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CAPÍTULO 1 O HOMEM NA LINGUAGEM COMO CONDIÇÃO DE HABITAR A

1.3 OS ESTUDOS SOBRE LEITURA PELO VIÉS BENVENISTIANO

1.3.3 A enunciação e a leitura

O caminho teórico e metodológico traçado por Naujorks (2011, p. 102) tem como ponto de chegada a enunciação, uma vez que a leitura se concebe como a língua em uso em um quadro formal de realização. Desse modo, no ato de ler, “a linguagem [é] assumida por um sujeito, o que faz da leitura uma atividade de construção numa relação produtiva de interação entre o leitor e o texto” (op. cit., p.103). Compreendê-la assim, portanto, evidencia o papel ativo do leitor, que não mais é um mero decodificador do sistema escrito ou um interlocutor a quem o texto se destina, mas um sujeito responsável pela produção de sentidos.

À vista disso, Naujorks (2011) complementa a definição de leitura como ato de apropriação de sentidos com as palavras de Teixeira (2005, p. 200), quem afirma que “conceber a leitura como ato enunciativo é concebê-la como um ato do sujeito-leitor, mediante o qual ele institui uma relação com o texto para produzir sentido no momento da leitura”. Logo, essa produção de sentidos, tal como se vê em O aparelho formal..., precisa necessariamente mobilizar a noção de subjetividade, a partir da qual o locutor-leitor, em sua singularidade, usa a língua, assumindo seu papel de sujeito leitor (cf. NAUJORKS, 2011, p.

103-104). No entanto, este locutor se assume enquanto sujeito compreendendo que há um enunciado anteriormente construído, tratando-se, portanto, de uma segunda alocução, na qual o leitor produz sentidos com base em possibilidades delineadas pelo outro. Assim,

a leitura é um ato de linguagem e se configura em uma enunciação de retorno a partir de um enunciado anteriormente construído [...] No ato/processo de leitura, o locutor se propõe como sujeito ao assumir a língua para produzir seu sentido. [...] Esse ato é fugaz e irrepetível por isso só é possível reter algo dele a partir do enunciado que é o produto da enunciação. É, portanto, pelo enunciado que podemos analisar a enunciação considerando os elementos linguísticos disponíveis, a situação do aqui e agora e, principalmente, a presença do sujeito que se enuncia. (NAUJORKS, 2011, p. 105)

Logo, além da subjetividade, implicam-se os domínios semiótico e semântico e, portanto, as relações de forma e sentido, pois o locutor se apropria da língua inteira para produzir sentido em seu enunciado, isto é, em sua leitura. Desse modo, do semântico, retorna- se ao semiótico como comprovação da leitura (cf. op. cit., p. 106), já que “o locutor-leitor produz sentido a partir do global, corroborado pelo específico que é a língua”. Assim, essa comprovação, só pode ser considerada, segundo a autora, “à medida que o leitor tem condições de reconhecer os elementos postos no enunciado que comprovam essa produção” (op. cit.).

Reforça-se, porém, o fato de que a leitura numa concepção enunciativa se centra no ato/processo, ou seja, no aqui-agora enunciativo, não no produto (texto). Desse modo, importa considerar que:

[...] a leitura se constitui em um ato/processo que envolve o sujeito e a situação de tempo e espaço. Acreditamos na condição de intersubjetividade/subjetividade para entender esse ato/processo, do mesmo modo como entendemos que olhar para a leitura nessa perspectiva significa reconhecer que o enunciado se atualiza sempre no aqui e agora do sujeito-leitor. Entendemos, ainda, que as noções de forma e de sentido têm papel decisivo para compreender que esse texto/enunciado só pode ser apreendido na sua relação forma/sentido, uma vez que tem seu sentido dado pela ideia global, ou seja, é percebido semanticamente, enquanto a forma do texto é uma questão analítica, pois ocorre a partir da dissociação do todo em unidades semióticas (NAUJORKS, 2011, p. 117-118)

Sobre a referência, Cremonese (2014) retoma uma passagem de Benveniste (PLG II, p. 231) em Da subjetividade na linguagem, na qual o linguista afirma que “se o ‘sentido’ da frase é a ideia que ela exprime, a ‘referência’ da frase é o estado de coisas que a provoca, a situação de discurso ou de fato a que ela se reporta e que nós não poderemos jamais prever ou fixar”. Isso faz retomar a efemeridade da enunciação, que só existe no próprio ato, apagando-

se ao fim do discurso, uma vez que o presente enunciativo, as instâncias aqui-agora, dependem da atividade do locutor. Desse modo, ninguém enuncia do mesmo modo duas vezes: as referências espaço-temporais modificam-se a cada instante; o que se diz como antes, depois, acima, abaixo, ontem, daqui dois anos, lá ou cá tem sempre como referência a situação enunciativa, isto é, a atividade de colocar a língua em uso realizada por um locutor.

Em leitura, segundo Cremonese (2014, p. 95), um sujeito não pode se propor de fato como leitor sem considerar a referência, já que,

Sem que se compreenda que o texto (falado ou escrito) constrói não apenas o locutor e o interlocutor, mas toda a situação de enunciação – isto é, o eu-tu-ele-aqui-agora – pensamos que seja inviável tratar com a devida atenção cada elemento formal que constitui esse texto e, por conseguinte, seu(s) sentido(s).

Isso porque o sentido do texto está atrelado à própria situação em que o texto é concebido, ou, nesse caso, à situação em que o texto é lido. Muitas vezes, ao relermos um texto, temos diferentes percepções sobre ele – construímos sentidos que dizem respeito ao que estamos sentindo no momento, atentamos mais ou menos à leitura dependendo de onde estamos; o que devemos levar em consideração em uma concepção enunciativa de leitura, portanto, é o produto de leitura que estamos produzindo a cada ato de ler.

Pensando agora sobre a instauração da criança na leitura, acreditamos que também possamos compreender este ato como uma atividade de construção de sentidos que decorre da relação leitor-texto. Desse modo, o papel ativo da criança diz respeito à maneira como, a partir de uma primeira enunciação (que pode ser tanto as histórias que ela já ouviu ou o que o próprio suporte de leitura faz emergir, como cores, ilustrações, e mesmo a falta delas), ela instaura os sentidos que acredita serem produzidos. Assim, uma análise desse ato/processo de instauração da criança como leitora precisa levar em conta o enunciado que a criança produz no aqui-agora da sua leitura, compreendendo que as referências que emergem desse ato são constitutivas do próprio sentido e do modo como a criança o constrói.

Não se deve, no entanto, esquecer que a situação enunciativa e as referências constituídas acontecem num mundo repleto de sentidos compartilhados, em uma sociedade com uma cultura que são também enformadas pela língua e fazem parte dessa situação. Desse modo, acreditamos ser imprescindível, para pensar sobre a instauração da criança em uma atividade culturalmente aceita, não ignorar a questão cultural implicada em sua própria constituição de sujeito no mundo.