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A percepção é uma inferência inconsciente?

CAPÍTULO II ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO SENTIMENTO PERCEPTIVO

2.2 Algumas notas a respeito do exercício da consciência

2.2.1 A percepção é uma inferência inconsciente?

Reiteradamente, Peirce sustenta que invariavelmente o conhecimento se origina da percepção, de modo que dela nunca poderiamos duvidar, sob o fundamento de que não se pode contestar a respeito daquilo que realmente parece ser. 219

E, no que tange à percepção imediata, verifica-se que “ver e ser visto são o mesmo fato”.220

Vale frisar que para os realistas os objetos presentes em nossas mentes existem, tal e qual, como experimentados fora delas.

Peirce faz importante apontamento sob o ponto de vista de que não partimos todos da crença universal de que cada evento tem uma causa. Não obstante, à medida que apreendemos cada objeto separado por percepção ou consciência, o compreendemos como causado. Essa apreensão é uma proposição, e de tais proposições são derivados vários conceitos, como: substância e atributo, causa e efeito, meio e fim etc. Esses conceitos, por sua vez, são apreendidos de forma abstrata e, comparados com os processos de cognição, são essencialmente envolvidos em si mesmos. Logo, em relação a todos os objetos da experiência, como tendo essas várias relações de dependência, deve haver alguns correlatos independentes dos quais eles dependem.221

Note-se aqui, apenas em complemento, a título ilustrativo, as palavras de Peirce a respeito da intuição que tem relação com este ponto em análise, sobre seus elementos:

Essas intuições são as seguintes: 1º, que um objeto é substância ou atributo;

2º, que os objetos se originam por uma energia causante; 3º, esses objetos estão no espaço e no tempo; 4º, que propriedades e leis que são conhecidas indicam e significam outras propriedades e leis; 5º, essa natureza adapta objetos e poderes a determinados fins; e 6º, que os métodos racionais das mentes divina e humana são semelhantes. Esses fatos e relações últimas não são aprendidas pelos processos comuns de pensamento, imaginação e percepção. Eles não são "apreendidos, mas envolvidos nesses processos", e devem, portanto, ser encaminhados para uma faculdade separada. Eles são primeiro apreendidos em uma forma concreta, não de forma abstrata. Nós não partimos com a crença universal de que cada evento tem uma causa, mas, à medida que apreendemos cada objeto separado por percepção ou consciência, o percebemos como causado. Essa apreensão é uma proposição, e de tais proposições são derivados os vários conceitos, substância e atributo, causa e efeito, meios e fim etc. [...].222

219 Cf. CP 7,36; Fn 13 p. 27.

220 CP 7,561; Fn 25 p. 342.

221 Cf. W 2,279.

222 CN 1,27/28.

Por conclusão, quando uma coisa está em relação com a mente individual mas ela a conhece, está na mente. Importante ficar claro que sua existência na mente não desfará sua existência externa.

Peirce ensina que fazer uma distinção entre a verdadeira concepção de uma coisa e a própria coisa é considerá-la a mesma coisa, mas de dois pontos de vista diferentes. “Para o objeto imediato do pensamento, um julgamento verdadeiro, é a realidade. A vontade realista, portanto, crê na objetividade de todas as concepções necessárias, espaço, tempo, relação, causa e semelhantes”.223

E, após reflexão e aprofundamento sobre o tema, Peirce inquire: “A percepção é uma inferência inconsciente?"224

Vejamos em suas próprias palavras a argumentação a respeito:

