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3.1 Trajetória metodológica realizada na escola

3.1.1 Uma nota sobre fazer-se pesquisadora no contexto escolar:

Pensando na especificidade do grupo estudado, destaco que as brincadeiras que envolviam movimentos corporais, jogos e desafios,

bem como materiais artísticos foram melhor aceitas pelas crianças de todas as turmas. Já a linguagem escrita ou a produção textual era um recurso pouco produtivo por, pelo menos, dois motivos. O primeiro, esse era um tipo de proposta associado às tarefas escolares, que as crianças recusavam francamente; e o segundo, para muitas crianças, havia dúvidas quanto à maneira de escrever as palavras corretamente e quanto à elaboração de frases. Por isso, esse recurso se mostrava limitado como fonte de informações. Assim, pude explorar a escrita em atividades pontuais, onde pedia para que caracterizassem brevemente algumas situações, sentimentos, informações, etc.

Com relação à linguagem oral, parecia inicialmente haver duas dificuldades principais: a restrição de respostas verbais imediatas, mais elaboradas e extensas aos questionamentos feitos por mim, e o fato de que na maioria dos momentos, as crianças, meninas e meninos, não queriam conversar “sério” (sob o meu ponto de vista), elas queriam brincar comigo e entre si, fazer coisas divertidas, rir. Preferiam, nos momentos em que estavam comigo, não fazer nada relacionado com a sala de aula e com a concentração exigida no ensino escolar. Associadas a esses elementos, as diferenças de idade entre nós originavam formas diferentes de utilizar as possibilidades linguísticas e de abstração que permitem a compreensão de conceitos mais elaborados.34 Esses aspectos geraram insegurança de minha parte, até o momento em que pude perceber o quanto minha postura ainda era norteada por noções adultocêntricas e etnocêntricas, ou seja, a forma como eu fazia as questões para as crianças e esperava por respostas não tinha sentido para elas e nem a urgência que tinha para mim (além disso, não acordavam com minha proposta etnográfica).

Para Demartini (2009, p.14), essa é uma das questões no estudo com gerações mais novas “como incorporar e trabalhar no processo de pesquisa com as diferenças de interesses, projetos e referenciais entre pesquisadores adultos e sujeitos-crianças”. Cruz (2010, p.16) também problematiza esse aspecto quando afirma que “adultos e crianças apresentam possibilidades distintas de compreensão das experiências que compartilham (as quais devem ser igualmente valorizadas e

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Sawaya (2001) pontua a partir do trabalho com crianças de camadas populares que elas têm uma rica linguagem, mas que precisam encontrar interlocutores para efetivá-las, sendo que a instituição escolar (e eu acrescento os/as pesquisadores/as) nem sempre está preparada para lidar com outras culturas, preferindo diagnosticar pobreza na linguagem das crianças.

analisadas), a situação de pesquisa inverte o que a prática cotidiana usual entre adulto e criança geralmente estabelece”. Assim, me esforçava para usar um vocabulário bastante objetivo, claro e acessível possibilitando o entendimento e, com isso, a viabilização de meus propósitos nas atividades realizadas. Do mesmo modo, estabelecia outra relação com o tempo, já que as respostas aos meus questionamentos não vinham de modo imediato ou direto, mas conforme o tempo compartilhado com as crianças, quando eu menos esperava, em situações diversas, enquanto realizávamos atividades díspares, nem sempre apenas verbais. Os assuntos e as opiniões se sobrepunham, criavam sentidos no conjunto ou, ao contrário, aniquilavam-se quando estavam em conjunto, dinâmica com a qual fui me familiarizando.

Diante dessas experiências, refleti com Demartini (2009) sobre a importância de trabalhar com aquilo que não é dito, ou com aquilo que é dito de modo sintetizado em uma palavra. Concordei, também, com Da Matta (1981) quando este ressaltou que o método etnográfico marca comutação e mediação, na medida em que pretende uma ponte artesanal e paciente, que depende das pessoas e suas particularidades emocionais, culturais entre dois universos culturais de significação, o do/a pesquisador/a e do/a pesquisado/a. Essa postura de “estar junto” e de “espera” parece ter favorecido a proximidade e confiança das crianças em relação a mim, já que me colocava na postura de aprendiz, desejante para saber de seus saberes, o que de certa forma as empoderava como crianças naquele espaço institucional. Para além disso, possibilitou parceria e amizade entre nós, importante aspecto da etnografia, tal como mostrou Corsaro (2009, 2011) em suas pesquisas com crianças pequenas.

