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CAPÍTULO 2 A CRIANÇA NA LINGUAGEM: A INSTAURAÇÃO NA LÍNGUA-

2.1 POR UMA ANTROPOLOGIA DA CRIANÇA: UM EXTERIOR TEÓRICO EM

Conforme exploramos no primeiro capítulo, o viés antropológico é transversal à teoria enunciativa de Émile Benveniste: as noções de linguagem e de homem estão em constante relação, dado que este homem nasce na sociedade, na cultura, e apreende, imerso nesse contexto, a língua. Temos, portanto, uma constituição antropológica relacionada à condição humana de estar na linguagem; porém, considerando que estamos tratando da leitura pela criança e que, segundo Cohn (2005, p. 8), para respondermos às questões a esse respeito, é preciso que possamos entendê-la, compreendendo seu mundo a partir de seu próprio ponto de vista, queremos, a essa altura, nos dedicar a delimitar o modo como concebemos a criança, esboçando-lhe uma antropologia própria que dê conta de responder a nossos anseios31, para, então, traçarmos um paralelo com os estudos em Aquisição da Linguagem que se tem desenvolvido na perspectiva enunciativa. Isso nos parece importante porque, em primeiro lugar, a temática da criança em Benveniste, como vimos, não tem um lugar central em sua teoria, embora compareça como pressuposto antropológico de sua reflexão, quando linguista demonstra a indissociabilidade entre indivíduo, língua e sociedade. Além disso, embora estejamos propondo uma abordagem enunciativa, estamos também considerando uma perspectiva semiológica como parte de nosso estudo; assim, a dimensão antropológica da criança toma um novo contorno, o que nos leva a explorar um pouco mais as especificidades deste campo.

Um trabalho antropológico, diz Cohn (2005, p. 9), é aquele que tenta “entender um fenômeno em seu contexto social e cultural [...] em seus próprios termos” (grifos nossos); isso implica que não apenas se contextualizem as condições em que o fato ocorre, mas que sejam consideradas, isto é, que se tenha o cuidado de adentrar no modo como o fenômeno é

31 Importante destacar que não estamos de fato delimitando ou consolidando uma antropologia da criança per se; o que faremos aqui é buscar responder, conforme as orientações descritas por Cohn (2005), os questionamentos que cercam essa antropologia a fim de embasar nosso estudo.

visto dentro desse contexto durante as análises. Desse modo, ao olharmos para a relação da criança, inserida em um contexto sociocultural, com a leitura, estamos, de certo modo, fazendo um trabalho antropológico. Digo “de certo modo”, uma vez que nossa intenção não é, de fato, descrever esta relação, mas verificar a constituição de uma historicidade da criança como leitora; estamos, pois, colocando a criança como norteadora de um saber, do seu saber sobre o ato de ler, dando-lhe uma posição de destaque e compreendendo que a constituição de sua historicidade é traçada por ela mesma. Por lhe darmos tal posição, torna-se importante que tenhamos um modelo analítico que permita entendê-la por si mesma, isto é, fora de um olhar adulto que a rotule (cf. op. cit.).

Para isso, o ponto de partida de uma antropologia da criança é tomá-la como um sujeito social, como um ser atuante, o que, nas palavras de Cohn (2005, p. 28), significa

[...] assumir que ela não é um “adulto em miniatura”, ou alguém que treina para a vida adulta. É entender que, onde quer que esteja, ela interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações.

A criança, nessa acepção, é um ser que não apenas está aprendendo sobre o mundo, mas que está, ao mesmo tempo, o experimentando e o significando. Ao fazê-lo, ela está não apenas interagindo com o outro, mas com a própria cultura, que, segundo Benveniste (PLG I, PLG II), será manifestada em suas enunciações. É nesse mesmo viés que, Cohn (2005, p. 33), compreende que a criança também é uma produtora de cultura32, uma vez que está

constantemente formulando sentidos ao mundo que a rodeia.

