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O deus enganador e o gênio maligno

3 DA DÚVIDA METÓDICA AO COGITO

3.2 A FORMAÇÃO E AS ETAPAS DA DÚVIDA

3.2.3 O deus enganador e o gênio maligno

A criação de um deus enganador ou gênio maligno é uma criação, diga-se, invenção cartesiana visando mais ainda a fazer com que a dúvida possa ir além dos limites do sensível e torne-se um elemento capaz de, ao ser superado, fazer com que a certeza tenha toda clareza e evidência de ser. A figura do deus enganador introduzido por Descartes, possui importante papel nas Meditações, trata-se de um ser astuto e muito poderoso que poderá nos enganar sempre. A radicalização dessa dúvida permite somente construir em bases sólidas todo o meu conhecimento. Afirma ele: (MM I, 1973, p. 96§12) “Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me.” Descartes supõe, então que a ficção é a sua arte de buscar da forma mais completa e radical fazer com que a dúvida esteja a preencher tudo. Com a introdução do argumento do gênio maligno, Descartes põe em xeque até os conhecimentos que ele acreditava ser evidentes e seguros como o conhecimento das matemáticas. Mesmo assim, terá que se submeter a mais uma prova de fogo, resistir aos

22 Tanto o deus enganador quanto o gênio maligno possuem a mesma função nessa criação de Descartes. Tem função de fazer com que não se esqueça da importância da dúvida e que ela agora passa a ser universalizada. Porém, o gênio maligno com seu artifício psicológico que impressiona minha imaginação a fim de levar-me a tomar a dúvida mais a sério para que esta fique melhor impregnada em minha memória. Importante observação levanta o prof. Juan A. Bonacinni ao afirmar que: “... um homem de ciência como Descartes esteja preocupado em erigir uma metafísica e fundamentá-la de modo último como a base de todas as ciências na existência de Deus.” (itálico grifo nosso). Essa questão tem razão de nos fazer questionar sempre sem se deixar de olhar o contexto vivido de condenações e daí Descartes buscará fundamentos capazes de serem aceitos. (Explora-se esta questão mais adiante, no terceiro capítulo que tratará propriamente deste fundamento). Já Raul Landim Filho em seu livro Evidência e verdade no sistema cartesiano, (1992, p. 107) diz que o gênio maligno possui uma função: “ela é uma razão, por assim dizer, metafísica de duvidar, pois parece pôr em questão a razão humana como faculdade de conhecimentos verdadeiros.” E essa dúvida está presente na Meditação I.

caprichos de um deus enganador que mesmo sabendo que existe-se realmente, teima em continuar a fazer-se acreditar que não se é. Portanto, Descartes (MM II, 1973, p. 100) argumenta:

Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e de ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.

Uma das diferenças entre o Discurso para as Meditações, Descartes acresce o gênio maligno no desenvolvimento da dúvida, importante criação cartesiana de uma figura muito astuta e poderosa e que tem suscitado muitos debates. Mas, a interpretação muito bem aceita é a de Alquié (1969) que alega ser um artifício usado por Descartes para chamar a atenção de que a dúvida é provisória e tem por meta a verdade.23, e o intuito era o de prolongar a dúvida para colher

resultados profícuos para o conhecimento.

No entender de Cottingham (1995, p. 72) o gênio maligno é:

... um elemento artificial introduzido para auxiliar o meditador a persistir na suspensão de suas confortáveis crenças habituais. No que tange a seu escopo, a trama do gênio não vem impugnar qualquer crença que já não tenha sido posta em dúvida por argumentos prévios; em vez disso, ela reforça meu empenho em concentrar-me nas dúvidas que já foram estabelecidas.

Uma suposição ou ficção de um gênio criada por Descartes para que passe sob o crivo mais ainda criterioso da dúvida. A esperteza de um ser que possa

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A figura do gênio maligno criada por Descartes tem por objetivo estender ao máximo a dúvida, segundo Alquié (1969, p. 65) “A dúvida é um processo para chegar à afirmação, é uma dúvida metódica”.

confirmar e conduzir cada vez mais longe as dúvidas já estabelecidas e outras que poderão vir a surgir, com a finalidade de prolongar a dúvida que o prepare para a certeza. Cottingham (1995, p. 72) continua:

O gênio maligno representa a dúvida extrema ou ‘hiperbólica’, levada a seu limite último; sua aparição prepara o terreno, portanto, para Descartes chegar a seu ‘ponto arquimediano’ – a certeza do meditador quanto a sua própria existência, que sobrevive a todos os esforços do gênio para enganar de todas as maneiras possíveis.

Para se entender mais essa ideia de criação cartesiana, Alquié (1969, p. 65) sustenta que a hipótese do gênio maligno é puramente filosófica e “[...] puramente metodológica” para que Descartes reforce ainda mais o mecanismo de se duvidar e esta ser superada com o mais nítido da certeza que é o ponto de chegada. É a dúvida levada ao seu extremo, por isso, é chamada de hiperbólica. O Deus apresentado na primeira Meditação que tudo pode é colocado como sendo enganador. Bonaccini (2004, p. 1) diz:

... o ponto de partida somente pode ser a dúvida que abarque a falta de certeza tanto do conhecimento sensível quanto do racional, a qual se concretiza na hipótese de uma ignorância e uma certeza absolutas, grau zero de certeza e conhecimento, plasmada na suposição de um gênio maligno que me engane o tempo todo. 24

Ou seja: enquanto perdurarem dúvidas e enganos não há como ter a posse da certeza que fundamenta o conhecimento verdadeiro. Por isso, Descartes enfrentará o maior problema a partir da terceira Meditação que será a de eliminar essa hipótese de incerteza absoluta, no caso aqui do gênio maligno.

Além da representação trazida na imagem do gênio maligno ela se pretende ser total quando envolve qualquer possibilidade, seja sensível ou racional.

Descartes necessita dessa ficção do deus enganador ou gênio maligno, como uma hipótese que vise sempre à solução do problema do conhecimento. Afirma Silva (2004, p. 35):

24 BONACCINI, J. A. Descartes, entre deus e o diabo... (Breve consideração sobre a estratégia cartesiana para conquistar a certeza da ciência nas Meditationes). Revista eletrônica Criticanarede. 2004, p, 01. Acesso em 02 de dezembro de 2010, às 23h46.

... a ficção do deus enganador ou do gênio maligno é necessária. Será também legítima? Se repararmos no caráter metódico da dúvida verificaremos que a suposição cartesiana tem a função de uma hipótese de que lançamos mão para melhor formular um problema visando à sua solução. A inspiração matemática do método aparece aqui de maneira nítida. Assim como o astrônomo supõe linhas de uma figura para melhor trabalhar com ela, assim também o filósofo lança mão de uma ficção que lhe permite prolongar a dúvida a fim de que o problema do conhecimento venha a ser inteiramente formulado, para que se possa resolvê-lo a partir de uma visão total de todos os seus termos.

O que interessa para Descartes é muito mais fazer com que se esteja livre de todas as possibilidades do engano e, por isso, cria os vários argumentos que permite encontrar a verdade. É prolongar a dúvida enquanto puder a fim de resolver a questão do conhecimento que ele persegue.