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CAPÍTULO 1 O HOMEM NA LINGUAGEM COMO CONDIÇÃO DE HABITAR A

1.3 OS ESTUDOS SOBRE LEITURA PELO VIÉS BENVENISTIANO

1.3.1 A passagem de locutor a sujeito e a (inter)subjetividade na leitura

As noções de locutor e de sujeito, em Benveniste, muitas vezes confundem-se em razão da flutuação terminológica presente nesse legado e da linha tênue que as separa, uma vez que o locutor se propõe como sujeito pela apropriação da língua. Olhando para o processo de enunciar, vê-se que locutor e sujeito não são termos que se recobrem teoricamente, conforme sinaliza Naujorks (2011), muito embora tenham uma forte vinculação entre si e com noção de (inter)subjetividade. No ato de leitura, em especial, a distinção entre esses conceitos se faz importante porque atende à especificidade do trabalho de permitir “ver que há no ato/processo de leitura uma dupla instância conjugada, [...] a instância do locutor – aquele que fala, em nosso caso, aquele que lê – e a instância de sujeito – aquele que se marca singularmente no ato de enunciação, [...] no ato de leitura” (NAUJORKS, 2011, p. 90, grifos da autora). Desse modo, “há, na leitura, a passagem de um locutor-leitor a um sujeito-leitor”

(op. cit.), considerando que, em busca de compreender e de interpretar um texto, o leitor não é um tu – ou seja, o interlocutor do texto –, mas um eu, que produz sentidos no ato de leitura.

Na esteira de Flores e Teixeira (2013), então, Naujorks (2011) entende que, porque a leitura é um ato de interpretação, o sentido que deriva do ato de ler “não coincide integralmente com as representações daquele que produziu o texto” (NAUJORKS, 2011, p. 90); a essa não-coincidência interpretativa, a autora chama apropriação de texto pelo leitor. Essa apropriação, que dá início à subjetividade na leitura, fixa as referências da situação enunciativa e condiciona, ao mesmo tempo, o ato intersubjetivo da leitura, que se dá entre o locutor-leitor, eu, e o texto, que, aqui, é considerado alocutário, convertendo-se em tu na passagem de locutor-leitor a sujeito-leitor no ato de leitura. Desse modo, na leitura, a relação eu-tu manifesta-se “num abrir e fechar de olhos” (cf. op. cit., p. 91): no momento em que o locutor-leitor enxerga a possibilidade de fazer emergir sentidos no enunciado escrito. Importa ressaltar, no entanto, que a posição do tu tem a mesma importância da posição de eu, já que são descritas em Benveniste como pessoas recíprocas (cf. NAUJORKS, 2011, p. 92). Nesse sentido, Naujorks (2011) compreende haver uma dupla instância de reciprocidade entre eu- tu, a qual descreve nas seguintes palavras:

[...] em um primeiro momento, o locutor-leitor se apropria do enunciado e, com ele, coloca-se em uma relação de diálogo. O locutor, em nossa visão, dialoga com o enunciado, o texto. Não seria absurdo, portanto, considerar que, ao menos em certo sentido, o enunciado é um “tu” da relação “eu-tu”. O enunciado, nesse processo, é um tipo de interlocutor. É com ele que o locutor-leitor estabelece uma troca propondo-se como sujeito, o sujeito-leitor. (NAUJORKS, 2011, p. 92).

Diferentemente de outras correntes teóricas que consideram o leitor apenas como interlocutor do texto, tanto leitor quanto texto são simultaneamente eu e tu: o texto é eu, na medida em que produz sentidos ao locutor, tu; mas é tu quando o leitor, em diálogo com o enunciado escrito, produz sua própria interpretação, sendo, portanto, eu (cf. NAUJORKS, 2011, p. 92, n. 99). Vê-se, desse modo, emergir a noção de reversibilidade das pessoas na situação enunciativa, característica intersubjetiva apontada na Teoria da Enunciação benvenistiana.

Pontuemos, então, que a apropriação do enunciado escrito pelo locutor-leitor implica sua passagem a sujeito-leitor, isto é: a subjetividade na leitura, e, portanto, instaura a intersubjetividade com o texto em um presente enunciativo, ou seja, em um aqui-agora singular. Essa reversibilidade intersubjetiva, porém, não ocorre sem a instauração das

referências da língua; assim, diz-se também que, da emergência da subjetividade na leitura, implicam-se “eu-tu-ele-aqui-agora”. Com a inserção da não-pessoa ele, Naujorks (2011) afirma que ler é enunciar em duas dimensões:

a) na dimensão em que há a passagem de locutor-leitor a sujeito leitor: essa passagem se dá na e pela relação do “eu” (o locutor-leitor), que se torna sujeito (sujeito-leitor), com o “tu” (o enunciado lido), produzindo um sistema de referências, o “ele”;

b) na dimensão da tentativa de re-constituição de um sentido. [...] o locutor-leitor lê um outro enunciado que contém, ele mesmo, uma relação eu-tu-ele-aqui- agora. O sentido que deriva desse ato de reconstrução diz respeito a algo que não coincide integralmente com as representações daquele que produziu o texto. (NAUJORKS, 2011, p. 93)

Com essa reflexão, a autora relaciona a passagem final de O aparelho formal..., na qual Benveniste afirma que a enunciação escrita se situa em dois planos, à leitura, concluindo que “ler é fazer uma trajetória de constituição de sentido que suponha que alguém enunciou” (op. cit.), não ignorando, desse modo, a figura do locutor-autor.

