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Ainda no campo das memórias póstumas de Santa-Anna Nery, achamos pertinente, neste momento, uma explicitação sobre o seu lugar entre os Nery. Podemos iniciar este breve percurso genealógico pelo relato de seu amigo Pedro Gomes do Rego, que irá marcá-lo tanto póstumamente, como em vida, conforme já vimos e veremos no decurso desta tese.

Aos 14 anos, tendo feito seus primeiros estudos no Seminário do Amazonas, único estabelecimento de instrução secundária que existia na província, vai à França afim d’ali completar sua educação. Seu pai consente em fazer uma exceção em favor d’ele, enquanto seus irmãos seguem a carreira militar, Sant’Anna Nery entra na arena literária realizando a sua divisa: Sicut ensis calamus, a pena é como a espada (Rego,1882:9).

Por esses escritos depreende-se que Santa-Anna Nery, em função de sua dedicação exaustiva aos estudos, obteve de seu pai uma concessão não atingida por seus irmãos. O que nos levou mesmo a pensar que Santa-Anna Nery era o filho caçula do casal Silvério José Nery92 e Maria Antony Nery93. Assim, não seria estranho ao caçula, estudioso, seguir para o

do Rio Branco em 05 de janeiro de 1904). Mais tarde, ela pede ainda ao Barão um conto de réis para a publicação de seu livro. Ignoramos se chegou a publicar, acreditamos que não, pois em todas as nossas pesquisas jamais encontramos um livro seu, seja como Anna de Santa-Anna Nery, seja como baronesa de Santa-Anna Nery (Santa-Anna Nery, Anna de, Carta endereçada ao barão do Rio Branco em 19 de julho de 1904).

90 Ela diz retornar da “Amazônia absolutamente indignada com a ma fé de Silvério Nery que apesar de sua

promessa formal, no ano passado de me dar uma pensão, a emperrou desde os primeiros dias que a comissão de Poderes deu um ‘parecer’”. Ela diz ainda ter sido mais uma vez ludibriada pela família e os círculos de influência dos Nery e enganada pelo Constantino Nery, “um ser incompleto, uma besta jovem (...)” (ibidem).

91 Santa-Anna Nery, baronesa de, Carta endereçada ao barão do Rio Branco em 22 de outubro de 1904. Nesta

derradeira carta, a Baronesa transmite ao Barão uma mensagem subliminar, na transversal do texto, como que compondo as linhas verticais, dizendo: “Votre influence est grande”.

92 Toda vez que utilizamos a forma Silvério José Nery falamos de seu pai, quando utilizamos Silvério Nery,

falamos do filho, apesar de ambos serem homônimos, nome herdado do avô paterno de Silvério José Nery.

93 Como nos apontam em suas memórias póstumas, entre artigos de jornal (Borges,1986:133), textos

50 Velho Mundo a fim de se aperfeiçoar, enquanto seus irmãos, mais velhos, seguiam a carreira do pai. Entretanto, após a leitura da biografia escrita por Antonio Faria (1905) descobrimos que Santa-Anna Nery era, em verdade, o primogênito94. Achamos que havia algo que não se encaixava entre essas duas construções biográficas. Além disso, Rego (1882:9) afirmava que Santa-Anna Nery tinha ficado órfão aos sete anos, ainda em Belém do Pará. Ora, se ele nascera em 1848, tal fato ocorrera em 1855. Depois, descobrimos que Silvério Nery nascera em 1858, Constantino Nery em 1859, Raymundo Nery em 1861, e assim por diante. Ora, a partir dessas constatações, conluímos o óbvio: a mãe de Santa-Anna Nery não é a mesma mãe de seus outros irmãos, apesar de todos os trabalhos da nota precedente, suas memórias póstumas, nos dizerem que sim e apontarem como sua mãe: Maria Antony Nery.

Assim, consultamos e reconsultamos o livro de Agnello Bittencourt (1973)95, importante dicionário biográfico do Amazonas, especialmente, para o período da primeira República. Um dicionário composto por centenas de nomes ligados ao Amazonas, mas carregado de análises parciais, apesar de o autor procurar fazer o inverso96. O caso da família Nery é exemplar: são diversos membros desta família registrados por Bittencourt, contando ainda com os mais destacados elogios. Tudo porque os Nery e os Bittencourt foram aliados em diversos momentos da história política amazônica97. Assim, temos o verbete de Santa- Anna Nery e de diversos de seus irmãos, todos como filhos de Maria Antony. Porém, ao consultarmos o verbete de seu pai, Silvério José Nery, quase na última linha, encontramos a contradição. Dizendo que, “ao contrair matrimônio com D. Maria Antony, Silvério José Nery trouxe um casal de filhos nascidos em Belém do Pará, Frederico de Santa-Anna Nery e Angela Nery” (Bittencourt,1973:458).

