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2.3 AS INSTANCIAÇÕES DE OBRA

2.3.3 A NOÇÃO DE OBRA EM MUTAÇÕES

2.3.3.2 A performance da obra

O segundo modo de mutação que discutimos se refere à performance, palavra inglesa incorporada à língua portuguesa, que denota atuação, desempenho ou interpretação, associados a alguma habilidade. Glusberg (2009, p. 72) acrescenta ainda sentidos como preenchimento, realização, acompanhamento, ato, explosão, cerimônia, rito, espetáculo e um feito acrobático. Diante do exposto, mantemos o termo performance porque as palavras correlatas em português são insuficientes para expressar na totalidade o sentido dessa instanciação.

Dentro do âmbito da Linguística, Dubois et al. afirmam (2009, p. 463-464) que a

performance,

[...] depende da competência (sistema de regras) do sujeito psicológico, da situação da comunicação; ela depende, com efeito, dos mais diversos fatores, como a memória, a atenção o contexto social, as relações psicossociais entre falante e interlocutor, a afetividade dos participantes. As performances “[...] geralmente nasciam de exercícios de improvisação ou de ações espontâneas. Mas havia, ao mesmo tempo, uma incorporação das técnicas do teatro, da mímica, da dança, da fotografia, da música e do cinema” (GLUSBERG, 2009, p. 12). Além disso, a performance nem sempre segue algum tema ou conteúdo previamente conhecido pelo público.

A performance, inclusive a body art, abrange diversidades de manifestações nem sempre bem recebidas, às vezes inesperadas tanto para quem realiza quanto para aquele que é seu espectador. Isso é ilustrado no relato de Glusberg (2009) de performance violenta e sadomasoquista do Grupo de Viena, precursor da body art, que “[...] organizava

performances rituais, envolvendo sacrifício de animais, que terminavam com um abundante

derramamento de sangue.” (2009, p. 42). Além da body art, podemos acrescentar que a

performance abrange eventos esportivos, shows musicais, eventos circenses e outras do

gênero.

O ser humano realiza a performance, individual ou coletivamente, com desenvol- tura de corpo e de habilidades: “o corpo é uma unidade auto-suficiente [sic] e na arte da

performance essa unidade auto-suficiente [sic] é empregada como um instrumento de comu-

nicação.” (GLUSBERG, 2009, p. 83). O corpo é modelado e ritualizado para ser o verdadeiro centro das atenções. “Ao atuar o performer cria; e, nesse sentido, enriquece o paradigma através de sua ação sintagmática.” (GLUSBERG, 2009, p. 77).

Dentro da performance, seja encenação, declamação, interpretação, execução ou similares, há duas direções que devem ser consideradas: 1) instanciações documentais que materializam a performance, como a peça teatral gravada em vídeo; 2) obra criada com o propósito de gerar performances, por exemplo, o texto procedente de escrita cuja transmissão requer voz, gesto ou cenário, em que a materialização geralmente se dá por meio de partitura, texto teatral, poesia, roteiro, notação coreográfica etc. Portanto, não discutiremos as performances desprovidas de roteiro prévio, por assim dizer, e aquelas que não se materializam em instanciações documentais.

A problemática da materialização da perfomance em instanciações documentais começa no momento em que um dramaturgo, por exemplo, precisa realizá-la em algum meio nos termos do ato criativo apresentados anteriormente (seção 2.1), ou seja, refere-se aos limites do meio empregado para materializar a obra, de modo que o dramaturgo faz escolhas conscientes ou não, selecionando aspectos relevantes e descartar os irrelevantes.

Já em 1604, John Marston lamentava haver uma “[...] distância entre a vivaci- dade da peça no palco e sua forma alterada na página.” (apud CHARTIER, 2002, p. 69). Mesmo que o dramaturgo acompanhasse a publicação nos mínimos detalhes a incongruên- cia persistia. Também havia o entendimento de que “[...] a publicação impressa de uma comédia não pode ser mais do que uma cópia infiel, fraca e inerte da performance, que é sua forma original e verdadeira." (CHARTIER, 2002, p. 76).

Isso não se restringiu ao século XVII, pois qualquer obra ao ser realizada em ins- tanciação documental perde sua vivacidade inevitavelmente. Isso ocorre porque o meio de gravação é limitado e não consegue acolher plenamente a performance.

Portanto, a instanciação documental decorrente desse processo é uma espécie de abreviação ou roteirização da obra. Isso, então, nos leva à segunda direção que consi- deramos: obra criada com o propósito de gerar performances.

