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A pedagogia crítica e a abordagem dialógica

2 CONEXÕES ENTRE CIBERCULTURA, AUTONOMIA E EDUCAÇÃO

2.2 AUTONOMIA E OUTROS CONCEITOS INTERLIGADOS

2.2.3 A pedagogia crítica e a abordagem dialógica

Assumindo que a alienação tem um limite, presente no próprio sujeito, e que é possível caminhar no sentido da libertação e do autonomizar-se, a educação não pode esperar, na neutralidade, que cada indivíduo encontre sozinho seu caminho na autonomia.

[...] as maneiras de adquirir e possuir os significados culturais podem caracterizar um indivíduo como um ser submetido às formas culturais dominantes no grupo social em que se integra, ou como sujeito independente e autônomo, que é possuidor singular dos diferentes traços culturais. Esta é uma faceta que se pode estimular [...] ou que se pode tentar limitar. [...] E é, de modo fundamental, uma característica a respeito da qual, inevitavelmente, a educação sempre toma uma posição. (SACRISTÁN, 2002, p.100).

A pedagogia crítica é caracterizada pela opção que faz por uma formação baseada no compromisso com a transformação social e a emancipação, com ênfase na solidariedade com grupos marginalizados; uma educação que não esteja comprometida com a reprodução social e que não se apoie na crença do individualismo como resposta às necessidades dos outros. Ela “[...] examina as escolas nos seus contextos históricos e também como parte do tecido social e político existente que caracteriza a sociedade dominante” (MCLAREN, 1997, p.191).

Segundo Moacir Gadotti (2003), diversos teóricos ligados ao movimento pela Escola Nova abordaram a crítica aos métodos tradicionais de educação, apresentando, principalmente, o quanto a educação reproduz a sociedade. A maioria desses teóricos, no entanto, trazia uma visão pessimista da situação de forma que não acreditava na possibilidade de uma reforma pedagógica, entendendo as escolas como, predominantemente, agências de reprodução social. Para Moacir Gadotti (2003), Henry Giroux, fazendo uma crítica ao pensamento crítico, traz, em suas produções, uma visão de esperança e possibilidade quando analisa a escola como um espaço de dominação e reprodução, mas que, ao mesmo tempo, oferece a possibilidade de resistência às classes oprimidas. Esta visão de esperança vai de encontro ao pensamento dos educadores radicais que “concentraram-se de tal forma na linguagem da dominação que não resta qualquer esperança viável de se desenvolver uma estratégia política progressista” (GIROUX, 1997, p.27).

Henry Giroux (1997) defende uma visão mais ampla de escolarização, entendendo as escolas como esferas públicas democráticas, ou seja, espaços democráticos destinados ao fortalecimento do self e do social. Para tal, é necessário que tanto alunos quanto professores sejam vistos como intelectuais transformadores, categoria que, segundo o autor, é útil nos seguintes aspectos: (1) significa uma forma de trabalho na qual pensamento e ação estão intimamente relacionados, indo de encontro às formas instrumentais de educação; (2) serve como referencial crítico para que os professores reflitam sobre os interesses que estão subjacentes às práticas que são experimentadas e reproduzidas nas escolas; (3) representa “uma demanda adicional por um discurso crítico que analise como as formas culturais acercam-se das escolas e como tais formas são experimentadas subjetivamente” (GIROUX, 1997, p.136). Giroux ressalta também que a atuação dos professores como intelectuais vem fortalecer a atuação dos alunos como sujeitos autônomos e críticos, capazes de contribuir com a transformação da sociedade:

Enquanto intelectuais, combinarão reflexão e ação no interesse de fortalecerem os estudantes com as habilidades e conhecimento necessários

para abordarem as injustiças e de serem atuantes críticos comprometidos com o desenvolvimento de um mundo livre da opressão e exploração. Intelectuais deste tipo não estão meramente preocupados com a promoção de realizações individuais ou progresso dos alunos nas carreiras, e sim com a autorização dos alunos para que possam interpretar o mundo criticamente e mudá-lo quando necessário. (GIROUX, 1997, p.29).