Pois é, caro leitor, os Nery, descritos no tópico anterior e que foram tão hostis com a viúva de Santa-Anna Nery, são, em verdade, seus meios-irmãos. Além do mais, quando institucionais do governo do Estado do Amazonas (Mendonça, 2010) textos acadêmicos (Sarges e Coelho, 2008:48) e dissertações de mestrado (Coelho, 2007: 15).

94 Faria (1905:XXV), apesar de inserir esta nova informação, segue de certa forma o texto de Rego ao dizer:

“Fils aîné d’un militaire distingué et petit-fils d’un officier de l’armée brésilienne, il était destiné, comme ses frères à la carrière des armes”.

95 “O nome de Agnello Bittencourt (1875-1973) consta de vários dicionários biográficos brasileiros e

enciclopédias. Nasceu e estudou no Amazonas. Por 52 anos exerceu o magistério e, além das atividades intelectuais e da vasta bibliografia publicada, foi superintendente municipal de Manaus (1909), quando seu pai era governador do estado. Foi sócio honorário do IHGB” (Doau, 2000:870).

96 “Em relação a fatos narrados a reconstituição que tento nestas páginas tem o caráter de um testemunho, ou

porque os tenha assistido, como espectador interessado, ou por tê-los vivido, como participante. Procurei adotar uma atitude de isenção e imparcialidade, despido das emoções que a perspectiva do tempo dilui e deve ter apagado. Espero ter dado sempre uma versão neutra dos acontecimentos” (Bittencourt, 1973:14).

97 No verbete de Silvério Nery, por exemplo, ele diz que Silvério Nery passou a ser combatido após deixar o

poder e se afastar do governo do coronel Bittencourt (pai de Agnello Bittencourt, que se tornou governador do Amazonas após o governo de Constantino Nery). Mas, “dentro em pouco, inclusive Nery e Bittencourt estavam de mãos dadas, por uma nova luta pelo Amazonas” (Bittencourt, 1973:462).

51 crianças e adolescentes, mal teceram relações. Pois, como bem coloca Pedro do Rego, Santa- Anna Nery vai para a Europa com quatorze anos de idade98, o que significa dizer que quando Santa-Anna Nery está partindo para o seu “exílio voluntário” (Nery [Santa-Anna Nery], 1872:9). Silvério Nery (o primogênito deste novo casal, que recebeu o nome do pai e do bisavô) tinha apenas quatro anos de idade; Constantino, três anos; e Raymundo, tinha apenas um ano de vida; ainda viriam mais sete meios-irmãos frutos da madrasta de Santa-Anna Nery e de seu pai. Meios-irmãos que Santa-Anna Nery só foi conhecer, se é que conheceu, após vinte anos de distanciamento. Ora, todo o ilusionismo biográfico de Pedro do Rego, Antonio Faria e todos os demais que o reproduziram, cai por água abaixo. Pois a bela narração citada antes por Rego, de que seu pai lhe consentia abrir uma exceção, em razão de seu esforço intelectual, diferente de seus irmãos, que teriam de seguir a carreira do pai, se desmancha na análise das fontes.

Neste sentido, na leitura da obra de Santa-Anna Nery, vez ou outra, nos deparávamos com o termo “madrasta”, sem darmos muita importância. A par dessas informações, passamos a ficar mais atentos, a fim de compreendermos melhor sua significação. Curiosamente, encontramos uma correlata à rivalidade entre o Pará e o Amazonas. Quando nos idos de 1884, portanto, dois anos após sua visita ao Brasil, ele iria defender uma classificação das províncias brasileiras em duas categorias: “as que desfructam e as que são desfructadas. As primeiras gozam todas as vantagens de filhas mimosas do Estado (...). As segundas são tratadas como importunas enteadas (...).” Aqui já temos o exemplo de como as madrastas tratam seus enteados: usando-os e abusando deles. Mas ele prossegue: “Há um quartel de seculo, a provincia do Espirito Santo contava entre as engeitadas de primeira ordem. Foi substituida pelas provincias do Pará e Amazonas junto da ingrata madrasta” (Santa-Anna Nery, 1884g:15)99.

