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A peregrinação pensionária da baronesa durante a era Nery

Exatamente um ano após a publicação do Álbum do Amazonas40, no qual o barão de Santa-Anna Nery fora aclamado pela imprensa oficial daquele estado, sua esposa escreve uma carta violenta ao Governador Silvério Nery. Ao que se entende, a baronesa chegara a Manaus fazia pouco tempo, passara antes no Pará, e tinha como objetivo ter a certeza de que poderia contar “com a pensão que o Exmo. Sr. Martius, mordomo da Santa Casa, teve a bondade de

37 “(...) je dois mourir de faim!” (Baronesa de Santa-Anna Nery, Carta ao Barão do Rio Branco, 17 jan. 1903). 38 A baronesa certamente soube desta nomeação pelos jornais e a partir disso passa a solicitar ajuda não só a um

antigo amigo de seu marido, mas a um ministro de Estado, à época um dos homens mais importantes e prestigiado do Brasil.

39 Pelos arquivos do AHI, Santa-Anna Nery e o barão do Rio Branco trocaram inúmeras correspondências ao

longo de suas vidas (essas cartas vão de 1884 a 1900). Algumas passagens desta relação serão apresentadas ao longo da tese, principalmente nos capítulos 3 e 4.

37 comunicar dizendo-me que vos [Silvério Nery] tinha dado a palavra de honra a este respeito”41. Esta, por sinal, é a matéria de todas as cartas endereçadas pela baronesa seja a quem fosse42: “Conhecendo os eminentes serviços que meu marido prestou as Amazonias e ao Brazil, garantindo assim uma pequena pensão a sua viúva que a punha ao abrigo das mais tristes provaçaos” (Idem, 21 nov. 1902, grifo da autora). E pelo que se depreende, a promessa desta pensão foi dada pela primeira vez por Raymundo Nery, outro irmão de Santa-Anna Nery, ainda em Paris, quando foi enviado pelo governo do Amazonas para trazer os restos mortais de Santa-Anna Nery43. Aqui, entretanto, inicia-se também uma intriga amorosa revelada pela carta da Baronesa à Silvério Nery, copiada posteriormente ao barão do Rio Branco44.

Nesta carta a baronesa revela, com bastante desgosto, que Santa-Anna Nery tivera uma amante: “a tal Stern, judia de [ilegível]”. Tal descoberta, pelos idos de 1900, pela baronesa fez com que ela fosse à delegacia de polícia e “mandasse expulsar” Stern de Paris. Não sabemos se conseguiu, entretanto, após a morte do marido (junho de 1901), quem acabou se relacionando com a Stern foi o outro irmão do falecido, Raymundo Nery; e o envolvimento foi tal que eles se casaram, pelo visto em 1902. Fato que deixou a baronesa desolada e raivosa, a ponto de a viúva e o cunhado passarem a trocar insultos, seja em Paris, seja na Amazônia. Assim, Raymundo Nery, que havia lhe anunciado a pensão passou, agora, a fazer de tudo para que ela não só não a obtivesse como “decretou o ostracismo da viúva de Santa- Anna Nery”; pois ele, Raymundo Nery, ainda segundo a baronesa, se tornara um “instrumento passivo nas mãos de uma mulher [Stern] de baixo calão”45. Não à toa, a baronesa, que morava em Paris, viaja para a Amazônia a fim de verificar em que pé estava o seu processo pensionário; e dizia ainda que não deixaria a “terra querida, de meu querido, sem levar commigo alguns esclarecimentos a este respeito”46. Porém, como diz o provérbio popular – a

41 Baronesa de Santa-Anna Nery, Cópia da carta endereçada ao Silvério Nery e enviada ao barão do Rio

Branco, 21 nov. 1902.

42 Ela diz ao Rio Branco que enviou cartas ao presidente da República, Rodrigues Alves, e ao proprietário do

Jornal do Commercio, José Carlos Rodrigues (Idem, Carta ao barão do Rio Branco,17 dez. 1903). Na fundação casa de Rui Barbosa (FCRB), encontramos também cartas lamuriosas ao Ruy Barbosa. No IHGB encontramos cartas ao D. Antonio de Macedo Costa.

43 Entretanto, isto é apenas uma suposição, extraída do contexto da carta, uma vez que fisicamente a carta se

encontra bastante degradada e com letra de rascunho. A nota onde se encontra esta informação também está rasgada, como se lê: “Raymundo Nery est vennu à Paris [ilegível] frais de l’Amazone [ilegível] disant pour chercher les cercueil de mon marido et pour m’annoncer officiellement que je pouvais compter [folha rasgada].” (Baronesa de Santa-Anna Nery, Cópia da carta endereçada ao Silvério Nery e enviada ao barão do Rio Branco, 21 nov. 1902).

