• Nenhum resultado encontrado

Sentidos paradoxais da escola para as crianças: entre o dever e

3.3 O interior das salas de aula: tensões e práticas homogeneizadoras

3.3.1 Sentidos paradoxais da escola para as crianças: entre o dever e

As vivências escolares relacionadas às dinâmicas relacionais presentes em sala de aula e na formatação dada pelas atividades regulatórias, diárias e anuais, que atingem a vida cotidiana das crianças sustentavam um dos sentidos que as crianças da pesquisa atribuíam à

escola, percebendo-a como obrigação e trabalho. Ao fazerem considerações sobre ir à escola, as crianças opinaram:

Andréia – é obrigação

Rose – acordar de manhã é chato Lucas – obrigação

Andréia – não gosto Heitor – não gosto [...]

Grazi - por mim não precisava escola [diversas vozes em concordância]

Eu- Mas não tem nada de bom? Vi antes de ontem vocês escrevendo as poesias...

Coro - Não, não... é chato.

Heitor - é bom para ter os amigos, encontrar os amigos...[diversas vozes em concordância] Grazi – aprender cansa

Mateus - Ter que ficar parado, sentado nas carteiras, é muito chato.

José – o legal é a aula de informática. [...]

Ana- mas eu prefiro trabalhar do que estudar! …para mim é pior estudar do que trabalhar. Marine- melhor trabalhar do que estudar Ana – eu também acho.

É perceptível nessas falas, que o caráter obrigatório da escola foi comparado ao trabalho dos adultos, o que mostra que as crianças intuem a complexidade de suas ações no contexto social como um todo, embora não tenham elementos reflexivos críticos para compreender tal situação social e geracional. Importante notar que na comparação com outras gerações, as crianças marcaram não apenas os antagonismos, mas encontraram pontos de semelhança e proximidade entre o trabalho dos adultos e o dever ou a obrigação a que estão submetidas na instituição escola. Nesse aspecto as crianças indicam uma equivalência entre as atividades de cada grupo geracional (assim como o trabalho para os adultos, as atividades escolares eram vividas como obrigatórias e nem sempre consideradas agradáveis ou desejadas), sendo a diferença centrada no modo de produção empreendido. Ressalto a precária articulação entre os conteúdos aprendidos e os saberes das crianças (evidentes na falta de menções a conteúdos aprendidos na escola ou à sua dimensão epistêmica, como pontua Aquino (1996)), aulas desinteressantes, pouco lúdicas e criativas, e as próprias tarefas de casa

que personificavam a escola no espaço da casa, “tem tarefa todo dia, só não na sexta-feira”.

Behera e Pramanik (2001) ponderam que, muitas vezes, a partir de uma normatização de práticas, as crianças são submetidas a uma lógica da produtividade, sendo sobrecarregadas com tarefas escolares. Apesar de não ter sido visualizada uma sobrecarga das crianças com as atividades da escola, essa lógica se fazia presente como expectativa, por exemplo, na mãe de Paulo que discordava de alguns procedimentos da escola “por que eles não têm tarefa na sexta também? Tem todo o final de semana para fazer?! Não acho certo”. Na visita que fiz em sua casa pude observar que as tarefas escolares eram momentos sofridos não apenas para Paulo, que tinha dificuldades de apreender os conteúdos, mas também para os pais que ficavam angustiados, muito irritados, não sabendo lidar com a situação.

Para Qvortrup (2001), as atividades escolares são novas atividades sociais obrigatórias para as crianças. Sendo uma parte fixa da divisão geracional de trabalho na contemporaneidade,

a escola é uma nova forma de trabalho infantil e mantem equivalências com o trabalho dos adultos do ponto de vista da carga temporal, física e psíquica [...] e é tão insubstituível no funcionamento de uma economia e sociedade moderna como as atividades profissionais dos adultos (p.96).

Na mesma linha, segundo Helmut Wintersberger (2001, p. 139), o tempo das crianças e suas atividades “foram exigidos e, portanto, colonizados pelo novo método de produção e consequentemente elas caminharam em massa para os locais universalmente estabelecidos para o trabalho da criança moderna – a escola”.