Em outro momento, escrevendo nos rodapés do Jornal do Commercio, direto de Paris, gastando todo o seu patriotismo contra a prepotência europeia, ele diz para o público fluminense:

“Pois bem! A quinta essência da língua dos europêos ao fallar dos outros povos, é a palavra bárbaros! A Europa nunca foi para nós mai carinhosa, nunca passou de

madrasta. Mas, somente, porque tem cabellos brancos e anda ataviada de safados

farrapos de seda, julga-se com jus para desprezar o mundo inteiro. O europêo, por mais bronco que seja, julga-se superior ao resto do mundo. O Brazil? Nação de

98 Esta informação também é confirmada por Santa-Anna Nery (1872) e (1889a).

99 Apesar de mal escrito, Santa-Anna Nery se refere ao Pará como uma madrasta para o Amazonas, evidenciando

a rivalidade entre as duas, provavelmente em razão da exportação da borracha pela “ingrata madrasta”, o Pará, que acabava desfrutando dos impostos provenientes do Amazonas.

52 selvagens! O Egypto? Paiz de negros! A China? Terra de sandêca!(...)” (Santa-Anna Nery, 19 de fevereiro de 1876, o grifo é nosso).

Apenas dois exemplos que expressam bem o uso do termo madrasta na vasta obra neryana. Acepção carregada de senso-comum, mas que pode ter relação com a adolescência de Santa-Anna Nery e sua saída do Brasil, em 1862. Além de explicar também esta longa ausência em retornar, mesmo que fosse para uma rápida visita, como foi em 1882.

Só que neste regresso, Santa-Anna Nery, por meio da biografia de Pedro do Rego e de todos os depoimentos nele contidos100, volta não só homem feito, mas, com diversas distinções: “França, Italia e Portugal reconhecem os serviços prestados ao Brazil por Sant’Anna Nery, e Lh’os agradecem, condecorando-o e admitindo-o no grêmio das suas sociedades litterarias” (Rego, 1882:19). Quer dizer, Santa-Anna Nery só retorna à sua terra natal com todos os louvores do mundo dito civilizado. Na linguagem popular diríamos que Sant’Anna Nery vencera na vida e talvez por isso, só agora, retornava ao lar. Mas, ele buscava ainda o reconhecimento de sua pátria, que não lhe concedera ainda nenhuma condecoração, “nem tão pouco pertence à nenhuma sociedade litteraria nacional. É o caso de poder elle dizer, parodiando Piron: Je ne suis rien, pas même Academicien... du Brésil ” (ibidem). Contudo, quiçá, ele desejasse também, além deste reconhecimento institucional, o reconhecimento familiar: de sua irmã, meios-irmãos e, porque não, de sua madrasta, uma vez que seu pai já estava morto quando de seu regresso.

Maria Antony, a madrasta de Santa-Anna Nery, pertence a uma antiga e importante família de Manaus – os Antony – que também deixaram sua marca na política e no corpo militar do Amazonas e do Brasil101. Silvério José Nery, provindo de Belém do Pará102, foi destacado pelo Exército para Manaus como encarregado do armazém de artigos bélicos. Em pouco tempo, na capital da nova província do Amazonas, se casou com Maria Antony, conforme relatado em seu diário (apud Bittencourt, 1973457-458)103:

100 Que foram ambos publicados antes nos jornais, como se depreende da própria edição produzida por Pedro do

Rego (1882).

101 Maria Antony provavelmente fora parente próxima de Henrique Antony, imigrante da Córsega, que foi para

Manaus, quando esta ainda se chamava Lugar da Barra e tinha acabado de se tornar capital da antiga Capitania do Rio Negro, na primeira metade do século XIX. Henrique Antony foi um importante comerciante e que deixou suas marcas na cidade. Ele foi, por exemplo, o responsável pela construção de um prédio de dois batimentos que recebeu a expedição de Louis Agassiz e sua esposa Elizabeth em 1865. Tanto Henrique, como um de seus filhos, Luiz Antony lutaram na Guerra do Paraguai. O pai morreu lutando pela pátria que escolheu para si (como Tenente-Coronel), o filho retorna Tenente-Coronel e deixa uma prole de militares-políticos bastante influentes na política do Amazonas, como Guerreiro Antony (Bittencourt, 1973; Mendonça, 2010).

102 Provavelmente pelos idos de 1856.

103 É Agnello Bittencourt quem nos dá a informação deste “caderno de notas”, dizendo que quem lhe forneceu

53 Silvério José Nery, filho de Marcelino José Nery e dona Maria Magdalena dos Prazeres. Foram seus avós paternos Silvério José Nery e Benedicta de Figueiredo e maternos Estevam de Moraes e Josefina do Nascimento Cunha, todos naturais da Província do Pará. Casou-se a 22 de julho de 1857, com dona Maria Antony, filha de Mário Leonardo e Maria Loureiro, naturais da Província do Amazonas. Foram testemunhas pelo casamento o Tenente-Coronel Pedro Nicolau Fragentino e o Capitão da Guarda Nacional Leonardo Ferreira Marques, sendo celebrante o Pe. Antonio, Capelão do Corpo da Guarnição desta Província.

