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O Duplo Caráter da Formação Cultural

1.5. A Memória Prejudicada

1.5.1. O Duplo Caráter da Formação Cultural

Na tradição germânica, como esclarece Pucci (1998: 90-92), o conceito de cultura (Bildung) “revela a tensão entre as dimensões:

autonomia, liberdade do sujeito e sua configuração à vida real, adaptação (os

grifos não constam do original).

Quando o sujeito nasce o mundo já está posto, com seus regramentos, hábitos, costumes, linguagens, enfim, as condições de sociabilidade e a cultura vigente sugerem uma conformação do sujeito aos

modi operandi e vivendi dominante. Porém, a integração ao meio social é

tensionada pelo processo de diferenciação, que diz respeito à autonomia do sujeito em sua condição particular.

Por isto, a distinção está em ser autônomo sem deixar de se

submeter; submeter-se sem perder a autonomia. Aceitar o mundo objetivo, negando-o continuamente; afirmar o espírito, contrapondo-lhe a natureza –

acentua Pucci (1998: 90). Particularmente, na produção artística autêntica se evidencia esta possibilidade de inconformação do sujeito em relação ao existente. A arte, no dizer de Adorno, é uma antítese da sociedade.

Eis a trajetória de estranhamento e reapropriação do sujeito em relação ao objeto, presente no pensamento de Hegel, que Pucci (1998:90) destaca como essencial para descrever o processo de formação cultural, dialetizando os momentos de adaptação e de diferenciação do sujeito em relação à realidade objetiva.

Recontando a história a contrapelo, tendo como referência a mediação das tecnologias de comunicação no processo de construção da Bildung, pode-se argumentar que o momento de adaptação é mais requerido do que os momentos de diferenciação, de autonomia dos consumidores culturais. A lógica das relações de produção de bens materiais e simbólicos, que resulta numa cultura subsumida ao mercado de consumo, e que transfere para a posse dos objetos o prestígio social do sujeito, está dada pela repetição dos esquematismos industriais no momento de produção e de lazer.

A propósito, a leitura do ensaio Comunicação de Massa, Gosto

Popular e a Organização Social, de Merton e Lazarsfeld (In: Costa Lima,

1990, 105-116), na perspectiva da Teoria Funcionalista, remete a um aprofundamento desta assertiva de que os mass media teriam um papel de reforço das normas sociais.

Para estes autores, a moralidade pública, a definição dos padrões comportamentais, éticos, as crenças, os valores societários e culturais, a rigor, seriam formados no interior dos grupos primários (família, escola,

igreja). Com competência, os mass media reafirmariam, em suas produções informacionais e romanescas, a aplicação das normas sociais14.

Uma das possibilidades argumentativas para caracterizar a adaptação como resultante predominante no processo cultural constituído pela ação sistemática, onipresente, continuada dos mass media, na sociedade pós- industrial, refere-se a cisão que ocorre entre o momento de concepção do artefato simbólico e o seu consumo pelo público massivo.

Ao tratar da formação cultural presente no capitalismo monopolista do século XX, Pucci (1998: 91) adverte que o véu da integração encobre as

possíveis manifestações de autonomia do sujeito, impedindo que os homens se eduquem uns aos outros, dificultando-lhes a compreensão crítica do real, favorecendo manifestações irracionais.

O comprometimento da dimensão de autonomia da produção cultural, no capitalismo tardio, deve-se, majoritariamente, à ação mediadora das tecnologias de comunicação de massa, que dada sua natureza concêntrica, ou seja, pertencente a poucos conglomerados econômicos, exercem, no plano ideológico, a sobreposição de uma concepção de mundo, de quem detém os meios de reprodução simbólica, para tornar juízo comum para o restante da sociedade.