44 Ibidem.

45 Baronesa de Santa-Anna Nery, Carta endereçada ao barão do Rio Branco, 17 jan. 1903; assim como as

citações acima sem referências.

38 maior vingança é o desprezo –, e ao que consta a tal Stern, por meio de Raymundo Nery, conseguiu realizar a sua. Pois, após uma jornada de mais de dois meses em Manaus, a baronesa não conseguiu um único encontro com o seu cunhado governador, apesar das missivas insistentes47. Em uma das cópias das cartas à Silvério, enviadas ao barão do Rio Branco, ela chega mesmo a registrar, apenas para mostrar ao barão o tratamento que vinha recebendo da família de seu finado marido, que teve como resposta, “a visita do Sr. Sá Valle para insultar-me e ameaçar-me!!! Hic jacet honoris!”48.

Só para recordar o leitor, foi também o Sr. Sá Valle que foi reconhecer o corpo do seu finado amigo Santa-Anna Nery no hospital parisiense, a pedido da própria família. Contudo, tanto a baronesa, como os jornalistas portugueses, não especificam a qual dos Sá Valle se referem. Haja vista que temos três possibilidades: Raymundo de Sá Valle, G. de Sá Valle e Silvio de Sá Valle; todos filhos do visconde de Desterro. No entanto, quanto ao Sá Valle que foi reconhecer o corpo de Santa-Anna Nery, acreditamos fortemente tratar-se de Silvio de Sá Valle, uma vez que este último morou na França por mais de dezoito anos e desenvolveu diversas atividades em Paris, inclusive como membro da Commission Brésilienne d’études à

l’Exposition Universelle de 188949, da qual Santa-Anna Nery – como veremos no terceiro capítulo – foi um personagem central. Provavelmente, fora o mesmo Silvio de Sá Valle, conhecido e íntimo da família, visitar a baronesa de Santa-Anna Nery a pedido dos irmãos do falecido50. Entretanto, o que será que ocorrera para que, não só os próprios irmãos do finado Santa-Anna Nery, como seus amigos mais íntimos, passassem agora a hostilizar sua viúva? Para a baronesa, caro leitor, claro está que a origem desta trama novelesca reside nesta dupla “traição”: primeiro de seu marido com a tal Stern e depois, para consumar a desgraça da baronesa, a do cunhado com a mesma “Stern Judia de [ilegível]”, a mesma que, provavelmente, fora expulsa de Paris pela baronesa e agora a “recompensava” com o mesmo tratamento, expulsando-a da família Nery.

Nessas cartas ao Silvério Nery fica bastante clara esta exclusão da baronesa, ou nas palavras de Raymundo Nery, sua condenação ao ostracismo. Pois, ao que consta, ela foi

47 “Mais comme il est regrettable que je ne puisse pas vous dire tout ceci [ilegível]; le jour où j’ai débarqué à

Manaos, vous m’avez fait annoncer votre visite pour deux heure. Que de [ilegível] et que de tristesse l’épargnés, si cette visite eût été faite!” (Ibidem). Neste trecho, apesar das passagens ilegíveis, fica explícita a vontade da baronesa em dizer tudo o que pensava, tetê-à-tête, para o seu cunhado.

48 “Aqui jaz a honra!” (Idem, Cópia da carta endereçada ao Silvério Nery e enviada ao barão do Rio Branco, 12

dez. 1902). Utilizando-se de expressões latinas, a baronesa reproduzia a forma de escrever de seu marido, que se reflete em inúmeros autores contemporâneos a ele e aos anteriores.

49 Archive Nationale (AN), F/17/40292 - Demande de distinction honrifique (M. de Sá Valle).

50 A própria baronesa diz ter lido nos jornais sobre a chegada do Sr. Sá Valle a Manaus, sem dizer o motivo, que

ela supõe ser a inauguração da estátua de Santa-Anna Nery (Idem, Cópia da correspondência endereçada à