Dessa maneira, Wintersberger (2001) e Qvortrup (2001) problematizam o caráter obrigatório da escola na vida das crianças e ressaltam a dimensão econômica nele envolvida. Contrariando a tese da nulidade das crianças ou de um peso econômico que elas promovem, os autores demonstram que as crianças estão no bojo do sistema econômico contribuindo para a manutenção de uma força de trabalho extraescolar e escolar. Para eles, o trabalho escolar tem sido visto como o oposto ao trabalho infantil, mas implica uma preparação de mão de obra qualificada de tanta importância que o próprio Estado e governo, mediante impostos pagos pela população, se responsabilizam junto com a família por sua manutenção, assumindo as despesas do sistema

educacional. Se antigamente predominava o trabalho infantil manual, que ocorria conjuntamente com o trabalho dos adultos e em maior contato com a realidade social, na contemporaneidade as tarefas das crianças residem, hegemonicamente, no trabalho intelectual, escolar, centrado na leitura, no letramento e na tecnologia, constantemente coordenado e dirigido pelos adultos, e têm sua ocorrência num espaço segregado. Sendo as atividades escolares as novas atividades sociais obrigatórias para as crianças, os autores defendem que é preciso reconhecer essa participação das crianças, evidenciando-a socialmente, também para as próprias crianças, com o objetivo de que elas percebam suas agências e sua importância para o contexto mais amplo, não somente no âmbito dos afetos domésticos, mas no âmbito dos cuidados ou do consumo.

A ação de frequentar a escola, porém, além de abarcar o sentido de obrigatoriedade e de preparação para o trabalho, também era percebida pelas crianças como um direito social, isto é, como uma forma principal de inclusão das crianças na sociedade e como garantia de igualdade de acesso e de oportunidades, características ideológicas fundantes desse espaço social, como vimos.

A teoria de Vygotski, conforme reflexões de Marilda Facci (2004), compreende que na cultura ocidental, letrada, antes da inserção no mercado de trabalho, a atividade do estudo é a atividade principal na vida das crianças e, com isso, a sistematização do conhecimento pela escola é central para o desenvolvimento infantil, no âmbito psíquico. O desenvolvimento da linguagem, a apropriação do registro escrito e da leitura, o domínio abstrato de conceitos e do pensamento científico, as produções artísticas, a interação com os pares e com os adultos que ocorrem no interior das escolas, são condições importantes para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Essas habilidades indicam novas conquistas simbólicas centrais para inclusão da criança na cultura, permitindo sua constituição como um ser social, capaz não apenas de reproduzir, mas também de transformar o contexto sociocultural em que vive, ao mesmo tempo que garantem a efetivação do direito das crianças à aprendizagem escolar, previsto em lei. Nesse enfoque vigotskyano, a escola, diferenciando-se de outros contextos, propicia o estudo sistemático, favorecendo a constituição de planos mais complexos de desenvolvimento psíquico e a apropriação de conhecimentos que extrapolam os conhecimentos espontâneos produzidos no cotidiano, sendo centrais para apropriação da cultura pela criança.

Ao referirem alguns motivos para irem até a escola e para estudar, as crianças indicaram:

Mateus - Estudar, não ficar na droga, não ser bandido, não roubar.

[...]

Sandra – para ser alguém na vida Ana - vou para escola para aprender!

Júlio – para estudar, para aprender as coisas! O que é estudar? É aprender as coisas!

Eu- mas por que a gente tem que aprender as coisas?

Ana- para não ficar burro Beth- para aprender a contar

Marine- saber matemática é importante para a gente

Beth – e também para conversar com os amigos (risos)

Em outra conversa sobre saber ler também aparece

Júlio- receber uma carta, ler alguma coisa...

Nessas falas, percebemos que a escola vem sendo apropriada pelas crianças como algo importante que busca garantir uma forma de participação no mundo social que já existe antes delas e do qual elas devem se apropriar. De tal maneira, ela possibilita as relações com o conhecimento (retirando-as de possíveis posições inferiores na hierarquia social “não ser burro”, “ser alguém” e com “um bom caminho” em relação à elaboração de projetos de vida e de estratégias para evitar a marginalidade, corroborando com a história da educação das camadas populares, analisada por Saviani 2003). Nesse sentido, ler e escrever são atividades que se configuram como aprendizagens fundamentais, direitos legais das crianças, e são predominantemente apreendidas no espaço da escola, o que faz com que entre os grupos sociais populares a escola pública seja reconhecida como uma das principais formas de mudança de modos de vida, apesar de todas as suas contradições.45

