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II. O PARLAMENTO NO DIREITO COMPARADO

1. O Parlamento

1.2. A origem do Parlamento

Em quase todos os países europeus houve instituições políticas genericamente denominadas Parlamentos85. O exame das características estruturais e das modalidades de desenvolvimento das funções específicas revela uma grande distância entre os Parlamentos medievais e os Parlamentos modernos, distância que reflete a diferença igualmente clara que existe entre o Estado medieval e o Estado moderno. Contudo, se descermos aos princípios fundamentais e ao núcleo funcional (representação, controle, elaboração de normas) que caracterizam as instituições parlamentares tanto velhas como novas, poderemos descobrir elementos de continuidade. Entre os Parlamentos medievais e modernos há enormes diferenças, quer se considere sua composição, seus poderes ou duração.

O desenvolvimento dos Parlamentos não se deu de forma uniforme, por exemplo, na Inglaterra em relação aos demais países do continente europeu. Na verdade, a primeira teve uma evolução singular que a distinguiu sensivelmente entre as experiências dos demais países, o que acaba por justificar a singularidade e originalidade da evolução política inglesa.

A partir do ano de 1066, a Inglaterra, passou a apresentar uma organização político-social muito diferente do resto da Europa, onde reinava, na sua plenitude, o sistema feudal e a grande descentralização do poder. Enquanto na Europa o poder real foi gradativamente impondo-se sobre o poder da nobreza, vencendo-a em lutas ou atraindo-a mediante aparentes concessões, na Inglaterra a nobreza preferiu aliar-se aos comerciantes numa luta em busca de limitações das atribuições do poder régio.

Já no século XII, o rei inglês era auxiliado por um órgão denominado concilium, do que faziam parte barões e vassalos importantes da coroa86. Esse órgão, como o nome

85 Os Parlamentos eram conhecidos por nomes diferentes, conforme o país (Estados Gerais, na França e no

Piamonte; Estamentos, na Sardenha; Parlamentos, na Sicília e em Nápoles; Cortes, na Espanha). Embora num primeiro momento fossem constituídos pela nobreza e pelo alto-clero, num segundo momento, sobretudo para compensar o predomínio dessas duas ordens, os príncipes tiveram que intervir passando a convocar também o terceiro estado, mas este só por intermédio de seus representantes, enquanto os dois primeiros se faziam representar em si mesmos pela totalidade dos seus estamentos. O terceiro estado, por ser muito mais numeroso, só se fazia representar por seus escolhidos-eleitos que vinham, como era usual na época, munidos de mandatos imperativos (BASTOS, Celso Ribeiro; Martins, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. v.4. t.1. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 4-5).

86 Na Idade Média o Rei da Inglaterra tinha, como todos os demais reis europeus, a sua Cúria ou Corte. Um dos

deveres dos vassalos era aconselhar o seu senhor e ajudá-lo no desempenho das obrigações do mando. Mas quando o governo se tornou mais complexo deu-se uma diferenciação: havia certos nobres e clérigos que estavam sempre junto do Rei e o acompanhavam por toda parte, auxiliando-o a despachar os negócios públicos e a julgar os processos judiciais, enquanto a maioria dos barões e dos prelados residia nas suas terras e só vinha a ter com o Rei quando este os convocava para se pronunciarem sobre questões importantes e decidirem causas judiciais de maior vulto. Os que andavam sempre com o rei formavam o seu Conselho (CAETANO, Marcello.

indica, era meramente opinativo, não tendo poder decisório, salvo em matéria judicial, quando funcionava como Corte Superior. Esse concilium era conhecido também como Parlamento87.

O desenvolvimento do Parlamento inglês prosseguiu no tempo e atingiu a evolução para a bicameralidade (duas câmaras), conforme dá explicação Marcello Caetano:

Aconteceu, porém, que o médio e o baixo clero se desinteressou da intervenção no Parlamento, preferindo reunir-se em assembléia própria. Ficaram unicamente os bispos e abades dos grandes mosteiros que acorriam às reuniões na qualidade de senhores de vastos domínios e que, por esse motivo, se juntaram aos nobres, visto terem interesses análogos, reunindo com eles em separado dos comuns: em 1332 já as reuniões do Parlamento se faziam em duas salas (câmaras ou casas, houses), a dos lordes espirituais e temporais e a dos comuns, embora as petições e resoluções fossem apresentadas ao rei, em nome de todos, pelo Lord Chanceler. Ora em 1377 os Comuns, em vez de irem pedir ao Lord que servisse de intermediário entre eles e o monarca, elegeram de entre si um Speaker, isto é, um representante que fosse falar ao rei em nome deles, conquistando deste modo a autonomia. A estrutura do Parlamento, a regularidade do seu funcionamento e outras prerrogativas resultam assim do costume e ainda hoje o presidente da Câmara dos Comuns se chama

