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A ordem do uno e dos múltiplos 36 

Capítulo 1: Trajetória rumo ao coletivo 19 

1.2. A ordem do uno e dos múltiplos 36 

Para o pensador francês Edgar Morin, existe a predominância da simplificação, da redução e da disjunção em nosso modo de pensar, que nos acompanha desde o século XVII e continua a apresentar seus aspectos mais nocivos a partir do século XX. E afirma: “o pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitat

multiplex). Ou ele unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou, ao contrário, justapõe a

diversidade sem conceber a unidade”.75

Os grupos pesquisados estão em contraponto a esse tipo de pensamento predominante, pois não atendem a uma disciplina isolada, nem procuram direcionar suas práticas na busca da homogeneização de pensamento daqueles que participam das proposições. Ao contrário, tais trabalhos artísticos promovem a diversidade, a união de contrários e buscam reconciliar aspectos ideológicos e econômicos bem distintos. Logo, não podemos deixar de pensar na complexidade das relações atuais entre sociedade e grupos artísticos, tendo como cenário as práticas sociais.

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MORIN, 2005, p. 12. 

Em um determinado momento da década de 1990, um bairro inteiro de St. Pauli (Hamburgo) foi ameaçado por empreiteiras. Ele seria vendido e gentrificado.76 O projeto da prefeitura local suscitou reações coletivas espontâneas de moradores insatisfeitos. Um grupo de artistas iniciou uma série de propostas, que vão desde cinema coletivo a troca de livros,

workshops e feiras, com o intuito de mobilizar cada vez mais pessoas para que parte do bairro

não fosse vendida às empreiteiras. As ideias das pessoas envolvidas se ajustam bem ao pensamento do filósofo Henri Lefebvre,77 que trata da espacialização das lutas sociais, definindo “a forma do espaço social é o encontro, a reunião, a simultaneidade.”78 O autor entende que as lutas sociais devem preencher o espaço urbano, ou seja, elas devem “espacializá-lo” de acordo com os desejos das pessoas, já que, para ele, há um espaço mental e afetivo acima do espaço lógico e funcional. Juntam-se a isso, elementos da arte e elementos lúdicos em uma política emancipatória. Esse posicionamento faz um aceno à história do coletivo Park Fiction, grupo de artistas que remodelou todo um parque em Hamburgo.

Atualmente, alguns grupos artísticos se deparam com questões semelhantes a essa. E suas posturas, muitas vezes, não são somente artísticas, ativistas, mercadológicas ou políticas e partidárias; são sociais. Muitos desses grupos elaboram suas proposições preocupados com a relação entre as demandas do outro (que também podem ser entendidas como desejos) e as formas de materializá-las ou problematizá-las no campo social, considerando as cidades, as zonas rurais, os parques, praças e todo e qualquer tipo de espaço de convívio, como suportes para sua efetivação.

Em economia, demanda ou procura é a quantidade de um bem ou serviço que os consumidores desejam adquirir por um preço definido pelo mercado. Tendo por base a busca por um bem, o mercado interpreta essa demanda, fabricando o bem e ofertando-o aos consumidores. Logo, podemos dizer que demandas são reconhecimentos de desejos presentes na sociedade e sua consequente materialização em forma de serviços e bens. Como a demanda

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Chama-se “gentrificação, uma tradução literal do inglês ‘gentrification’ que não consta dos dicionários de português, a um conjunto de processos de transformação do espaço urbano que, com ou sem intervenção governamental, busca o aburguesamento de áreas das grandes metrópoles que são tradicionalmente ocupadas pelos pobres, com a consequente expulsão dessas populações mais carentes, resultando na valorização imobiliária desses espaços. <Disponível em: <http://www.alexandria.unisg.ch/Publikationen/55962 01/2007> 77

Filósofo marxista e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou em 1920. Criticava os althusserianos por apagar a ação dos sujeitos no processo de comunicação. Segundo ele, fatores importantes como a vivência dos receptores, a "decodificação pelo cotidiano", as mediações e os lugares dos sujeitos foram esquecidos. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Henri_Lefebvre>

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é o desejo ou necessidade apoiados na capacidade e intenção de compra, ela somente ocorre se um consumidor almeja algo e o mercado procura ofertá-lo, confirmando que existem demandas para aquele tipo de bem ou serviço.

A partir disso, podemos fazer o seguinte raciocínio: se na sociedade existem demandas relativas aos contextos históricos e a arte os espelha, é licito pensarmos que ela também espelha as demandas dos contextos históricos, resultando em proposições que cuidam de ofertar os bens materiais ou imateriais ao público que as deseja, atendendo, assim, a tais demandas. Poderíamos dizer também, por outro lado, que o mercado cria e produz suas próprias demandas por meio de dispositivos de propaganda, mídias etc., viabilizando, com isso, outra faceta do que seria o consumo instigado pela propaganda. Mas, por enquanto, concentremos nossa atenção na relação entre demandas sociais criadas por pessoas que não são artistas e a forma como essas demandas são elaboradas e reescritas pelas proposições artísticas.

O que querem esses grupos, já que suas premissas de ocupação do cenário urbano não são mais somente artísticas? Algumas questões são levantadas pelos próprios grupos: “como movimentos emancipatórios podem operar fora do quadro estreito da política partidária?” (Park Fiction, 2011)79 ou “como pensar uma cultura subalterna como forma de resistência?”.80 A partir disso, muitas foram as perguntas que comecei também a me fazer: quais as relações entre demandas sociais e as proposições desses grupos? Qual a importância do outro nesse cenário? As tentativas de me aproximar dessa densa e complexa floresta, para ao menos vislumbrar algo, resultou na criação de um esquema e delimitação de estratégias.

Primeiramente, eu delimitei os conceitos encontrados na pesquisa, que, aos poucos, foram se fazendo importantes: temporalidade, ambiência e proxemia. Depois de entender a presença deles nas proposições, busquei exemplos práticos nesses grupos a partir de suas ações, para tentar assimilar as estratégias de aproximação do outro, as táticas (convite, sedução etc.) e métodos (oferta de uma resposta à demanda, negociações etc.). Por fim, experimentei estratégias, em paralelo, nos meus próprios trabalhos artísticos.

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Disponível em: <http://www.parkfiction.org/2011/09/516.html> 80