O processo de adaptação é favorecido pelos mecanismos de repetição insistente de um mesmo artefato simbólico. Um exemplo é o que resulta dos acordos entre as indústrias fonográficas, a rede de distribuição de discos no circuito das emissores de rádio e de televisão, para a divulgação de uma

14 É ilustrativa a leitura de Klapper (In: COHN, 1978), teórico funcionalista, que se fundamenta na

teoria do reforço, ao afirmar: “De há muito se sabe que os media não parecem determinar os gostos, mas sim serem usados em conformidade com os gostos, já determinados por outra via. O membro típico de audiência seleciona, entre as variedades que o meio oferece, aquelas mercadorias que estão de acordo com seus gostos existentes e de maneira característica evita a exposição, de outros tipos de material” – pg. 168. No próximo capítulo, a partir dos argumentos de Horkheimer e Adorno (1985) e de Morin (1990), a respeito do conceito de indústria cultural e formação do gosto médio, pretende-se

produção musical. A repetição vai conformando o gosto musical dos consumidores culturais, como se isto ocorresse espontaneamente pela suposta qualidade intrínseca da melodia.

A decadência do gosto musical, a partir do componente do reaparecimento continuado das mercadorias musicais padronizadas, não ocorre apenas no plano da transmissão do objeto cultural em si. Mas, é acompanhada pelo suporte oferecido pelos meios de divulgação impressa e audiovisual, que criam condições para sua exposição em programas de auditório, fetichizando a representação pública de cantores, bandas musicais, estilos, quase sempre associados à publicidade, telenovelas e à política de marketing dos veículos de comunicação.

De acordo com Adorno (1991: 79), em argumento expressado no texto

O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição, de 1963:

Se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas (os grifos não constam do original).

Ao lado da repetição, outros fatores que contribuem para o processo de adaptação referem-se aos mecanismos psicológicos de construção e transmissão de modelos de personalidade e a conseqüente tentativa de possibilitar à audiência um exercício permanente de identificação-projeção,

questionar a validade da teoria do reforço das normas sociais, proposta pelos teóricos da pesquisa administrativa americana.

quando são transferidos, de forma aparentemente desinteressada, hábitos, necessidades, juízos de valor, que incidem na formação ética, estética, cultural.

Como explica Zuin (1998: 115), estes mecanismos psicológicos podem ser localizados desde os primórdios da humanidade quando, para a sobrevivência humana, era essencial a projeção das pulsões nas entidades

externas, tais como as divindades, que exerciam a função de prover as explicações para os fenômenos naturais. As divindades de hoje, nesta

sociedade esclarecida, estão configuradas pelas personagens públicas que habitam os tabernáculos da fama.

Buscando instrumentalizar os mecanismos de projeção-identificação da audiência, em comerciais, filmes, arranjos musicais, documentários, seriados e telenovelas, a indústria cultural, ao invés de sublimar, reprime, pois o momento catártico da projeção é administrado como uma dimensão do pré-prazer. A este propósito, Türcke (1997: 11), em outro contexto, na análise da comunicação virtual, esclarece que os mecanismos de dominação sensorial-estética, presente no engodo da indústria cultural, consiste em

oferecer o prazer dos sentidos de modo a retê-lo simultaneamente. Isto é,

interdita permanentemente o que promete. Nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985: 131):

A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu ao masoquismo.

Como foi dito, a subsunção do sujeito ao ethos da sociedade administrada, que instituiu o hábito da renúncia, decorre em parte da idealização coletiva que se faz das personagens públicas expostas aos mass

mecanismos psicológicos de adesão ao nazifascismo, tendo como referência modelos de personalidade difundidos pela propaganda política, através dos veículos de comunicação.

É importante notar que a debilitação da estrutura de personalidade, em uma sociedade autoritária, criou as condições para que os ideais de ego fossem projetados na figura do Führer, como fator de coesão interna, facilitando a afirmação de uma identidade nacional etnocêntrica.

Aos poucos, esta pesquisa tende a ajuizar que a perda da experiência, a partir da mediação tecnológica, representa uma forma de afirmação do caráter positivo da cultura, que se expressa pela subsunção do particular aos modelos dominantes de estética em todas as áreas de produção, cuja expressão se confunde com o paroxismo entre profusão aparente de modelos e uma simplificação de seu ajustamento às regras do mercado e ao consumo massivo.