A percepção nos seus aspectos mais característicos é, naturalmente, uma questão de sentido amplo. Se dois pontos de luz são lançados sobre a parede de um quarto escuro de modo a ficar adjacente, e uma delas ficar vermelha enquanto a outra permanece branca, a branca vai aparecer esverdeada por contraste. Se eles são vistos através de um tubo estreito, e isso é movido de modo que o ponto vermelho saia de vista, ainda a branca vai continuar a ser vista como verde. Mas se a luz vermelha, agora invisível, se extinguir e nós então removermos o tubo do olho, de modo a ter um novo visual, por assim dizer, o aparente verde desaparecerá repentinamente. Este é um exemplo de mil fenômenos que levaram vários psicólogos alemães a declarar que o processo de percepção é um raciocínio em um sentido generalizado desse termo.225

Na percepção, a conclusão tem a peculiaridade de não ser abstratamente pensada, mas realmente vista, de modo que não é exatamente um julgamento, embora seja equivalente a um. Nada é tão inteligível como o processo de raciocínio. Isto é demonstrado pelo fato de que toda explicação assimila o processo a ser raciocinado.

Assim, o método lógico de explicar o processo de associação é considerada a mais perfeita explicação possível.

[...] A escola monista, à qual pertencem os psicólogos modernos, concebe o processo intelectual de inferência e o processo de causação mecânica como sendo apenas as visões interna e externa do mesmo processo. Mas a tendência idealista, que tinge quase todo o pensamento alemão não muito recente, seria considerar a explicação lógica como a mais perfeita, sob o

223 CP 8,16.

224 CP 8,62. Tradução livre de: "Is Perception Inconscious Inference?”

225 CP 8,62.

pressuposto de que a explicação materialista exige que ela seja, em última análise, explicada em termos do processo de raciocínio.226

Nestes termos, Peirce destaca a posição de Willian James que é contrário à explicação lógica, vejamos: “Se cada vez que um signo presente sugere uma realidade ausente para nossa mente, fazemos uma inferência, e se cada vez que fazemos uma inferência, raciocinamos, então a percepção é indubitavelmente um raciocínio.”227

Mas Peirce analisou que a percepção envolvia uma inferência inconsciente, e, embora exista uma inferência, ou seja, uma conclusão, na percepção, não há nada inconsciente sobre isso.

Desta feita, toda sugestão psicológica é considerada como sendo de natureza geral da inferência, mas apenas num sentido muito mais geral do que aquele ocorrido na percepção.

“A percepção atinge um julgamento virtual, ela subsume algo sob uma classe, e não só isso, mas virtualmente atribui à proposição o selo de assentimento”.228

Peirce defende que a percepção não seria uma espécie de raciocínio, propriamente dito, mas sim uma variedade desse tipo mais profundo de processo conhecido psicologicamente como a associação de ideias, e refutará as observações de Willian James do seguinte modo:

[...] Ninguém jamais alegou que a percepção seja inferência no sentido estrito de inferência consciente. Em vez de "uma espécie do raciocínio propriamente dito", devemos ler "raciocínio em um sentido generalizado".

Lembrando também que o Prof. James começou insistindo em estender a controvérsia à associação em geral, podemos colocar a associação no lugar da percepção. Desta forma, pode-se compreender que o raciocínio é um tipo especial de associação.229

Conclui-se, desta maneira, que o raciocínio inconsciente é, portanto, “uma metáfora inútil ou uma confusão entre duas coisas diferentes”.230

Não há dúvidas de que a percepção e as sugestões associativas possam ser consideradas como inferência em um sentido generalizado. A única questão é saber se existe alguma utilidade nisso.231

226 CP 8,65.

227 JAMES, William. The Principles of Psychology: American Science Series - Advanced Course. 2 vols. New York: Henry Holt and Company, 1890 apud C.S. Peirce CP 8,65, citação também presente em CN 1,108.

228 CP 8,66.

229 CP 8,70.

230 CP 8,71.

231 CP 8,71.

Assim, a ausência de percepção em relação a um objeto torna inviável sua coexistência com outro objeto, justamente porque a associação de ideias que eclodem das variedades de raciocínios propulsionados após o ato de percepção, aniquila a possibilidade de desconsideração sobre algo que foi percebido em se tornar inconsciente.