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A participação das crianças no planejamento dos acontecimentos

3.3 O interior das salas de aula: tensões e práticas homogeneizadoras

3.3.2 A participação das crianças no planejamento dos acontecimentos

Nas conversas com as professoras durante toda a pesquisa, houve apenas uma referência aos direitos das crianças ou sua participação política, temas abordados reiteradamente nos debates sobre as infâncias e nas legislações.50 Apenas a professora Anita, na ocasião do Conselho Consultivo Escolar, pontuou a importância das crianças participarem e exporem seus pontos de vista sobre os acontecimentos na escola. Este Conselho previa a participação das crianças, seus familiares e profissionais da escola numa reunião onde seria realizada uma avaliação do semestre escolar. Porém, de última hora, acabou acontecendo entre os pais, diretora e professora de cada turma separadamente, sem a presença das crianças, já que estava “muito corrido, final de semestre, festa junina pela frente, muita coisa para organizar”, segundo a diretora. Apresento o registro voltado a esse acontecimento:

Hoje foi o dia de Conselho Consultivo! Uma reunião entre pais, professoras e crianças, todos

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Para Sartre (2002a), o sujeito se constitui a partir de uma dialética temporal em que os diferentes momentos temporais se relacionam entre si, criando sentidos às suas vivências e produzindo suas possibilidades e experimentações de ser (o que marca seu processo de totalização, retotalização e destotalização). Nessa direção, é necessário que este futuro se coloque para as crianças menos como uma normativa e de modo abstrato, mas sim que seja vivenciado já como uma possibilidade concreta, relacionado a suas experiências e mais aberto à diversidade.

50 Santos e Chaves (2010) questionam a falta de políticas públicas e do interesse da escola em discutir diretamente os direitos das crianças.

juntos, para falar do semestre e da escola. Tinha imaginado como as crianças iriam se colocar, como seriam ouvidas...no pátio, no início da manhã, comentei com as crianças que eu estava animada com a reunião...elas pareceram desinformadas, comentando confusas que achavam que seria a noite [...] na sala de aula a entrada da professora de artes trouxe a notícia das mudanças no formato da reunião: só participariam pais, direção, coordenação pedagógica e professoras. As crianças ficariam ensaiando as danças para a festa junina. Elas ficaram felizes e eu frustrada com a decisão. Quando questionei a professora Anita ela disse “eu não gosto desse tipo de coisa...o bom era com as crianças, para falarem o que estão achando...o que menos se pensa é nas crianças, querem agradar os pais, a Secretária de Educação...”. (Diário de campo, 10/07/2012).

A percepção de Anita revela a complexidade que envolve a participação das crianças nas decisões coletivas na sociedade, seja dentro da escola ou fora dela. Para Kay Tisdall (2011), apesar de projetos que preveem a inclusão das crianças como partícipes nos debates que envolvem suas vidas escolares, em geral essa participação acontece num sentido “fraco”, mais restritas a um caráter pedagógico e de elogio às ações participativas, do que “fortes” de participação, que tenham de fato impactos na vida dos envolvidos.51

A ausência das crianças no planejamento do dia-a-dia escolar se confirmava, igualmente, na decisão sobre como as atividades poderiam ser realizadas em sala de aula, a respeito da disposição e organização da mobília ou dos próprios espaços, bem como nas mudanças bruscas de atividades sem aviso prévio ou preparação junto às crianças, como fica claro no registro abaixo:

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No Brasil, de acordo com Udi Mandel Princeswal (2011), existem iniciativas comunitárias e projetos governamentais que tentam pensar estratégias para a popularização da participação infantil, contudo, faltam aprofundamentos teóricos sobre o conceito. Porém, e complexidade dessa temática encontra limites no debate proposto por essa tese.

As crianças estavam na aula de matemática. De repente entraram na sala duas profissionais vestidas de jaleco branco e distribuindo uma escova de dentes para cada criança (ao mesmo tempo questionando se tinham guardado as escovas “da vez anterior” em que estiveram lá): era o projeto de escovação de dentes promovido pela Unidade de Saúde. As crianças pararam imediatamente o que faziam e sem muitas palavras se dirigiram para o hall, ouviram as orientações, escovaram os dentes e retornaram à sala (mais descontraídas). Voltaram à matemática. Em minutos soou o apito para o recreio. Após o recreio foram direto para a aula de artes. Eles não estavam esperando ou foram preparados para as mudanças de atividades. Senti o mesmo incomodo do encontro anterior ... as crianças mudam de uma atividade para outra sem organização/orientação dos adultos... Elas executam. Não parecem se importar tanto, contudo, se resignam…(Diário de campo, 21/06/2012)

