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5 A OBRA E O DOCUMENTO EM ORGANIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO 201 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

2 A NOÇÃO DE OBRA

2.1 O ATO DE CRIAÇÃO DA OBRA

2.1.2 C RIAÇÃO VISUAL

Os artifícios em criação visual conforme Koestler (1964) abrangem: do tema ao meio; da imagem à emoção; a arte e o progresso; a estética do esnobe.

O artifício do tema ao meio, tratado por Koestler (1964, p. 366), refere-se ao processo de adaptação ou de transferência de um tema ou motivo para algum meio em que a obra se materializa. O autor constata que as pessoas ficam encantadas quando contemplam um floco de neve em microscópio, todavia o mesmo não ocorre quando este floco é desenhado ou fotografado. O mesmo pode acontecer quando o vermelho intenso de um pássaro perde o esplendor ao ser transposto à tela do pintor, à fotografia ou ao vídeo. Em obras musicais, a riqueza sonora de uma orquestra é perdida na gravação em disco sonoro e assim por diante. O mesmo pode acontecer na obra: “[...] quando o quadro de Van Gogh é reproduzido em preto e branco [ou simplesmente reproduzido] perdemos os caminhos de sua imaginação.” (OSTROWER, 2012, p. 37).

Esse artifício está próximo da ênfase a que apresentamos na seção anterior, mas se naquele havia certas escolhas, aqui não há opções, ou dito de outro modo, mesmo que se queira evitar, nas transposições do tema ao meio, perdas ocorrem necessariamente.

A transferência do tema ao meio é influenciada por matrices conceitual, antropo- mórfica ou mitológica, as quais constituem o quadro de referência subjacente. Por exemplo, como nós, as civilizações antigas contemplavam a paisagem que hoje contemplamos, contudo viam-na com outro olhar que se evidenciava nas obras que criavam. “Para Homero, uma tempestade no mar significava a fúria de Poseidon; para o Sr. Babitt, a majestade da natureza [...]” (KOESTLER, 1964, p. 367, tradução nossa).

No decorrer dos tempos, as matrices das civilizações são modificadas. No Egito Antigo, o tamanho das figuras era proporcional à importância social do indivíduo que se pintava; na Grécia Antiga, a perfeição física era o objetivo perseguido; e assim por diante até chegar aos nossos dias em que, por exemplo, a beleza física de uma modelo magra e esbelta é valorizada.

“Que aspectos da realidade dominam a matrix visual de uma cultura ou grupo depende em última instância da sua concepção do propósito e significado da existência.” (KOESTLER, 1964, p. 369, tradução nossa). Às vezes, as matrices podem diferir dentro de um mesmo tempo, como é o caso dos egípcios na Antiguidade, que tinham como referência o Nilo, único rio que conheciam.

O fato central do Egito é o Nilo que corre em direção ao norte. Traz a água necessária à vida. [...] Quando os egípcios chegaram a conhecer um outro rio, o Eufrates, que corria em direção ao sul, só podiam expressar sua surpresa por esse contraste, chamando o rio de ‘aquela água que corre rio abaixo indo rio acima’. (FRANKFORT, 1949 apud OSTROWER, 2012, p. 58).

Nessa direção, qualquer obra independentemente de estilo e de época, revela algum nível de consciência diante da realidade que vive o seu criador (OSTROWER, 2012, p. 125). E isso se revela quando transpomos algum tema para a tela do cinema, para a parti- tura, para o livro, para a escultura, para o disco sonoro ou para a pintura ou para qualquer meio. O criador da obra reproduz algo que vai além do objeto ou do evento que transpõe. Nesse sentido, afirmamos que as interpretações são dependentes das imagens referenciais do criador da obra. Depreendemos que a obra é e a obra representa. Assim, “[...] o pigmento na tela sempre se refere a alguma coisa além do quadro.” (KOESTLER, 1964, p. 368, tradução nossa). Um pintor, por exemplo, representa as,

[...] experiências ou as imaginações mentais do artista da natureza, das causas, da forma e da cor dos objetos e dos eventos. Ele não representa uma modelo, mas a visão do artista da modelo, não uma moça chamada Lisa, mas a forma como Leonardo viu a Lisa. (KOESTLER, 1964, p. 370, tradução nossa).

Na transferência do tema para o meio, há duas variáveis a considerar: limitações do meio e os preconceitos da visão. A limitação do meio obriga o criador a enganar, a inventar, a exagerar, a simplificar e a distorcer para adaptar o tema aos efeitos do meio. Por isso, o criador de uma obra deve pensar em termos do meio que será empregado para a transmissão do tema. “Ele deve pensar ‘em termos de’ pedra, madeira, pigmento, ou guache – mas, principalmente, pelas idiossincrasias de sua visão.” (KOESTLER, 1964, p. 372, tradução nossa).

com subterfúgios que os olhos usam, ou seja, algum meio artificioso ou sutil para sair de dificuldades. Os olhos são pragmáticos e habilidosos para dar estabilidade de forma, de tamanho, de cor, etc. do objeto que percebe, mesmo que ele seja instável ou esteja em movimento. Uma luva, por exemplo, parece negra tanto no sol quanto na sombra até que você a vê através do microscópio ou na pintura de artista impressionista (KOESTLER, 1964, p. 373).

