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2 CONEXÕES ENTRE CIBERCULTURA, AUTONOMIA E EDUCAÇÃO

2.2 AUTONOMIA E OUTROS CONCEITOS INTERLIGADOS

2.2.2 Alienação e liberdade

A importância de perceber o discurso do outro enquanto discurso de “um Outro que não eu” é que sem esta percepção, o discurso do outro, que está internalizado em cada um de nós, nos domina e, assim, acabamos por nos tomar por algo que não somos na realidade, por algo que é construção de um imaginário. Essa heteronomia, ou alienação, no nível individual, “é o domínio por um imaginário autonomizado que se arrojou a função de definir para o sujeito tanto a realidade quanto seu desejo” (CASTORIADIS, 2000, p.124).

Além da alienação individual, é necessário compreender o processo da alienação social, que Cornelius Castoriadis (2000) denomina de heteronomia instituída, manifesta como

“massa de condições de privação e de opressão, como estrutura solidificada global, material e institucional, de economia, de poder e de ideologia, como indução, mistificação, manipulação e violência” (p.131), e que neutraliza qualquer autonomia individual; daí a necessidade da busca coletiva da autonomia. Além disso, o autor ressalta que a alienação, vista como fenômeno social, surge na relação do indivíduo com o social-histórico, relação esta que, contudo, não deve ser compreendida como de dependência, mas sim “de inerência, que como tal não é de liberdade, nem de alienação, mas o terreno no qual liberdade e alienação podem existir” (CASTORIADIS, 2000, p.135-136).

A alienação assume diversos significados; todos eles relacionam o conceito, de alguma forma, a uma limitação da liberdade. Andréa Lapa (2005) faz uma preciosa abordagem sobre alienação, na qual traça a trajetória da noção dentro do pensamento crítico. A autora parte do conceito marxista-hegeliano de alienação: o alhear-se de si mesmo, e culmina na concepção de meta-alienação, que seria a ausência da consciência da alienação, de forma que as pessoas passam a criar e manter sua própria alienação. Andréa Lapa considera a possibilidade da desalienação a partir do conceito do irredutível, trazido por Henri Lefebvre que seria aquilo que não se pode dominar nas pessoas:

Acreditar na existência do irredutível significa acreditar na possibilidade como ingrediente da realidade, ou seja, acreditar que a estrutura não tem supremacia completa e que há um lugar no mundo onde, apesar de sua força, a estrutura não predomina. E essa possibilidade existe porque o mundo da vida cotidiana não está dado, e sim é construído e produzido historicamente. (LAPA, 2005, p.36).

Ainda segundo Andréa Lapa (2005), reconhecendo a existência da alienação no mundo contemporâneo, o pensamento crítico adota a educação como uma perspectiva transformadora da realidade e acredita na formação crítica do sujeito como um projeto de emancipação e de busca da desalienação – da autonomia – e da liberdade.

O entendimento de liberdade, no senso comum, relaciona-se, na maioria das vezes, à compreensão que os indivíduos têm de seu livre-arbítrio para a tomada de decisões, desde as mais simples como a locomoção em determinados espaços territoriais, até as mais complexas, como as decisões cujos efeitos só se manifestarão a médio e longo prazo. No entanto, a tensão entre liberdade e autoridade está continuamente presente; e seu amadurecimento se dá no confronto com a liberdade do outro e na determinação de seu próprio limite (FREIRE, 2006b).

Ser livre é ter capacidade para agir com a intervenção da vontade. Para Nicola Abbagnano (2003), o conceito de liberdade possui, na filosofia, três significados fundamentais: (1) como autodeterminação ou autocausalidade; (2) como necessidade que se baseia no significado precedente, mas refere-se à totalidade à qual o homem pertence, seu mundo enquanto substância; (3) como possibilidade ou escolha segundo a qual a liberdade é limitada e condicionada. Essas significações remetem às disputas metafísicas morais e políticas sobre liberdade, que se agrupam em três concepções. A primeira abrange o conceito de liberdade absoluta sem limitações nem graus ou escalas; é livre aquilo que é causa de si mesmo. Esse é o sentido aristotélico de liberdade como Causa Sui (causa de si mesmo, existindo por si e por si sendo concebido); daí derivam, por exemplo, os fundamentos e princípios do anarquismo. A segunda concepção entende liberdade como necessidade; ligada ao núcleo comum da primeira concepção, entendendo ser impossível a aplicação do conceito de liberdade às partes, pois esta só se aplicaria ao todo; tem fundamento na filosofia estoica para a qual só os sábios são livres. A terceira concepção fundamental de liberdade difere das duas primeiras radicalmente ao conceber liberdade como medida de possibilidade: é livre quem possui em um determinado grau ou medida a condição ou possibilidade de escolha; essa concepção deriva do conceito platônico da “justa-medida” e, segundo o autor, é baseada nela que os problemas do mundo moderno podem ser resolvidos (ABBAGNANO, 2003).

Ainda segundo Abbagnano (2003), para Immanuel Kant, ser livre é ser autônomo, isto é, dar a si mesmo as regras a serem seguidas racionalmente. A visão kantiana de liberdade é analisada por Jorge Larrosa (2005) em contraponto à nietzscheana – uma visão de liberdade- criação. Segundo Larrosa, Kant traz a liberdade como emancipação no sentido racional: “É livre o indivíduo que dá a si sua própria lei e que se submete obedientemente a ela cada vez que é capaz de escutar a voz da razão em sua própria interioridade” (LARROSA, 2005, p.87). A liberdade, portanto, seria sufocada pela razão, já que esta última se converte em dominação e manipulação. O grande desafio, segundo o autor, é encontrar formas de expressar nossa vontade diferentemente da concepção moderna de liberdade, em que a razão a controla.

Em seu livro Assim falou Zaratustra, no discurso “Das Três Transformações”, Nietzsche fala das três metamorfoses do espírito: primeiro em camelo, segundo em leão e por último em criança. Essas transformações seriam uma busca para a emancipação e para a liberdade. O camelo busca carregar o fardo que outros lhe dão; tentando demonstrar sua força, seu poder – mas na obediência. Do camelo ao leão o espírito busca conquistar sua liberdade sendo senhor de seu próprio destino – mas obediente, ainda que seja à sua própria razão. Do

leão à criança o espírito se encontra com a possibilidade de criação – enfim a libertação (NIETZSCHE, 2001). Enquanto camelo, o espírito é ainda um servo que se satisfaz ao cumprir o seu dever. A transformação para o leão tem como busca o “fazer-se livre”, mas numa atitude reativa e de constante luta contra seu “amo”. No entanto, assim entendida, a liberdade do leão é “o instalar em nós o amo, convertê-lo em parte de nós mesmos; [...] a crítica nos faz livres e escravos ao mesmo tempo: somos livres por interiorização da lei” (LARROSA, 2005, p.113). Ainda de acordo com Larrosa, na passagem para a criança, o espírito liberta-se da razão pura e permite-se a experiência da criação, da transgressão, do ir além de nós mesmos.

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança? A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é necessário uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo. (NIETZSCHE, 2001, p.36).

Nessa perspectiva, liberdade e autonomia caminham de mãos dadas. A experiência da criação elaborando a autonomia; a experiência da autonomia, através da transgressão, possibilitando o novo, o ir além. A liberdade amadurecendo no encontro de outras liberdades (FREIRE, 2006b); a autonomia coletiva concebendo o começo da minha liberdade no começo da liberdade do outro (CASTORIADIS, 2000).