Pude antever que as crianças, ao não serem incluídas no planejamento das atividades (debate, preparação, duração) e na tomada de decisões em relação a elas, mas, vivendo-as, acabavam por não produzir uma compreensão mais elaborada, dando um sentido efetivo às vivências no espaço da sala de aula. Com Sartre podemos pensar que, ao permanecerem a maior parte do tempo executando tarefas, sem conseguir abstrair o contexto nas quais estas se inseriam, as crianças tinham, consequentemente, entraves para se perceberem como produtoras dos acontecimentos, com potencial para protagonizar no espaço escolar e não apenas serem passivas nele.

De acordo com Sartre (1994), as ações dos sujeitos só ganham sentido na ação de apropriação, seja esta mais alienada ou mais crítica. Quando mais alienada, os sujeitos tendem a se apropriar repetindo pontos de vista já consolidados em suas vidas, decorrentes e restritos a suas próprias experiências anteriores; quando mais críticas, utilizam-se de novos elementos da realidade, refletindo-os, tendo a oportunidade de transformar saberes até então constituídos. A escola, como espaço de intervenção junto às infâncias, especialmente planejado teórica e metodologicamente, poderia propiciar o contato com estes novos

elementos através da mediação dos professores e outros profissionais, propostas curriculares, atividades e diálogos.

Como defende Suely Mello (2006, p. 94), a participação das crianças na organização das atividades é imprescindível na escola, sendo o que permite ao processo de ensino ser “essencialmente colaborativo”, protagonizados por adultos e crianças. Nesse sentido, as crianças encontravam no espaço da sala de aula um “não-lugar”, conforme caracterizou Santos (2009), pois não conseguiam imprimir suas características de modo significativo nas atividades que realizavam, tornando invisíveis uma gama de ações pessoais no meio social mais amplo.

Na visão das professoras no contexto de uma entrevista coletiva, um dos aspectos que explica as inadequadas posturas das crianças na escola é a própria condição que têm para viverem suas infâncias na contemporaneidade. As crianças só “querem ter”, “não sabem mais brincar”, e os pais corroboram com isso quando são excessivamente “permissivos”. Para uma das professoras, as crianças “... acham que é tudo de mão beijada. Eles não pensam. As crianças não pensam nada, acham que tudo é fácil, porque pediu, abriu a boca ‘boom’...”. Partindo da crença numa infância universal e ideal, as professoras concluíam que “as crianças não estão sendo mais crianças hoje em dia”, estão “sem limites... não tem mais respeito aos pais e aos adultos como um todo”52, realidade diferenciada da vivida em suas próprias infâncias “no meu tempo não era assim” (Contrariando essa tese, ao descreveram seu dia-a-dia fora da escola, as crianças revelavam que brincavam na rua e no quintal, andavam de bicicleta, jogavam bola, brincavam com primas/os e dentro de casa brincavam com jogos no computador, assistiam televisão, demonstravam conhecimento de brincadeiras tradicionais).

Essa compreensão das professoras, por um lado, levava a uma dificuldade no trabalho escolar, na forma de darem aulas e na própria motivação em ser docente desse público, além de personificar os clássicos embates entre escola e família, que muitas vezes estabelecem um jogo de desautorizações e desqualificações que enreda a criança. Por outro lado, a tendência implícita nessas reflexões de parte das

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Postman (1999) apresenta um debate a respeito do desaparecimento da infância, atribuindo esse fenômeno a imprecisão de fronteiras entre o mundo adulto e o infantil calcada na erotização infantil, na exposição das crianças à mídia e às temáticas das quais antes ela ficava protegida.

professoras levava a considerar as crianças como consumistas, aproveitadoras, inconsequentes, desqualificando-as como fontes de saber e, com isso, excluindo suas condições de participação nas decisões que envolvem as suas vidas na escola, a organização coletiva e, por conseguinte, o exercício de cidadania.

A inteligibilidade de uma das professoras, por exemplo, se amparava numa visão sobre as infâncias em que as crianças “não querem nada com nada”, “não têm limites”, “só querem brincar na escola”. Ao proceder assim, encerrava as crianças na perspectiva do brincar, porém, não entendendo essa ação em sua dimensão positiva, como uma prática sociocultural lúdica que produz culturas e processos de subjetivação, como propõe Vigotsky (1984), mas sim de “não levar nada a sério”, atribuindo ao brincar uma importância social menor e um sentido de descompromisso com a realidade social, invisibilizando outras ações das crianças.