Segundo Peter McLaren, os teóricos críticos reconhecem a limitação da liberdade das pessoas – alienação – e se apoiam na dialética entre indivíduos e sociedade para buscar a compreensão dos problemas sociais:

Os teóricos críticos começam com a premissa de que homens e mulheres são

essencialmente não livres e habitam um mundo repleto de contradições e assimetrias de poder e privilégio. O educador crítico adota teorias que são, antes de tudo, dialéticas, ou seja, teorias que reconhecem os problemas da sociedade como mais do que simplesmente eventos isolados de deficiências individuais na estrutura social. Ao contrário, esses problemas são parte de um contexto interativo entre indivíduo e sociedade. O indivíduo, um ator social, cria e é criado pelo universo social do qual faz parte. Nem o indivíduo nem a sociedade são priorizados na análise; os dois são inextricavelmente interligados, de maneira que a referência a um deve, necessariamente, significar referência ao outro. (MCLAREN, 1997, p.191). Para Michael Apple (2003), a defesa e a construção de uma educação verdadeiramente crítica e democrática é um projeto coletivo. Para tal, o autor considera fundamental compreender a aliança entre os movimentos sociais conservadores que têm um profundo impacto nos debates sobre política e prática educacionais. Em seu livro Educando à direita, Apple faz uma análise sobre essa aliança conservadora e considera quatro grupos principais que a compõem: (1) os neoliberais, que se orientam pela visão de um Estado fraco e pela racionalidade econômica, onde democracia é associada à liberdade de escolha do “consumidor”, onde aos alunos deve ser oferecida uma qualificação para competir eficientemente no mercado de trabalho, imperando o individualismo e isentando o mercado das responsabilidades; (2) os neoconservadores que buscam o retorno à disciplina e ao saber tradicional, baseando-se, em grande parte, “numa visão romântica do passado, um passado em que o verdadeiro saber e a moralidade reinavam supremos” (p.57); (3) os populistas autoritários, onde estão os “fundamentalistas religiosos e evangélicos conservadores que querem um retorno ao (seu) Deus em todas as nossas instituições” (p.13); e (4) a nova classe média de profissionais qualificados e gerentes que fornecem o conhecimento técnico necessário para implementar as políticas de modernização conservadora, e que, não necessariamente, acreditam nas políticas conservadoras, mas as apoiam enquanto

instrumentos “neutros”, assumindo uma tendência ideológica contraditória e que facilmente pode ser mobilizada pela direita.

Esses movimentos direitistas, segundo Apple (2003), uniram-se de forma criativa, mesclando suas plataformas, para impor seus aspectos mais fundamentais. Essa união é baseada na construção de um senso comum hegemônico adequado aos seus ideais e lança mão de estratégias como o esquecimento proposital, a manipulação e a omissão de informações, de maneira a fomentar alienação e individualismo. No entanto, embora essa aliança esteja liderando as políticas educacionais, não quer dizer que não haja contestação a esse “guarda- chuva hegemônico”, ou que este seja sempre vitorioso; pelo contrário, já vêm acontecendo resistências contra-hegemônicas, normalmente organizadas de baixo para cima e em nível local ou regional, fato que o autor justifica por considerar estruturalmente difícil sustentar movimentos nacionais de longo prazo em favor de políticas e práticas mais progressistas.

[...] em face de todos esses dilemas estruturais, financeiros e políticos, o fato de tantos grupos de pessoas não terem sido integrados sob o guarda-chuva hegemônico da aliança e de terem criado dezenas de exemplos locais da possibilidade mesma da diferença mostra, da forma mais eloquente e vívida, que as políticas e práticas educacionais não tomaram uma única direção unidimensional. Mais importante ainda: esses muitos exemplos demonstram que o sucesso das políticas conservadoras nunca é garantido. Isso é crucial numa época em que é fácil perder de vista o que é necessário para uma educação digna desse nome. (APPLE, 2003, p.76).

As resistências contra-hegemônicas, quando analisadas individualmente, podem parecer insignificantes diante das políticas conservadoras dominantes; no entanto, são exemplos do que Milton Santos (2006) chama de “contrarracionalidades”, que, segundo o autor, surgem em contraposição à racionalidade hegemônica que busca se impor através das verticalidades homogeneizantes e que chamam, às contrarracionalidades de “irracionalidades” – certamente no intuito de diminuí-las. No entanto, “é somente a partir de tais irracionalidades que é possível a ampliação da consciência” (SANTOS, 2006, p.115) e o movimento em busca da autonomia.