39 mesmo impedida de participar da inauguração do monumento ao seu marido no centro de Manaus. Em uma dessas cartas, ela chega a implorar para poder participar de tal ato, que já havia até mudado de data, pois, certamente, o governador esperava que ela saísse de Manaus para poder realizar a inauguração, pois devia temer uma manifestação pública da viúva de Santa-Anna Nery contra ele próprio e seu irmão Raymundo Nery. Assim, nem mesmo o local onde seria instalado o busto de Santa-Anna Nery, que segundo ela “deixava muito a desejar” (ibidem), lhe foi revelado. Como resposta, ao descaso em relação a sua presença, a baronesa recomendou ao Silvério Nery que pegasse em sua biblioteca o livro “Prince”, no qual ele encontraria “a bela página sobre a opinião pública” E continua: “Mas, se na plenitude de vosso poder você a despreza, lembre-se simplesmente desta definição de St. Augustinho sobre um verdadeiro homem: ‘Flos honoris Christianus’ – Flores de fé e de honra; flores de honra cristã!”51. Não à toa, o governador enviou um amigo da família para tirar satisfação sobre a provocação maquiavélica da baronesa.

O fato é que a baronesa não pôde contar com a ajuda dos irmãos políticos de Santa- Anna Nery, que pareciam mesmo trabalhar contra ela, pois certamente temiam que as intimidades da família Nery fossem reveladas publicamente e se tornassem combustível político nas mãos dos opositores52. Sua situação financeira, que tinha na pensão uma esperança, se definhou. Mesmo antes, em Paris, ela já havia empenhado uma escultura valiosa de “Pietá”, bem como todas as suas “joias para viver” e, principalmente, para quitar as dívidas adquiridas pelo marido53. Depois, vendeu ainda a biblioteca de Santa-Anna Nery, provavelmente uma das mais importantes brasilianas de toda a Europa54, e que, curiosamente, mal chegou a socorrê-la de suas mais básicas necessidades e outros “forçosos

51 Idem, 12 de dezembro de 1902. Em outros trechos das cartas a baronesa deixa clara que a opinião pública do

Amazonas veria com muitos bons olhos um auxílio para a viúva dos “mais importantes dos Nery”; segundo leitura da baronesa.

52 Numa das cartas a baronesa revela ainda que Santa-Anna Nery tivera um filho fora do casamento, como se

segue : “Finalmente desejo vos fallar do filho legitimado de meu marido: Marcel de Santa-Anna Nery e digno do nome de seu pai: leal cheio de coração e de honra, instruído, laborioso, piedoso e bem educado, elle tem só um defeito: é pobre como eu!” (Idem, 21 de novembro de 1902).

53 Idem, 12 de dezembro de 1902. A baronesa não específica quais eram essas dívidas.

54 A primeira notícia que tivemos desta biblioteca foi dada por Vicente Salles (1992) na apresentação de sua

tradução da obra Folk-Lore Brésilien de Santa-Anna Nery. Nesta, Salles diz que “a par da coleta de literatura oral, Santa-Anna Nery reuniu também imenso material ergológico, que conservou num museu doméstico na sua casa em Paris. Nada sabemos a respeito do destino desse material, tampouco de sua rica biblioteca”. Depois, Antonio Faria, que constrói a segunda biografia de Santa-Anna Nery, fala desta biblioteca, apesar de tê-la escrito em 1905, ele fala dela sempre no passado e que chegou mesmo a consultá-la. E finalmente nas cartas da baronesa descobrimos a venda. Chegamos mesmo a consultar La Gazette de l'Hôtel Drouot entre os anos de 1901 e 1902, pois o Hôtel Drouot, que existe até hoje, era um local especializado em vendas públicas em Paris, seja de bibliotecas, obras de arte, etc. Mas, infelizmente são milhares de páginas microfilmadas com leitura bastante opaca.

40 compromissos”55. Apesar de toda esta vendagem, a baronesa adquiriu em Manaus inúmeras dívidas e não tinha mais nenhum “conto de réis” para honrá-las. Em sua derradeira carta ao Silvério Nery, copiada ao barão do Rio Branco, ela diz:

(...) para ir m’embora falta me tudo! Estou devendo bastante em Manaos; eu preciso também viver até o congresso [ilegível] votada a pensão promettida; deixo compromissos urgentes em Europa. Tomo a liberdade de pedir a V. excellencia de adiantar-me seis contos [...] Acho esta solução honrável e prática para mim. Vossa Exça conhece minha triste situação56.