Speaker.88

No século XIII, ocorreram modificações importantes. O Parlamento, composto de prelados e barões, passou a se reunir periodicamente e ficou a seu critério atender ou não ao rei nas suas solicitações de aumentos de impostos. Já na Magna Carta, extraída do rei João Sem Terra, fica claro que nenhum subsídio ou auxílio seria imposto no reino a não ser com a aprovação do seu Conselho. Esse Magnum Concilium mais tarde transformou-se num dos ramos do sistema representativo da Inglaterra, qual seja, a Câmara dos Lordes, enquanto a representação popular identificada no início com a burguesia iria centrar-se na Câmara dos Comuns.

Durante a segunda metade do século XIII, o Parlamento tornou-se cada vez mais representativo, nele incluindo representantes de toda a nação segundo as camadas sociais em que estava dividida: nobreza, clero e burguesia. De outra parte, a Câmara dos Comuns

87 A certidão de nascimento do Parlamento, no entanto, pode ser identificada no ano de 1265, em que Simon de

Monfort convoca dois cavalheiros de cada condado para participar do Grande Concilium, ao lado dos prelados e barões, procedimento que ingressa numa linha de regularidade com Eduardo I (1295). Já no fim do século XIII, nos termos dos registros constantes dos anais ingleses, há referência à convocação da assembléia nos moldes de

parliament model. A seu turno, o ano de 1351 constitui relevante marco: o da configuração bicameral do

parlamento britânico. Assim, consolida-se a separação entre Câmara dos Comuns, a abrigar os deputados, representantes dos condados, e Câmara dos Lordes, reservada aos prelados e eclesiásticos (CAGGIANO, Monica Herman Salem. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri: Manole, 2004.p. 7).

As assembléias gerais dos barões do reino e dos prelados, abades e representantes dos cabidos, constituíam o Magnum Concilium que já no século XII o rei convocava para pedir dinheiro, concedido sob a forma de imposto, mas só por um ano, o que forçava à reunião freqüente com tendência para a anualidade. A votação dos impostos era muitas vezes condicionada à aceitação pelo rei dos bills ou pedidos de providências legislativas, equivalentes aos agravamentos das nossas Cortes medievais (CAETANO, Marcello. Manual de ciência política

e direito constitucional. Tomo I. Coimbra: Almedina, 2003, p. 50-51).

fortalecia-se cada vez mais, processo esse que era o reflexo da crescente participação da burguesia na economia da época. No final do século XIII, consagra-se definitivamente o princípio básico do Estado Liberal, que exigia para instituição do imposto a autorização do órgão representativo (no taxation without representation). A partir de então, o sistema representativo foi consolidando-se gradativamente com a constante transferência de poderes do rei para o Parlamento. O controle sobre o primeiro por parte deste último consagrou-se definitivamente com a Revolução de 1688, quando ficou certo que as despesas autorizadas pelos Comuns o seriam para um fim certo e determinado. Os princípios básicos de regime representativo resultaram estatuídos para sempre: a transferência de poderes do povo para os governantes mediante eleições; a representação integral do povo por parte dos eleitos ainda que o tenham sido por uma zona eleitoral apenas; a liberdade dos mandatários no exercício do seu mandato; a temporariedade destes.89

O século XIX é o grande período do desenvolvimento dos novos Parlamentos. Na Inglaterra, na França (excetuados os períodos imperiais), na Bélgica, na Holanda e na Itália, o Parlamento constitui-se o centro do debate político, estendendo progressivamente a sua influência ao governo. A monarquia constitucional cede o lugar ao regime parlamentar, que tem como fulcro a responsabilidade do governo perante o Parlamento. Naturalmente, esta transição não acontece sem inquietações e conflitos: suas etapas estão marcadas por votos de censura parlamentar, por dissoluções antecipadas das câmaras por parte do rei com o fim de lhes bloquear o desenvolvimento, e por verdadeiras crises constitucionais. Mas no começo do século XX, o conflito entre o Parlamento e a monarquia já se havia resolvido, em quase todos os países europeus, a favor do primeiro.90

“Essa lenta, porém contínua, trajetória preordena a idéia vetorial a acompanhar

a formatação dos parlamentos até os nossos dias, no sentido de identificá-los como cenários a albergar os representantes do povo”. 91

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