Desse modo, o desafio de romper com as posturas adultocentradas na pesquisa com as crianças foi preocupação constante. Estas no início da pesquisa na escola também estavam presentes não apenas em expectativas, mas em minha preocupação com o barulho excessivo que as crianças poderiam fazer quando estavam comigo em sala de aula e com o cuidado que deveriam ter no uso de alguns materiais da escola - que a mim foram disponibilizados para realização de atividades com elas - situações que geravam certa tensão configurando-se como um entrave no trabalho em alguns momentos. Berry Mayal (2005) e de Martin Woodhead e Dorothy Faulkner (2005) assinalam que as diferenças intergeracionais entre adultos e crianças, e as relações de poder nelas inerentes não devem ser ignoradas na pesquisa. O adulto legalmente, culturalmente, afetivamente não pode

eximir-se da responsabilidade diante das crianças. Ser adulta exige posicionamentos diante de princípios, valores e implica a responsabilidade de “filtrar” o que chega até as crianças (SANT’ANA, 2010), o que não deve indicar uma relação de desigualdade, mas sim de alteridade e reciprocidade.

Importante destacar que não foram apenas algumas expectativas e atitudes adultocêntricas de minha parte que tiveram que ser repensadas, mas dos professores e também das próprias crianças, aspectos nem sempre problematizados na literatura sobre o tema. Havia certa expectativa inicial por parte da comunidade escolar, de que eu corroborasse com a disciplinarização das crianças e também a busca de cumplicidade no “diagnóstico” sobre as crianças, vindo também de duas mães (agravado pelo fato de eu ser psicóloga). Nos dois aspectos adotei uma posição de escuta e não alimentei a continuidade dos assuntos, demarcando minha função como pesquisadora e sendo, gradativamente, respeitada nesse sentido.

Também as crianças na escola, inicialmente, adotavam algumas posturas de espera por minha iniciativa e orientação, direção, habilidade e conhecimento nas diferentes atividades, associado ao entendimento de que eu teria que apassivar todos os conflitos entre elas, especialmente entre meninas e meninos, o que fazia com que se queixassem umas das outras para mim. Em muitas situações “esqueciam” de me chamar pelo nome, mas sim como “professora”. Aos poucos fui desconstruindo esse tipo de relação e elas puderam propor e participar mais ativamente, mostrando-se mais autônomas e permitindo que eu me colocasse também como aprendiz de diversos aspectos que desconhecia a respeito de seus modos de vida e de sua escola.

Autores como Quinteiro (2002), Ferreira (2006) e Leite (2011) ressaltam a dificuldade de realizar etnografia nas escolas, justamente pelo fato das relações intergeracionais estarem “viciadas” nesse contexto, o que torna a conquista de um lugar de pesquisadora nesse tipo de instituição um desafio. Ou seja, o adulto na escola, tradicionalmente, ocupa um lugar hierarquicamente superior, de poder e de saber, ele ensina e a criança aprende com ele, ele protege, sabe o que é melhor para as crianças e elas devem obedecer e atender mediante comportamentos disciplinados. Essas, portanto, são posturas esperadas nesse contexto, não apenas pelos adultos, mas pelas próprias crianças, às quais o/a pesquisador/a deve estar atento/a para não compartilhar e reproduzir.

Dessa forma, com o tempo, na escola, passei a não me incomodar tanto com materiais ou barulhos e nem com o olhar angustiado das professoras em momentos em que as crianças realmente bagunçavam durante as atividades que realizavam comigo. Em especial, porque tive certeza de que construía um espaço, como adulta, diferente de outras/os adultas/os que ali compunham o cenário escolar. Algumas cenas denunciaram isso, tais como quando para entrar na sala de aula, as crianças do terceiro ano orientaram-me a ficar na fila das meninas e ser a última já que eu era mais alta; quando questionaram porque eu não estava comendo a merenda da escola (enquanto nenhuma das pessoas adultas ali o faziam); quando utilizavam comigo uma linguagem pautada nas gírias que utilizavam entre si e estabeleciam conversas com assuntos diferentes dos que usavam para interagir com outros adultos na escola; quando faziam confidências sobre suas relações na escola ou lançavam a mim olhares cúmplices em momentos “difíceis” diante das exigências das professoras; quando me convidavam para brincar de pega-pega no recreio; quando não permitiam que eu ficasse de fora dos questionamentos ou de manifestar a minha opinião, tanto quanto elas, sobre os assuntos dos quais tratávamos.

Tendo feito estes esclarecimentos sobre a metodologia empregada, prossigo o texto apresentando as crianças participantes da pesquisa, minhas principais interlocutoras na escola.