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A Perda da Aura e a Exaltação do Instante

A temática da mediação das tecnologias da comunicação na percepção humana é recorrente nos estudos dos teóricos frankfurtianos, nas pesquisas contemporâneas de educadores e comunicadores sociais, podendo este fenômeno ser interpretado de inúmeras maneiras.

Benjamin (1993 – “D”: 94), por exemplo, ao relacionar a evolução histórica dos sentidos humanos, a reprodução técnica de artefatos culturais com a produção da imagem por meios mecânicos, argumenta que “só a fotografia revela o inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional”. Esta afirmação, central para especular sobre as possíveis interpretações filosóficas e estéticas deste autor sobre a indústria cultural, remete ao pensamento de que, de alguma maneira, a fotografia, o cinema e a produção fonográfica ampliaram a acuidade visual, sonora, tátil. A percepção natural encontra nos suportes técnicos a condição de observar objetivamente aspectos da realidade que não se notam diretamente.

Desde o momento que a mão do artista se separa do objeto que produz, e a imagem pode ser produzida por meios mecânicos, este processo radicalmente não só condiciona o estatuto da percepção, mas também afeta as condições de produção da consciência e do próprio homem. Benjamin atribui à descoberta da fotografia um momento de ruptura em relação às formas de representação tradicionais, que acompanha alterações na forma como o homem narra a realidade e fundamenta sua experiência.

A revelação do inconsciente ótico ou a suposição de que uma

imagem, uma escultura, e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na realidade, nas palavras de Benjamin (1993 -

“D”:104), coloca a questão da visibilidade que os meios óticos e de comunicação permitiram do mundo natural e social.

Entretanto, se o inconsciente ótico revela pulsões inconscientes e a possibilidade de rever, com a fotografia, aspectos da realidade que não foram percebidos no momento vivido, a mediação da tecnologia como instância de representação da realidade, por outro, pode comprometer os elementos auráticos presentes nos bens simbólicos que, a exemplo da arte figurativa, não são reproduzidos tecnicamente.

Esta ambigüidade entre revelação da realidade e, ao mesmo tempo, sua recriação distorcida, demarca a tensão presente na mediação das tecnologias e seu uso sistêmico na sociedade. A mediação da tecnologia permite, paradoxalmente, que de um mesmo instrumento resultem produções qualitativamente diferenciadas. Muitas vezes isto não ocorre em função do controle social da informação e do seu caráter monopolizador.

A ideologia da sociedade industrial se materializa nos aparatos técnicos, que não apenas respondem pela sua operacionalidade, mas por uma forma de ambientação. A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do

uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas (Marcuse:1967, 19).

Neste sentido, nos próprios aparatos técnicos estão representados os conceitos ideológicos da sociedade industrial, sem nenhuma neutralidade possível.

Sem ignorar o potencial das novas tecnologias em ampliar campos de visibilidade, estabelecendo novas condições de (re)criação do real e sua representação em forma de simulacro, é importante retomar a perspectiva de Benjamin (1990: 212), quando assinala que: “à mais perfeita reprodução

sempre falta alguma coisa: o hic et nunc da obra de arte, a unicidade de sua presença no próprio local onde ela se encontra”. A perda da aura, ou seja,

da obra, é uma referência identificadora de ruptura que as novas tecnologias de reprodução empreenderam em relação à estética clássica, que mantinha os elementos de permanência do objeto, de distanciamento do sujeito em relação à obra, preservando uma postura de contemplação, culto.

De maneira contrária, nos objetos que não se configuram como auráticos – os artefatos da indústria cultural -, a preservação da identidade entre obra e autoria, a contextualização histórico-social da mercadoria simbólica e a sua permanência nas relações de troca ficam comprometidas.

O tensionamento entre as possibilidades de revelação do real pelo inconsciente ótico – advindo com a fotografia e outras formas de reprodução técnica -, com a crítica da perda do valor de exposição no momento de fruição estética, simbolizada pela morte anunciada da aura, expressa bem a dialetização do pensamento de Benjamin. Em seu tempo, foi capaz de prenunciar ambivalências que acompanharam a insurgência de novas tecnologias de representação, bem como das antinomias entre progresso e regressão no campo da percepção, da imaginação e do entendimento.

É paradigmática a formulação de Benjamin (1990: 214):

Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também o seu modo de sentir de perceber. A forma orgânica que a sensibilidade humana assume – o meio no qual ela se realiza – não depende apenas da natureza, mas também da história.

A massificação de artefatos culturais reproduzidos tecnicamente, a exposição da imagem como referência de legitimação jornalística e da expressão naturalizada do real-concreto, a percepção humana estendida, subsumida, conformada à mediação das tecnologias de comunicação, ainda, no tempo de Benjamin, não estavam plenamente anunciadas.

Ao analisar as primeiras fotografias, por exemplo, Benjamin (1993 – “D”: 93) acentua os elementos auráticos, que se firmam no tempo de exposição de quem era retratado e pela curiosidade que despertava duas ou três gerações seguintes. Ao mesmo tempo, narra a história das primeiras fotografias como uma época nostálgica, rapidamente substituída pelos artifícios dos retoques e da ilusão do off-set. A contemplação cede espaço à simultaneidade de percepções; na mesma proporção, a durabilidade dos objetos se torna fungível.

É ilustrativa a passagem escrita no ensaio Pequena História da

Fotografia, onde é descrita a longa imobilidade do modelo nas primeiras

fotografias: O próprio procedimento técnico levava o modelo a viver não ao

sabor do instante, mas dentro dele; durante a longa duração da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem. Tudo nessas primeiras imagens era organizado para durar – Benjamin (1993 – “D”: 96).

A transformação no campo da fruição estética com o aparecimento da fotografia em contraposição à arte figurativa, que afeta diretamente a esfera da autenticidade entre arte original e cópia reproduzida tecnicamente, dá-se no plano do valor de exposição se colocar numa evidência maior em relação ao valor de culto. A observação atenta se dilui em meio ao ritmo da exposição frenética das obras serializadas e semiculturais.

Em outras palavras, a visibilidade das obras de arte através dos meios de reprodução técnica, amparados na exposição da imagem, condiciona a apreensão a uma temporalidade tecnológica, onde tudo é feito para durar pouco. O que importa é o re-conhecimento e não propriamente a fruição estética, que pressupõe imersão e descoberta dos detalhes materializadores da subjetividade do artista e do contexto histórico de sua época.

Se este argumento benjaminiano, que se expressa pela idéia de que a reprodução mais autêntica da obra de arte corrompe a existência única que a caracteriza, é evidenciado neste contexto, cabe relembrar que este autor

reconhece que a percepção natural é estendida pela fotografia, na medida em que ela permite a observação de dados da realidade que deixam de ser captados diretamente pelo olhar.

Em Benjamin, não é possível afirmar apenas o caráter regressivo da reprodução técnica. Numa passagem do ensaio A Obra de Arte na Época da

sua Reprodutibilidade Técnica, fica evidente que a ruptura da aura se dá em

relação à tradição, ou seja, o artefato se encontra separado das condições de época, formato, perspectiva, originalidade da obra autêntica. Entretanto, sua atualização por meio da reprodução permite ao espectador o acesso à obra serial, que pode trazer um componente revolucionário: o questionamento das formas tradicionais em busca da renovação – no campo da percepção, da cultura, da sociedade.