No entanto, nesta última carta, a baronesa está mais branda e confiante, pois finalmente “depois de tantos mezes” ela poderia “contar com a pensão” que tanto implorou, uma vez que o governador havia enviado outro amigo, desta vez, mais cordial, o coronel Lima Bacury, para lhe garantir ‘pessoalmente’ tal promessa. Assim, ela poderia retornar à Europa com uma “inteira confiança”. Porém, na verdade, ela foi somente persuadida pelo cunhado e seus colaboradores para que retornasse à Europa. Assim, eles se livrariam de uma mulher que se tornara um fardo, haja vista que ela poderia atrapalhar a jovem carreira política de Raymundo Nery57 e dos demais, devido os seus conhecimentos já revelados.

De certo modo, este é o conteúdo que a baronesa expõe ao ministro das Relações Exteriores, enviando-lhe as cópias das cartas que ela havia prometido não torná-las públicas, mas como o próprio governador do Amazonas já havia apresentado a outras pessoas58, a baronesa não se mostrou nenhum um pouco intimidada em revelá-las ao homem que poderia,

55 Numa das notas de rodapé, a baronesa chega a falar ainda de uma hipoteca que contraiu, mas o restante da

leitura está impossibilitada por um rasgo no fim da página. (Idem, Cópia da carta endereçada à Silvério Nery em 21 de novembro de 1902 e enviada ao Barão do Rio Branco).

56 Santa-Anna Nery, Baronesa, Cópia da correspondência endereçada à Silvério Nery em 04 de janeiro de 1903

e enviada ao barão do Rio Branco.

57 Mas pelo visto atrapalhou, pois de todos os livros consultados sobre os “grandes nomes” da região Amazônica,

notadamente Bittencourt (1976) e Borges (1986), Raymundo Nery não aparece em nenhum deles, diferentemente de Silvério José Nery (o pai deles), Santa-Anna Nery, Silvério Nery, Constantino Nery e Márcio Nery. A única publicação em que encontramos uma citação sobre Raymundo Nery foi na obra de Dunshee de Abranches (1918), na qual ele faz uma compilação biográfica de todos “os prezidentes e vice-prezidentes da republica, ministros de estado, e senadores e deputados ao Congresso nacional”, entre 1889 e 1917. Nesta publicação Dunshee diz que Raymundo Nery “destinou-se a principio á carreira das armas, como todos os seus irmãos, fazendo até o primeiro anno do curso superior na Escola Militar do Rio de Janeiro. Adoecendo, porém, gravemente, pedio baixa do serviço militar e tirou o titulo de agrimensor na Escola Polytechnica da mesma cidade. Regressando ao Amazonas, ahi entregou-se a medições de terras e foi nomeado professor de francez da Escola Normal. Eleito deputado á 5ª legislatura, não teve mais o mandato renovado. Passou então a rezidir na Europa.” Talvez, quem sabe, com a tal Stern.

58 Algo importante a dizer é que todas as cartas da baronesa de Santa-Anna Nery ao barão do Rio Branco estão

em francês. O mesmo já não ocorre às cartas para Silvério Nery. Pois, ao que parece este não devia ler bem em francês, assim como a baronesa também não escrevia bem em português. Isto porque em uma das cartas ela diz que escreveria “agora em português” “(...) pois vos escrevi em francês de Pará”, mas quando ela teve contato com o “Sr. Director da Instrução Publica, (...) encontrou uma pessoa inteiramente a par dos embaraços e soffrimentos da vida intima, pelas minhas cartas, que vos escrevi; e que vos lhe entregastes!”. A baronesa diz, então, que ficou bastante descontente com tal exposição (Idem, 21 de novembro de 1902).

41 quem sabe, tirá-la do limbo. Para tanto, no decurso de 1903 a 1904 a baronesa irá tentar se servir da “grande influência e poder” do barão do Rio Branco para adquirir a referida pensão, seja junto ao congresso Federal, seja ao congresso do Amazonas. Entretanto, Rio Branco não irá responder as cartas repletas de intrigas familiares enviadas pela baronesa, de Manaus. Certamente o Barão não quisesse entrar nessas questões, naquele momento, uma vez que ele era o responsável pela solução diplomática do delicado litígio entre a Bolívia e o Brasil, e de certa forma entre o Rio de Janeiro e o Amazonas, que revindicava o território do Acre para si.