Dessa compreensão, surgem algumas implicações metodológicas: não é suficiente, como muito se fez e ainda se faz nos estudos enunciativos, estudar as marcas deixadas na materialidade do enunciado pelo sujeito; antes, é preciso também verificar o modo como o sujeito-leitor produz sentidos a partir do seu interlocutor, o texto, uma vez que, sendo um processo intersubjetivo, a cada leitura, ele “produz um sentido novo vinculado a sentidos já existentes” (op. cit.). Por isso, uma perspectiva enunciativa da leitura, segundo a autora, define-se “tanto como apropriação de sentidos quanto como atualização de sentidos, pois há um enunciado que, construído previamente por um locutor anterior, ao ser tomado pelo locutor-leitor se atualiza a partir de suas referências” (op. cit., p. 94). Assim, essa perspectiva de leitura não desconsidera a figura do autor, que é entendida, porém, como inacessível na instância discursiva, mas põe em jogo os sentidos atribuídos pelo sujeito-leitor; sentidos possíveis a partir do texto que não necessariamente são os mesmos intencionados27 pelo

sujeito-autor. Desse modo, “ler é construir um novo sistema de referências em um novo eu-tu- ele-aqui-agora” (NAUJORKS, 2011, p. 97), ou seja, a partir da instância enunciativa e das referências constituídas pela língua na relação com o outro.

27 Estamos utilizando intencionados, aqui, na mesma acepção que se encontra em A forma e o sentido na linguagem, como o sentido que resulta do discurso de um locutor; do querer dizer desse locutor que atualiza, linguisticamente, seu pensamento.

Cremonese (2014), por sua vez, considerando a perspectiva desenvolvida por Naujorks (2011), tem como objetivo verificar como a leitura reflexiva auxilia no processo de escrita e, por isso, desenvolve um outro olhar sobre o ato de ler e, também, sobre a relação de intersubjetividade – a qual a autora considera ser a condição para a linguagem (cf. CREMONESE, 2014, p. 75), dado que um sujeito só se constitui como tal ao convocar o outro diante de si, tornando, assim, possível a comunicação linguística. Embora seja do eu que se instaure a situação enunciativa, o reconhecimento dessa posição só pode ser experimentado por contraste (cf. PLG I, p. 286); desse modo, a própria subjetividade só ocorre porque há uma condição à intersubjetividade. Esse conceito-chave à leitura de Cremonese (2014) manifesta-se na própria produção do texto, uma vez que o sujeito-autor o constrói a partir do alocutário que constitui como seu leitor; assim, na leitura reflexiva, ter a consciência dos elementos que evidenciam a intersubjetividade é fundamental, e, para essa autora, é papel do professor28 mostrar o caminho a esse entendimento (cf. CREMONESE, 2014, p. 79).

Embora estejamos deslocando a leitura a um caminho ainda não desenvolvido em enunciação, o da instauração da criança no mundo letrado, em relação, portanto, com a aquisição da linguagem, as noções de subjetividade e de intersubjetividade desenvolvidas pelas autoras parecem colaborar ao nosso entendimento. Em primeiro lugar, entendemos que a criança, ao estabelecer uma relação com o texto, independentemente de ter se apropriado do sistema de escrita, é um sujeito produtor de sentidos, portanto um eu de seu dizer, ou melhor, de seu ler. O processo de apropriação da língua, que operacionaliza a passagem de locutor a sujeito, no caso da criança em aquisição da linguagem, passa pela produção de sentidos não apenas do que se encontra diante dela, mas de uma instância diacrônica de sua história de leitura, isto é, de outros momentos em que a criança se viu permeada pelo mundo de representações gráficas. Isso, de certo modo, evidencia a primazia da intersubjetividade, apontada por Cremonese (2014), não dizendo respeito à constituição do texto, mas sim à presença de um outro que tem o papel de mostrar o caminho à leitura. Para a autora, esse papel é do professor – dadas as circunstâncias de sua tese; para nós, esse papel é de qualquer adulto que introduza a criança ao mundo da leitura, lendo para e com ela, convocando-a a fazer parte de um mundo que significa de outra maneira.

28 Importante ressaltar que a proposta de leitura de Cremonese (2014) ancora-se no contexto de sala de aula da universidade. Nosso objetivo, ao citá-la, é discutir questões pertinentes à concepção de leitura que podem importar à nossa própria construção.

Desse modo, a constituição da criança como sujeito-leitor advém de instâncias de intersubjetividade, nas quais ela é chamada a, com o outro, fazer parte desse mundo, reconhecendo que aquele ato produz sentidos. Assim, ela própria trata de apropriar-se da língua para contar o que lê, produzindo sentidos aos livros e às histórias a seu modo, constituindo, em seu ato, instâncias de referência em uma situação enunciativa.

Não devemos, no entanto, esquecer que, em enunciação, estamos tomando a língua em seus dois domínios, semiótico e semântico, permeados de forma e sentido. A língua escrita, sendo sistema interpretado da língua mesma, também tem em sua composição esses dois domínios e é, portanto, também composta por unidades de forma e de sentido. O sentido que resulta da leitura, portanto, advém do modo como o locutor agencia essas unidades; a criança, embora não apropriada da escrita, também se depara com essa estrutura, por isso, pensamos ser pertinente tratar também desse aspecto, muito embora não estejamos buscando conceber uma visão de leitura atrelada à aprendizagem propriamente dita.