Entender que a criança formula sentidos ao mundo, segundo a antropóloga, significa compreender que a criança não sabe menos que o adulto, mas que sabe outra coisa (cf. op. cit.); desse modo, um estudo antropológico deve buscar não “classificar” uma condição cognitiva da criança a partir dos sentidos e significados que manifesta, mas verificar “a partir de que sistema simbólico o faz” (op. cit., p. 34). Esse conceito, para nós, parece essencial, já que buscamos defender, desde o início, que a criança lê, embora o conceito de leitura não seja o mesmo que comumente se tem e embora essa atividade seja diferente da atividade de leitura que um adulto realiza. Além disso, essa concepção de "saber" da criança aproxima-se da compreensão do fenômeno em seus próprios termos, já que visualiza não um produto, mas a

32 A noção de cultura que Cohn (2005) utiliza assemelha-se muito à proposta por Benveniste, pois é compreendida como “um sistema simbólico” (cf. COHN, 2005, p. 33), tal qual define o linguista.

constituição de um caminho que evidencia as relações realizadas pela própria criança. Assim, concordamos com Cohn (2005, p. 35) ao afirmar que:

[As crianças] elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida, mas também relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos. (grifos nossos)

Conceber que a criança tem relativa autonomia cultural é entender que a cultura se manifesta duplamente, já que, de um lado, a criança está imersa na cultura desde seu nascimento; e, de outro, a manifesta, produzindo sentidos de acordo com a percepção do mundo que está a seu alcance, que lhe foi apresentada. Isso implica, segundo Cohn (2005, p. 35), não universalizar o modo como as crianças se relacionam com a cultura nem cindir “o mundo dos adultos e o das crianças”, mas compreender que há particularidades no modo como elas se relacionam com o mundo e com a cultura, que é própria à sociedade. Isso em muito se assemelha ao que Benveniste traz em Estruturalismo e linguística, ao afirmar que o que a criança aprende é o mundo do homem (cf. PLG II, p. 20-21); assim, o que está em jogo não é um mundo constituído pela criança, mas um mundo constituído socialmente, no qual a criança se insere e passa a estabelecer relações que lhes são próprias através da cultura que apreende pela língua da sociedade em que nasceu. Além disso, sem negar as particularidades socioculturais, diremos ainda que as particularidades da relação da criança com a cultura são singulares a cada ato enunciativo, uma vez que, ao mobilizar a língua e manifestar a cultura por meio de sua enunciação, a criança constitui sua historicidade, não apenas trazendo à luz as relações que já apreendeu, mas constituindo uma nova maneira de lidar com elas.

E, se anteriormente postulamos que a língua, a cultura e, desse modo, a leitura são herdadas pela criança, estamos propondo, portanto, pensar a criança como um ser que sabe algo sobre a leitura: sabe que há materiais que dizem algo, que contam uma história; sabe que há coisas que podem e outras que não podem fazer parte de uma história. Estamos propondo também considerar que esse modo de ler é um modo de instaurar-se na cultura da leitura, e não que é uma etapa de aprendizagem, nem um degrau para o letramento33, nem uma mera

33 Não estamos, com isso, dizendo que não é possível olhar para o fenômeno da experiência da criança na leitura tendo em vista analisar o processo de aprendizagem – tanto isso é possível que Cohn (2005) dedica uma parte de seu livro para estabelecer diretrizes antropológicas aos estudos que têm a educação e a aprendizagem como foco;

brincadeira que retrata os hábitos do “mundo adulto”. Esse modo de ler é uma experiência humana na linguagem, pois a criança, utilizando sua língua, enunciando sentidos reveladores da cultura em seu ato de ler, constitui sua história na leitura.

Entendemos, com Dessons (2006), a noção de história como atrelada à de linguagem, já que, segundo o autor, a linguagem é sua condição, pois a relação entre o discurso e o tempo, que a noção de historicidade evidencia, ocorre na instanciação do sujeito no presente de sua fala (cf. DESSONS, 2006, p. 109)34. Assim, em cada ato singular de utilização da língua pela criança para produzir sentidos do/no ato de ler, ela constitui sua história de leitura. Esse entendimento implica uma noção antropológica de criança também vinculada à enunciação, pois, embora compreendamos com Cohn (2005) uma condição de criança, como ponto de partida, nossa análise considera também a criança como sujeito enunciativo, isto é, manifestada em seu próprio dizer. Além disso, como apontamos anteriormente, porque consideramos uma perspectiva semiológica como integrada à análise enunciativa, temos a criança em uma posição de intérprete da língua, o que colabora para a importância de alinharmos uma perspectiva em Antropologia, que delimita o modo como se aborda a noção de criança, com os estudos que têm por base a perspectiva de linguagem benvenistiana e que consideram, portanto, a linguagem como constitutiva da noção de homem. Assim, dar conta de uma Antropologia da Criança, para nós, implica necessariamente que passemos por estudos benvenistianos que tomam as experiências da criança na linguagem como objeto de estudo.

2.2 A CRIANÇA NA LINGUAGEM E PELA LÍNGUA: UMA CONCEPÇÃO