O estado do Amazonas, naquele final do século XIX, era um estado bastante recente em termos político-administrativos59, contava também com uma população de apenas 147.915 mil habitantes, mas exportava mais, em números absolutos, que muitos países vizinhos, como o Peru, o Equador, sem falar nas guianas britânica e holandesa60. Pois, trata-se de um período áureo para a região amazônica, representado pelo chamado ouro negro, a borracha. E como já apontava Santa-Anna Nery (1899:48), financiado pela Assembleia Legislativa do Amazonas, “o rio Acre tornou-se, em época relativamente recente, um dos centros mais ativos da produção deste ouro vegetal (...)”. Daí a disputa entre o Governo Federal e o Estado do Amazonas sobre o controle deste território altamente rico em Hevea brasiliensis ou a popularmente chamada seringueira. Entretanto, após a assinatura do tratado de Petrópolis61, o Acre entrou para o Brasil como um Território Federal e o Estado do Amazonas, governado por Silvério Nery, perdeu o domínio sobre esta zona: a maior produtora de borracha do Brasil, num momento em que esse produto rivalizava com o café na contribuição de divisas externas para o país62.

Além desta disputa com o Governo Federal, o estado do Amazonas também rivalizava economicamente, politicamente e territorialmente63, com sua antiga “província mãe”, o estado do Pará. Já que grande parte da borracha produzida pelo Amazonas era exportada pelo estado

59 A província do Amazonas se emancipou do Grão-Pará em 1852. Ver, nesse sentido, Gregório (2012).

60 O barão de Santa-Anna Nery, em sua segunda edição de seu famoso livro, Le pays des Amazones (1899:224),

é quem nos fornece esses números.

61 “Finalmente, depois de quatro meses de intensas negociações, foi assinado em 17 de novembro de 1903 o

tratado de Petrópolis. Por ele, o Governo boliviano cedia ao Brasil um território de 191.000 km2, em troca de

compensações territoriais em vários trechos da fronteira mato-grossense; uma área de 3.200 km2 habitada por

bolivianos entre o Beni e o Madeira; a construção de uma estrada de ferro entre Porto Velho e Guajará-Mirim; e a indenização de dois milhões de libras esterlinas” (Goes Filho, 1999:293).

62 Carlos Walter Porto Gonçalves (2001:28) chama a figura jurídica, Território Federal, de esdrúxula por não

constar da Carta Magna da recém-criada República. O que demonstra o interesse direto da União Federal sobre os lucros da produção da borracha naquele antigo Fundo Territorial (sobre esta última expressão ver Moraes, . Sobre a economia da Borracha no Brasil, em sua expansão e decadência, consulte ainda: Barbara Weinstein (1993); sobre a história econômica da Amazônia, cf. Roberto Santos (1980).

63 Este conflito territorial estava centrado, especialmente, sobre a bacia do rio Tapajós. Ver, curiosamente, o

texto de Torquato Tapajós (1895). Sobre as rivalidades, especialmente em seu viés econômico, entre os dois entes federativos amazônicos ver o capítulo sete, Pará versus Amazonas, do texto de Weinstein (1993).

42 vizinho, que detinha o principal porto do Brasil, depois do Rio de Janeiro e São Paulo. Desta forma, o Pará arrecadava mais em impostos correlatos à exportação – mesmo que essas receitas fossem calculadas segundo o lugar de origem da borracha – do que o Amazonas, o que impedia que este último “tivesse acesso a uma ampla gama de impostos comercialmente correlatos, e isso restringia seriamente o crescimento e o desenvolvimento de sua capital” (Weinstein, 1993:221).

Parece que a baronesa de Santa-Anna Nery conhecia este cenário beligerante entre os dois entes federativos e, desta forma, vai ao Pará. Na capital do Estado, terra onde nasceu Santa-Anna Nery, ela conta com o auxilio de antigos amigos e admiradores de seu finado marido. Gente ligada à Igreja, como o bispo Aguiar64 e o vigário geral Hippolito Costa, além de outras famílias, sobretudo, àquelas que não dependiam da administração pública para viver. É demonstrado em suas correspondências para o barão que quem tivesse algum vínculo com o poder local, mesmo estando fora da abrangência administrativa do Amazonas, estava impedido de auxiliá-la, em função da grande força política dos Nery, também no Pará65 (Idem, 17 de janeiro de 1903). Nesse sentido, ela enfatiza, particularmente, a ajuda de Carlos Theodor Gonzales, redator e chefe do jornal da oposição aos Nery: o Quo Vadis?. Mas, mesmo ele diz não poder fazer muita coisa por ela, “pois a única liberdade que havia no Amazonas era a morte”66. Ela diz ainda ter recebido ofertas dos inimigos de Silvério Nery para começar uma campanha pública contra ele, aproveitando-se da situação vexaminosa por que passava a viúva de Santa-Anna Nery, além de outras informações. Oferta que ela diz recusar, mesmo após todas as privações que ela diz passar, deixando transparecer que apesar