Peter McLaren (1999) considera Paulo Freire como o filósofo inaugural da pedagogia crítica e um dos primeiros pensadores da educação que atentou para a relação entre educação, política, imperialismo e libertação; a pedagogia freiriana é antiautoritária e encara o conhecimento como um ato dialógico – um ato político de conhecer. Além disso, para Freire a mudança na educação deve ser seguida de perto por mudanças radicais na estrutura social e

política, e professores e alunos devem se reconhecer como sujeitos desse processo de transformação.

O agente freiriano trabalha silenciosa mas resolutamente nas fronteiras da cultura e nos interstícios dos setores públicos prestes a desmoronar, longe das arenas poderosas dos espetáculos públicos de acusação e atribuição de culpa por aquilo que vai mal com as nossas escolas. Educadoras e educadores freirianos não concebem seu trabalho como um antídoto para os atuais males socioculturais e para o decrescente nível de ambição no que diz respeito ao comprometimento da sociedade contemporânea com a democracia. Pelo contrário, seus esforços dirigem-se pacientemente no sentido de criar sítios contra-hegemônicos de luta, estruturas epistemológicas radicalmente alternativas e interpretações e práticas culturais contraditórias, assim como domínios de sustentação para os grupos excluídos do poder. É necessário que os educadores contemporâneos revisitem a pedagogia freiriana, que se apoiem nela, e que a reinventem na especificidade do atual contexto sociopolítico, no momento em que atravessamos o portal do novo milênio. (MCLAREN, 1999, p.43).

Paulo Freire argumenta que a raiz da alienação dos homens está na relação entre opressor e oprimido; daí a defesa do autor de uma pedagogia do oprimido e não para o oprimido, “aquela que tem que ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante da recuperação de sua humanidade” (FREIRE, 2006a, p.34). Para o autor, a busca da libertação deve partir de uma ação reflexiva dos oprimidos e da tomada de consciência de seu estado de alienação e de opressão, e pelo reconhecimento da necessidade de lutar pela sua liberdade, superando o próprio medo da liberdade e da consciência crítica:

Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o da autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. [...] Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos. (FREIRE, 2006a, p.37).

Entendendo a educação como um ato de comunicar-se, Paulo Freire (2006a) critica a relação educador-educando baseada no que o autor denomina de concepção bancária da

educação. Segundo essa concepção, o educador é o que sabe, que pensa, que prescreve, que escolhe o conteúdo, o que narra, é o sujeito do processo; o educando é o que não sabe, o que

escuta, o que segue, o que é dirigido, é mero objeto do processo. Assim pensada, a educação passa a ser uma experiência narrativa, de transmissão, e não um processo, resultando numa posição de passividade dos educandos que, ao invés de buscarem a transformação do mundo, adaptam-se a ele.

Na medida em que essa visão ‘bancária’ da educação anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. O seu ‘humanitarismo’, e não humanismo, está em preservar a situação de que são beneficiários [...]. (FREIRE, 2006a, p.69).

Como opção à educação bancária, Freire (2006a) traz a concepção da educação problematizadora, baseada numa práxis que implica a ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo e que afirma a dialogicidade como meio de superar a dicotomia educador-educando: ambos se tornam sujeitos do processo de construção e reconstrução do conhecimento, e crescem juntos. Para isso, são fundamentais o respeito aos conhecimentos do educando e à sua curiosidade ingênua – “a curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo” (FREIRE, 2006b, p.32). Essa curiosidade ingênua, que caracteriza o senso comum, está diretamente relacionada com o poder criativo e se transforma em curiosidade epistemológica a partir do momento em que a primeira é criticizada e estimulada; possibilitar essa criticidade, segundo Freire, é papel do educador que se pretende problematizador (FREIRE, 2006b).

A abordagem de Paulo Freire, pautada em princípios como a dialogicidade, o respeito ao educando e seus saberes, a criticidade, a colaboração e a autonomia, está em consonância com as possibilidades trazidas pela cibercultura e apresentadas anteriormente. Assim, buscaremos, a seguir, entender as possibilidades da educação na cibercultura, já à luz da discussão sobre autonomia e da educação problematizadora de Paulo Freire.