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Participação em Lygia Clark 84 

Capítulo 2 : Grupos artísticos: economia, convivência e práticas

2.3. Participação em Lygia Clark 84 

Não podemos falar sobre participação na arte sem considerar as décadas de 1960 e 1970, e, sobretudo, as proposições da artista brasileira Lygia Clark. O respeito pela realidade do outro levou a artista a explorar a aproximação através da sensorialidade. Suas ideias abriram espaço para a inserção do corpo no espaço fenomenológico da obra; gestos, comportamento e interação eram parte do trabalho e o compunham como substrato essencial. A importância de perceber a participação do público, por meio do gesto e do ato, nos leva a pensar também a importância do meio, em outras palavras, do dispositivo (performances, jogos, culinária etc.) utilizado para ativar a proposição.

Na obra de Lygia “todo esse jogo de sensorialidade produzida acaba por compor uma linguagem, expressão absoluta de uma comunicação direta entre corpo e o objeto, que se torna uma espécie de linguagem do corpo. Portanto, o objeto relacional é um objeto só para o corpo”.214 As obras da fase geométrica de Lygia consideraram o tempo e o espaço, porém as operações terapêuticas da fase posterior extrapolaram os limites da arte, indo para o campo de uma estratégia terapêutica. Nesse sentido, nos informa o crítico de arte Guy Brett:

Sob o ponto de vista da terapia, seu uso do que chamava ‘objetos relacionais’, trabalhados um a um com os ‘pacientes’ para ajudá-los em suas crises psicológicas, indica que Lygia chegou até eles por meio do questionamento das relações tradicionais entre sujeito e objeto, artista e espectador (...) em vez de um objeto em que sua própria expressividade estivesse codificada, ela propôs um objeto que não

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tivesse identidade própria. Esse objeto adquiria um significado apenas em relação à fantasia do participante, e apenas no ato de uma relação estabelecida com o corpo.215 Os trabalhos de Lygia Clark, especificamente, obras como “Máscaras Sensoriais” (1969) ou “O Eu e o Tu” (1967), nos levam a indagar: qual o lugar da obra de Lygia Clark em relação à esfera das relações sociais? O convite à participação, tendo como base objetos manuseáveis e práticas terapêuticas, tem como foco principal o sujeito e a sociedade participando das proposições da artista de forma voluntária.

Quando Lygia rompe com a ideia de pintura, abre a obra para um espaço de sociabilidade, para um contexto ambientado pelos eventos da década de sessenta,216 momento em que o corpo começa a interagir com o cenário cotidiano e suas problemáticas políticas e econômicas, mediante um campo expandido de possibilidades artísticas: videoarte, performance, happenings, environments.

Estamos falando em rompimento com determinado suporte tradicional, continuidade de reflexões que outros artistas ou movimentos já haviam enfrentado. Quando, por exemplo, em outro período, movimentos como o De Stijl217 propuseram a negação do quadro em favor da

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BRETT, 2005, p. 115.  216

A derrocada dos discursos globais totalizantes (Cristianismo, socialismo e cientificismo), ofertavam espaço para um corpo liberto das amarras ideológicas, daí o uso abusivo de drogas, o movimento beatnik, hippie, feminista, ecológico foram algumas das consequências dessa liberação (SANTOS, 1986).  

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A revista "De Stijl" foi uma publicação iniciada em 1917 por Theo van Doesburg e alguns colegas, que viriam a compor o movimento artístico conhecido por Neoplasticismo, movimento estético que teve profunda influência sobre o design, artes plásticas e sobre a poesia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/De_Stijl> 

Figura 32 – Lygia Clark. “Máscaras sensoriais”, 1969.

Figura 33 – Lygia Clark. “O Eu e o Tu”, 1967.

pintura, tornou-se necessário encontrar outro lugar para a pintura, o que levou o pintor holandês Piet Mondrian a propor a ela uma integração maior à vida cotidiana. Havia mais do que um rompimento. Podemos dizer que havia aspectos subjetivos e simbólicos, mais do que puramente formais e estéticos, envolvendo a transladação da pintura (em Lygia) para o cotidiano e a relação com o outro via objetos relacionais e práticas terapêuticas. “Havia um rompimento com um contexto cultural em que pintura, quadro e moldura se apoiavam”.218 Assim, no que concerne às proposições de Lygia, Gullar pontua: “Não se trata mais de integrar a arte na arquitetura, mas de integrá-la no espaço mesmo, em pé de igualdade com a arquitetura. A obra funda o seu próprio lugar. Esse lugar pode ser uma residência, um edifício público ou um museu (...)”.219

Observamos nas obras participativas de Lygia, que a inclusão do outro ocorria por meio de práticas corporais/sensoriais, que ligavam as obras a um meio de produção de atividades manuais e pré-industriais. Os materiais utilizados para confecção de seus objetos eram bastante simples: borrachas de pneu, plástico, sacos de papel, folha de papel sulfite etc. A confecção em si não era difícil. Qualquer pessoa poderia executá-la posteriormente, o que fazia com que os objetos aproximassem o espectador da noção de propositor. Assim, a importância do objeto, enquanto obra de arte inalcançável e intocável, era questionada e remodelada. Isso nos faz lembrar do comentário de Bishop sobre o fato de existir, em cada época, um modo da arte participativa, que redesenha os objetos artísticos e sócio-políticos em cada contexto. Nesse caso, para Lygia o foco não era o objeto, e sim o sujeito que o manipulava. Tratava-se da relação que ele estabelecia com o objeto.

Em termos de estratégia, Lygia em um determinado momento portava-se como uma facilitadora entre objeto ou proposição e público participante. Subjaz a isso sua ligação com a psicoterapia, valorizada até hoje por alguns psicoterapeutas, como o Dr. Lula Wanderley.220 Em alguns relatos de Lygia, podemos perceber o quanto a artista mediava o processo até deixar o participante totalmente à vontade para que ele mesmo pudesse manipular os objetos.

Toco o corpo da pessoa com os Objetos relacionais, em uma espécie de massagem, para depois deixá-los por sobre o corpo, envolvendo-o. Essa etapa em que os Objetos permanecem estáticos sobre o corpo é a mais longa (cerca de quarenta

218 GULLAR, 1991, p. 106.  219 Ibidem, p. 107.  220

WANDERLEY, L.C. Artista plástico e psicoterapeuta, Lula Wanderley em entrevista concedida à profª Suely Rolnik fala sobre as experiências de Lygia Clark. Disponível em: <www.bcc.gov.br/filme/detalhe/037838> 

minutos). É quando o Objeto relacional torna-se mais forte em sua linguagem, sem a presença do toque do mediador-terapeuta, que apenas espera.221

Atualmente, ouvimos falar bastante “de um retorno ao corpo”,222 de termos como “sensologia”,223 “vitalidade do palpável”,224 “formismo”,225 revelando-nos o quanto esse retorno da tatibilidade e das “maneiras de fazer”,226 denotam um corpo operante, como também revelam o quanto as concepções de Lygia eram atemporais, como nos afirma Brett, “nessa recente tendência, há evidências suficientes de uma crise nas relações entre sujeito e objeto (...) que confirmam a profundidade e atemporalidade das percepções de Lygia Clark”.227 Podemos perceber o teor das intenções de Lygia quanto à sua vontade de que a obra fosse para além de seus pressupostos participativos estéticos e mercadológicos e exercesse uma função.

2.4. A importância do tempo e da participação nas proposições de