Para Kramer (2011), essa visão corrobora com um processo de infantilização das crianças, retirando-lhes a condição de importantes agentes sociais e desconsidera, também, o fato de que a ludicidade é parte do cotidiano infantil, mas não expressa sua totalidade. Ou seja, as crianças, não brincam “apenas”, mas assumem responsabilidades no cotidiano escolar e familiar. Tanto as meninas quanto os meninos revelaram que auxiliavam nas ações domésticas em casa, realizando tarefas tais como: varrer a casa, arrumar seu quarto, secar a louça, limpar o quintal, cuidar dos irmãos ou prima (principalmente as meninas), ajudar o pai no seu trabalho, como o caso de Marco – seu pai era marceneiro - “eu ajudo meu pai a fazer entregas”. Também assinalaram sua atenção aos acontecimentos familiares contando histórias de saúde e doença dos mesmos, preocupando-se com o futuro dos pais “quando eu crescer vou ser motorista de ônibus como o meu pai, para poder cuidar dele quando ele tiver bem velhinho” (Jonas), “não sei se vai ser bom para minha mãe casar de novo ou não” (Fernanda), ou com o passado dos pais “minha mãe quando era criança tinha que trabalhar bastante e quase não estudou” (Sandra). Demostravam com isso, o quanto estão introduzidos/as na realidade social, sendo afetados/as, pensando e agindo sobre ela.

Contrariando a visão de que “não querem nada com nada”, apesar de muitos gostarem de faltar às aulas, o que parecia legítimo em dias de chuva quando as salas de aulas ficavam esvaziadas, ou quando tinham consultas de saúde agendadas nas unidades básicas de saúde do SUS, outros lamentavam o fato de não poderem estar presentes. O choro

de Júlio foi comovente numa ocasião em que chegou atrasado na escola, já durante o recreio, em função de uma consulta médica. Dirigiu-se à sala de aula chorando e passou a copiar a matéria de matemática (que mais gostava) exposta na lousa. Chorando muito disse “eu não gosto de faltar, eu não queria faltar”. Este menino, em algumas situações chegava na escola um pouco atrasado, quando as crianças já estavam acomodadas na sala de aula e com expressão de quem havia chorado. Anita explicou que a mãe vinha passando por um problema sério e que as “as coisas não estão fáceis na casa dele”.

Em relação ao funcionamento das aulas as crianças também demonstravam capacidade de análise ao manifestarem avaliações, tais como “às vezes a gente fica sem fazer nada, a gente acaba e a professora não passa mais nada, a gente tem que ficar esperando...é chato, ela podia fazer alguma coisa diferente, não sei” (Sofia). Em outra ocasião Sofia e Marine também pontuaram:

Sofia - Zu, hoje nós fomos passear... na escola. A professora não passou nada, só matemática... e no final, depois, tivemos aula de artes....fomos passear...

Marine - teve um dia de chuva que só fui eu, a Fabi e o Carlos.

Interessante relacionar que a invisibilidade do ponto de vista das crianças, de outras ações que marcam seu cotidiano, suas condições de avaliar e participar e a perspectiva de brincar como pouco importante e praticamente a única atividade na infância, esteve presente na própria definição do que é ser criança dada pelas crianças. Ou seja, as crianças se colocavam nesse lugar, quando também definiam a infância como um espaço/tempo só de “aproveitar”. Seguiam as definições sobre ser criança citadas pelo quarto ano, anotadas na lousa por Karen enquanto as crianças verbalizavam: é brincar, ser livre, fazer farra, passar trote, esportes – skate, comer porcarias/besteiras, não ir à escola em dias de chuva, fazer compras com pai e mãe, comprar sorvete, ir para a praia, ver desenhos, respeitar os mais velhos, ver Galinha Pintadinha. Após essas primeiras definições, dadas animadamente pelas crianças, perguntei novamente se tinham algo mais a colocar. Seguem meus registros:

Simone complementou a definição do que era ser criança: “é estudar”. Isso provocou no grupo alguns comentários como “ah não”, “não é”, é muito chato”. Simone era uma menina quietinha,

que era excluída normalmente pelo grupo já que as crianças achavam-na “esquisita” e a professora achava “ela tem problema, já falei até para mãe, mas não querem ver, então eu lavo as minhas mãos”, ou seja, o que ela proferia não tinha valor naquele espaço. Outra opinião foi dada por Ricardo (aluno que permaneceu na escola por duas semanas apenas) “ser criança é aprender a fazer coisas...adulto trabalha, manda na casa e nas crianças, entram em boates e fazem coisas interessantes e criança não pode”. Nessa altura ninguém ouvia mais, corriam pela sala, dispersos. Na correria, porém, escuto Beto e Afonso rindo e falando “é bater punheta”. (Diário de campo, 29/08/2012).

