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La voie synthétique est donc surtout commode pour presenter l’ensemble des resultants déjà obtenus Grace à la méthode de découverte de façon que Le lecteur puísse le ‘comprendre tout d’um coup.’ (Idem).

portanto, a ordem da ratio essendi, aquela segundo a qual se dispõem em si as coisas quanto a sua dependência real.40

Para Gueroult (1968), a ordem analítica que parte do conhecimento do eu como primeira certeza para o sujeito pensante (cogito) é o princípio primeiro que torna possível provar a existência de Deus. Ainda segundo ele, a linha que conduz esse raciocínio é aquele que parte indo do mais simples ao mais complexo, apresentando Deus como Aquele que faz parte dessa sequência da cadeia de conhecimentos. Quem, portanto, é o primeiro nessa ordem das razões? O cogito é o primeiro na ordem do conhecimento (ratio cognoscendi)- o eu como sujeito pensante; mas, na ordem da essência (ratio essendi), o primeiro é Deus. Porém, na construção efetiva para a verdadeira prova da existência de Deus, o processo de encadeamento das razões inicia-se no primeiro princípio da ordem do conhecimento, o eu pensante até a conquista da primeira verdade: Deus. Desse modo, não significa que um substitua o outro, porém, tem consciência dessa necessidade entre sujeito e a divindade. Claro, não devemos esquecer o que já dissemos ao longo deste texto sobre ambos, de que Deus é o fundamento e garantidor do sistema de Descartes. Sem Ele não há ciência e que a consciência do sujeito como existente é ponto inicial para a demonstração de Deus. Tanto o cogito quanto Deus, a ciência é constituída desses dois princípios fundamentais em níveis diferenciados de uma mesma natureza intelectual.

3.5.4 Superação da dúvida e a certeza do Cogito rumo às provas da existência