45

A fragilidade dessa promessa democrática tem se revelado tradicionalmente na história brasileira no fato de que para as crianças de camadas populares que majoritariamente ocupam as instituições de ensino públicas, especialmente as de ensino fundamental e médio, não são oferecidas as mesmas condições que para as crianças de camadas médias, que frequentam escolas privadas; e no fato de a

Conforme analisa Guiuliana Carmo Temple (2005), a aprendizagem da escrita e a leitura, bem como de acesso ao conhecimento formal e científico foram privatizadas no espaço escolar, o que faz com que a exclusão da criança desse espaço represente sua exclusão do aprendizado de sua cultura. Nessa conjuntura, podemos vislumbrar a atividade escolar não apenas como promotora significativa do desenvolvimento humano, mas como um meio de ‘empoderamento’ que favorece a condição para viver em sociedade de modo mais igualitário, pendendo mais à perspectiva da escola como um direito das crianças do que de uma obrigação. Entretanto, o processo de aprendizagem de conceitos na escola nem sempre é pacífico, o que coloca em ameaça a viabilização desse direito social.

Sobre a aprendizagem de conteúdos, na sala de aula visualizei o prazer de algumas crianças em conseguir cumprir com as atividades prescritas pela professora, “já terminei” e em auxiliar a/o colega que estava próximo a concluir também, o que evidenciava a solidariedade entre os pares e não necessariamente formas de competição e busca pelo destaque escolar, características que marcam relações escolares, de acordo com Sacristán (2005). Por outro lado, ficou visível a angústia de outras crianças que, mesmo com o auxílio das/os colegas, não conseguiam resolver as questões propostas. Era frequente algumas crianças do terceiro ano sanarem suas dúvidas comigo a respeito da escrita das palavras, momentos em que ficavam visíveis as limitações,

Mário não conseguia escrever uma frase inteira com sentido. Chamavam-me várias vezes para ajudar, para sanar suas dúvidas sobre quais letras formavam certas sílabas “como é que que se escreve casa é com que letra mesmo?”. Chico tinha uma letra praticamente ilegível e tinha dificuldade para passar ao papel a palavra que verbalizava”.

(Diário de campo, 04/07/2012).

Essa situação em especial, relacionada às dificuldades no processo de aprendizagem da escrita e da leitura promoveu nessa turma,

educação escolar não validar suficientemente a entrada no mercado de trabalho, o que faz com que o desemprego para quem tem formação escolar seja uma realidade frequente. Tal fenômeno também alimenta o questionamento sobre a efetividade e validade da escola nos dias atuais.

ao longo do ano, a segmentação entre os bons alunos e aqueles que tinham “déficit de aprendizagem”. A partir do mês de outubro, quatro crianças do terceiro ano (três meninos e uma menina) passaram a ocupar um espaço diferenciado em sala de aula para execução de tarefas especiais, de reforço. Muitas vezes a tarefa era fazer uma cópia mecânica de sílabas e formação de algumas palavras, prática que acentuava a lógica do aluno copista e reforçava experiências de fracasso escolar, como analisa Temple (2010).46 Essa decisão criou um micro espaço de segregação dentro da escola (espaço já segregado), em que as atividades lá realizadas, calcadas no caderno de reforço e na cópia, mantinham as crianças ora irrequietas (buscando amigos para conversar, o que não agradava a professora, gerando mais conflitos e embates), ora apáticas e desmotivadas frente ao estudo.

A decisão por essa segmentação47 deveu-se, segundo a professora Anita, à solicitação da Secretaria da Educação para fazer relatórios e atividades diferenciadas para alunas/os com “problemas de aprendizagem”, chegada há pouco mais de dois meses antes do término do ano. Esse conjunto de aspectos, portanto, era gerador de tensões em sala, sentidas tanto pela professora como pelas crianças, direta ou indiretamente envolvidas.48

Podemos avaliar que, muitas vezes, a forma instrumental e austera, centrada na lógica produtivista e adultocentrada com que o ensino da leitura e da escrita ocorrem, tanto por parte dos familiares quanto da escola, impede a criança de desfrutar, no aqui e agora, as