Essa perspectiva também ficou visível nas definições sobre o que é ser criança pelas crianças do terceiro ano, com termos como Júlio -“safadinho”, Jonas -“bagunceiro”, e outras vozes que repetiam “brincar”, “se divertir”. As crianças do quinto ano apressaram-se em esclarecer que não eram mais crianças e em coro sintetizaram que a vida delas agora era “só PC, PC, PC...!”.

O foco dado pelas crianças a tais concepções e práticas em muitos momentos construía suas possibilidades no espaço escolar e suas próprias infâncias. Igualmente parecia refletir a incerteza em relação a seu próprio potencial de ação e participação no processo de ensino- aprendizagem, bem como compor um dos elementos para justificar o não engajamento ou permitir certo descompromisso frente a algumas atividades escolares, tornado a escola chata e fazendo-os recusar atividades que exigiam reflexões, maior atenção e concentração ou dedicação, como a atividade da escrita, assim como favorecendo a reprodução de práticas escolares tradicionais. As crianças do quinto ano, em nossos encontros, não recebiam bem as propostas de atividades de escrita ou as que envolviam maior tempo de reflexão e diálogo conjunto. Mesmo outras atividades ficavam comprometidas pelas conversas paralelas que estabeleciam entre si e comigo e pela agitação, especialmente dos meninos, que corriam muito na sala, esbarrando na mobília, rindo e provocando as meninas que, mesmo permanecendo sentadas, respondiam suas provocações. Apresento registro de um episódio vivenciado no quinto ano:

Os quatro meninos circulavam o tempo todo pela sala, se empurravam, sentavam numa cadeira com

rodas que tinha no fundo da sala (que eles eram proibidos de mexer, descobri depois). As meninas mantinham-se sentadas, em duplas ou trios, trocando palavras entre si ou não [...] eles corriam e se empurravam sem parada, às vezes empurravam as meninas, riam muito, elas rebatiam com um grito de reclamação e logo riam também. Travavam embates verbais entre si, e divertiam-se com isso, tudo era uma brincadeira... (Diário de campo, 23/08/2012).

O diálogo abaixo evidencia outros aspectos, a captura das crianças pelo lazer programados e pelas tecnologias, que igualmente congregam tal compreensão de infância:

Eu - vocês concordam com aquela frase: lugar de criança é na escola?

-não!

Marine- por mim, eu não estudava nada Talita- no computador e no face Marine- na cama

Ana- fazendo bagunça Carlos- no Brinca Mundi Sofia- no Beto Carreiro

Aqui podemos antever que, para além de uma infância institucionalizada, contexto em que a família e a escola ganham destaque, a introdução das mídias eletrônicas e da indústria cultural e do lazer para a infância que torna as crianças consumidoras dos mesmos produtos na direção de uma globalização, como ressalta Sarmento (2005), também interferem nos entendimentos sobre as infâncias e deslocam valores atribuídos à escola, tendo repercussões nos modos de vivenciar o espaço escolar, em especial o da sala de aula, que aparece sem atrativos suficientes para elas.

Para Aquino (1996, p. 45), muitas vezes a escola “é incapaz de administrar as novas formas de existência social concreta, personificadas nas transformações do perfil de sua clientela”, não absorvendo um novo sujeito histórico, seja ela/e aluna/o ou professor/a. Na escola estudada, o descompasso geracional que marca as dinâmicas institucionais era expresso nas contradições das práticas pedagógicas ali efetivadas e nas elaborações sobre as infâncias feitas pelas professoras “as crianças não estão sendo mais crianças hoje em dia”, “no meu tempo não era assim”. Esta realidade dá sentido ao questionamento de

Julia (2001, p.37), num tempo de intensa individualização de crenças, televisão, internet, e o projeto de universalização, “o que sobra da escola após a escola?”.

3.4 Outros espaços na escola: brechas para outras experiências