Parafraseando a analogia de Glusberg (2009, p. 84), podemos constatar que a

perfomance realizada a partir de instanciação documental de uma dada obra é como a rota

aérea percorrida por um piloto de aeronave que procura mantê-la dentro do plano de voo traçado na carta aeronáutica. Por razões de ordem metereológica ou de ajuste instrumental, o piloto pode ser obrigado a realizar alterações no plano de voo e na rota.

Similarmente, aqueles que atuam procuram manter a rota traçada pelo texto ma- terializado na obra que regula a performance. No entanto, sua atuação, seu desempenho ou sua interpretação, que varia nos indivíduos, influenciam a forma em que o caminho é per- corrido, mesmo que ele seja percorrido novamente pelo mesmo grupo de performers, nos termos citados por Thom: “[...] há uma distinção entre o que é feito na performance e o que era para ser feito, e essa distinção possibilita que o público experimente o que era para ser feito no que está feito, mesmo que os dois não correspondam exatamente.” (2009, p. 77, tradução nossa).

Vale reproduzir o entendimento de Thom (2009), que limita o sentido de uma obra para performance, em especial àqueles que imaginam que uma peça teatral sobre a vida de uma personalidade é a obra sobre essa personalidade. Sobre Hedda Gabler, obra para performance25, este autor diz:

[...] seu conteúdo não é uma história sobre Hedda Gabler, mas sim um con- junto de instruções para o estabelecimento de uma história sobre Hedda Gabler. Se dissermos que uma peça é sobre Hedda Gabler, então, devemos distinguir a peça da obra ou negar que as obras teatrais são obras para

performance no mesmo sentido em que são as obras musicais. (THOM,

2009, p. 73, tradução nossa).

Variam-se os percursos e o que é feito em performances, mas a direção e o que deve ser feito são mais estáveis. Variam similarmente as performances gravadas, como as gravações em vídeo, as gravações de som e outras.

As contínuas modificações que sofrem estas performances estimulam de diferentes maneiras os receptores, que irão captar aspectos que em outras ocasiões não puderam apreciar, como ocorre quando se vê pela segunda ou terceira vez um filme, quando descobrimos detalhes que haviam passado despercebidos. (GLUSBERG, 2009, p. 85-88).

É possível, então, que o público, especialmente o fanático, tenha alguma atitude contrária quando percebe que sua cena estimada foi cortada ou alterada numa versão posterior àquela que ele considera imaculada. A perfomance, então, pode entusiasmar, tornar indiferente ou ser hostilizada pelo público que a experiencia em nível individual ou coletivo, porquanto “[...] não é sensato pretender que a audiência se transforme naquilo que nós queiramos.” (GLUSBERG, 2009, p. 85).

Além disso, a obra destinada a performance pode ser adaptada à plateia: palavras podem ser substituídas ou alteradas; expressões obsoletas podem ser atualizadas; figuras de estilo e de conceitos podem ser atenuadas; gestos podem ser suprimidos; e

25 “Hedda Gabler” é uma peça teatral escrita por Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês. O texto foi publicado pela primeira vez em 1890 e possui adaptações para cinema e para a televisão, inclusive traduções em língua portuguesa (HEDDA..., 2013).

outras adaptações. Assim, “[...] a performance é um ato de comunicação e, assim, está sujeita às circunstâncias e à situação em que o trabalho se dá: se as condições da recepção variam também vão variar as da própria exibição.” (GLUSBERG, 2009, p. 68).

Por isso, em cada performance, a obra se apresenta com um significado, variando de modo parecido com as edições de uma obra textual. “Cada performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a cada performance ela se transmuda.” (ZUMTHOR, 2007, p. 33).

James Hamilton diz que a performance nunca é a performance de outra obra (apud THOM 2009, p. 67). Assim, afirmamos que, nas obras destinadas à performance, cada apresentação se constitui em uma instanciação que pode ser materializada. Se for o caso, temos a instanciação documental que congela, por assim dizer, uma determinada

performance. “A performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da vir-

tualidade à atualidade.” (ZUMTHOR, 2007, p. 31). Nessa perspetiva, prossegue Zumthor, a transmissão da obra produz entre ela e o público, “[...] tantos encontros diferentes quantos diferentes ouvintes e leitores.” (p. 55). Nessa perspetiva, podemos afirmar que a perfor-

mance da obra variará consideravelmente em cada apresentação, em cada público e em

cada indivíduo, implicando assim no modo em que é percebida.