46 Segundo Temple (2010, p. 230) o aluno copista “é aquele que desenvolveu a habilidade de escrever, mas não avançou na compreensão da linguagem escrita”. Conforme Vygotsky, para além da imitação e da reprodução mecânica das letras, escrever implica apropriação de um novo sistema simbólico e ocorre com um processo onde a criança deve ser ativa, a partir da mediação dos outros. 47 Para Beatriz de Paula Souza (2007), a criação de grupos homogêneos intraclasse perpetua o sectarismo, o preconceito e a discriminação. Com lugares físicos marcados, as crianças acabam duvidando de suas capacidades de aprendizagem sendo socialmente desvalorizadas, correndo o risco de serem “abandonadas”, isto é, sem investimentos pedagógicos ou afetivos, tendo sua trajetória escolar estreitamente relacionada ao fracasso escolar.

48 Quando visitei a casa de Pedro, sua mãe demonstrou preocupação e tristeza quando este descreveu que havia realizado atividades diferentes do restante da turma durante as aulas. Ela sabia que o filho encontrava dificuldades para realizar as tarefas, mas imaginava que ele estivesse recebendo um reforço ‘extra’, ou seja, a mais do que os outros colegas e não que estivesse sendo excluído dos procedimentos coletivos.

dimensões estéticas, éticas e políticas desses atos. Como pontua Maria Luiza Bastos Oswald (2011) gerando ansiedades, medos e, com isso, dificuldades de apropriação de um novo sistema simbólico para descrever o mundo em que vivem, o que torna esse processo psicologicamente desagradável e sem sentido para a/o aluna/o. Mário por exemplo, disse que não gostava muito de ler “acho difícil...é que ainda não sei direito”; Sandra acha “chato” e poucas foram as crianças que disseram gostar de ler.

A maioria associou, assim, os livros e o ato de ler à obrigatoriedade da escola, mantendo-os à distância da ideia do brincar, da diversão, do imaginário, que a leitura propicia. De acordo com Helmut Wintersberger (2001) e Behera e Pramanik (2001), a distribuição de importância entre o presente (prazer de aprender, abertura de espaços para interesses vitais) e o futuro (sucesso escolar preocupado com o aspecto profissionalizante, produtivista e daí competitivo, pilares sagrados da sociedade capitalista) é um dos problemas urgentes a ser superado nas escolas e que tem reflexos na prática de leitura e no sentido que atribuem à escolarização.

Importante problematizar que o sentido dado pelas crianças à escolarização como uma via central de inclusão social, de melhorar de vida e de aprendizagem sobre “as coisas” da vida (conhecimento, conceitos científicos e seus usos) se colocava principalmente como uma promessa de futuro e, para muitas crianças, ganhando poucos elementos concretos que dessem sentido a esse futuro (na direção de experimentações prazerosas e positivas no processo de ensino aprendizagem). Tal experiência tem relação com a visão progressiva e evolutiva de desenvolvimento, que considera que a criança será alguém “quando crescer”, já que no presente ela é incompleta. Para reverter essa relação, a forma de ensino precisa ser favorável à aprendizagem, aproximando-se da maneira como as crianças significam o mundo e a si mesmas, reconhecendo-as como agentes no presente já ‘sendo’ alguém, ou seja, um ensino que utilize elementos de suas vidas concretas/cotidianas, integrando passado/presente/futuro nas suas vivências escolares e, com isso, gerando novas motivações e produzindo novos sentidos.

Ao mesmo tempo, podemos considerar a partir da concepção sartreana, que a dimensão futura é parte constitutiva de um projeto de

ser.49 Para este autor, “a sociedade apresenta-se para cada um como uma perspectiva de futuro e esse futuro penetra no coração de cada um como uma motivação real de suas condutas” (SARTRE, 2002a, p. 80). Assim, sendo o futuro aquilo que ainda não é e que se impõe ao sujeito no ato de suas escolhas e posicionamentos no mundo, mesmo sem ser suficientemente compreendido pelas crianças, compunha um dos aspectos que as auxiliava no enfrentamento de situações difíceis em sala de aula e as movia cotidianamente para ocupar aquele espaço no seu bairro e distribuir o tempo de suas vidas com ele.

3.3.2 A participação das crianças no planejamento dos