Pelo trecho selecionado por Bittencourt, pois desconhecemos o restante do documento, fica evidente a eliminação do passado de Silvério José Nery em seu próprio diário. O próprio Bittencourt diz não saber mais nenhuma informação do pai de Santa-Anna Nery em Belém, alegando falta de informações. Já Mendonça (2010)104 destaca os feitos militares de Silvério José Nery, que segundo ele nasceu na província do Pará em 1818. Em 20 de junho de 1836 assentou praça no exército da cidade de Belém. Em 1860, já em Manaus é promovido ao posto de tenente. Cinco anos depois iria para o Paraguai lutar na Guerra, ao lado dos parentes de sua esposa, os Antony, e de seu pai105. No campo de batalha, em 1º de junho de 1867, torna-se capitão. Entretanto, foi ferido por tiro de arma de fogo e adquiriu uma ancilose no joelho direito, que lhe afetou a mobilidade, além de hepatite crônica106. Em função dessas desventuras, foi reformado no posto de major por decreto de 30 de novembro de 1871 e ainda foi levado ao comando do 3º Batalhão de Artilharia, também em Manaus, além de Delegado de Polícia da capital, em cargo anterior. Silvério José Nery morreu trabalhando107 como comandante da Guarda Policial (atualmente Polícia Militar do Amazonas). Tendo sido nomeado pelo 2º vice-presidente Guilherme José Moreira. Tal fato ocorrera no dia 27 de novembro de 1878.

Percebe-se pela data, que Santa-Anna Nery só regressa a sua pátria, após a morte do pai. Ou seja, a última vez que se viram, provavelmente, foi no porto de Manaus, naquele fatídico dia 19 de outubro de 1862. Santa-Anna Nery segue para a Europa, seus meios-irmãos – Silvério Nery e Constantino Nery – muitos anos depois, seguem a carreira do pai e vão

104 Roberto Mendonça é Coronel da Polícia Militar do Estado do Amazonas e escreve diversos textos para

jornais e internet, principalmente, sobre a história da Amazônia.

105 Alguns autores, como Faria (1905 ), Arthur César Reis (1931) afirmam que seu pai Marcelino José Nery

também lutou com seu filho na Guerra do Paraguai. Porém, Mendonça (2010) desconfia desta versão por achar que a idade de Marcelino no início desta guerra, 67 anos, o impedia de combater. Entretanto, conforme noticiado pelo Commercio do Amazonas, em 27 de julho de 1870 (número 239, p. 1), fica patente que o avô paterno de Santa-Anna Nery, não só participou da guerra como foi comandante de tropa: “Procedente do Pará tocou ante-hontem em nosso porto em Belem trasendo a seu bordo os voluntarios da patria que eram esperados, commandados pelo capitão Marcellino José Nery”.

106 Neste trecho, Mendonça (2010) usa como base o termo de inspeção de saúde de Silvério José Nery.

107 Mendonça (2010) nos lembra ainda que Silvério José Nery foi o “único Comandante-Geral a expirar, quando

no exercício da função, passados 165 anos de atividades da Polícia Militar do Amazonas (PMAM), possuía o falecido 60 anos de idade”.

54 estudar na Escola Militar do Rio de Janeiro. Constantino chega a alcançar o posto de major, já Silvério se torna agrimensor. E, como vimos, ambos deixam de lado a carreira militar para se dedicar a política do estado do Amazonas. Fizeram escola, o chamado “nerysmo”, que se perpetuou no poder por diversas gerações, descendentes deste segundo casamento do Major Silvério José Nery.

Já os do primeiro casamento do major Silvério José Nery – Santa-Anna Nery e Ângela Nery – não conseguimos nenhuma informação sobre a irmã legítima de Santa-Anna Nery. No que tange aos possíveis descendentes de Santa-Anna Nery, idem. Pois, ao menos para a abrangência desta pesquisa, desconhecemos o que ocorrera tanto com a filha da baronesa, enteada de Santa-Anna Nery, Maud108, bem como com o possível “filho legitimado” de Santa- Anna Nery, Marcel Nery; bem como ignoramos o que ocorrera com a baronesa de Santa- Anna Nery após as sua inócua peregrinação.

Reparem que após essa breve explanação sobre o lugar de Santa-Anna Nery entre os Nery, mesmo com toda pesquisa em fontes primárias e secundárias, ninguém cita o nome da mãe de Santa-Anna Nery: a esquecida e soterrada Johanna de Santa-Anna. Só a encontramos porque fomos revirar os arquivos do nosso “autor defunto” nas instituições que guardam os documentos dos mortos de Paris, como o AAP-HP, que nos Actes de Décès, nº 1102, nos auxiliava em nossa tarefa de exumação do personagem em foco109.