As várias constâncias são inferências inconscientes que tiramos para dar sentido às nossas sensações, para dar estabilidade ao fluxo instável de aparências. Elas transformam o que o olho vê, de modo a atender às neces- sidades ou à razão, de que nós sabemos sobre o mundo externo. Entre a retina e os centros superiores do córtex, a inocência de visão é irremedia- velmente perdida – ela sucumbiu à sugestão de uma série de persuasores ocultos. (KOESTLER, 1964, p. 373, tradução nossa).

Ostrower (2012) também aborda o preconceito da visão à qual denomina imagem referencial: “[...] a constância de imagem com os nivelamentos e as simultâneas diferenciações – não somente cada imagem visual surge de início imbuída de significados, como também surge imbuída de valorações.” (OSTROWER, 2012, p. 62-64).

O artifício da imagem a emoção refere-se à imagem ou ao estímulo que nos provoca reações emocionais. Por exemplo, o forte apelo tátil provocado no espectador pelas imagens dos ferimentos e da violência sofridos por Cristo na obra cinematográfica dirigida por Mel Gibson: “The Passion of the Christ15”.

As reações emocionais variam entre extremos: gosto e desgosto; aceitação e reprovação; atração e repulsão, os quais são provocados no público pela força da imagem mostrada. Difere da imagem contada que discutimos na seção anterior somente no modo em que a imagem é mostrada.

O artifício arte e progresso refere-se ao ato de criação que se vale do progresso e dos avanços da arte e da ciência, no sentido de que o criador não precisa refazer os passos daqueles que o precedeu (KOESTLER, 1964, p. 366). Dito de outra ma- neira, no ato de criação, o gênio apoia-se nos conhecimentos estabelecidos anteriormente, como reconheceu Isaac Newton: “Se enxerguei mais longe que outros homens, é porque me ergui sobre ombros de gigantes”.

Não se trata de seguir cegamente, mas de aceitar ou de rejeitar descobertas an- teriores. Tal rejeição deve ser seletiva no sentido de que deve ser feita com cuidado sem ig- norar as criações anteriores. Na criação da “Mona Lisa”, de forma consciente, Leonardo Da Vinci rejeitou certos aspectos do cânone vigente à época. “As distorções deliberadas e as

15 Título em português, “A Paixão de Cristo” (2004), filme estadunidense que retrata as doze horas que ante- cederam a morte de Cristo

assimetrias no rosto de Mona Lisa e, igualmente, as ambiguidades deliberadas do contorno nos cantos da boca e dos olhos são desvios do cânone [...]” (KOESTLER, 1964, p. 394, tra- dução nossa).

Nessa constante aceitação ou rejeição seletiva, as descobertas que permitem o avanço da arte e da ciência são realizadas por caminhos tortuosos, entremeados por perío- dos de atividade intensa ou de aparente estagnação. “Veremos que todos os grandes inova- dores ficaram no canto ventoso da história mundial, em que as correntes de ar de diferentes climas e culturas reúnem-se, misturam-se e integram-se.” (VASARI apud KOESTLER, 1964, p. 395, tradução nossa).

O progresso no ato de criação revela-se ainda no intercâmbio nem sempre amistoso entre diferentes culturas: as conquistas empreendidas por Alexandre Magno, por exemplo, disseminaram a cultura helênica por vastos territórios e, reciprocamente, ela foi influenciada por estes. A criação da obra não prescinde dessa miscigenação salutar, ao que Koestler (1964, p. 396, tradução nossa) denomina “[...] fertilização cruzada entre diferentes períodos, culturas e as províncias de conhecimento [...]”.

O último artifício discutido por Koestler refere-se à estética do esnobe, que não é propriamente um ato criativo, mas algo que poderíamos denominar de ato anticriativo a ser evitado.

[...] Esnobismo é, eu acredito, de forma alguma um fenômeno trivial, mas uma confusão de valores que, de diversas formas, permeia todos os estra- tos das sociedades civilizadas do presente e do passado [...], e é em muitas circunstâncias a negação do princípio de criatividade. (KOESTLER, 1964, p.408, tradução nossa).

Nesse sentido, esse autor expõe a estética do esnobe, caraterizada por duas qualidades: confusão e esterilidade, a partir da história que se segue. Certa vez, uma amiga de Koestler (1964), de codinome Catherine, fora presenteada com um desenho de Picasso. Ela o recebera como reprodução, mas posteriormente, ela reputou-o em original. Koestler (1964) questionou-a sobre tal mudança e ela, surpresa com o questionamento, respondeu que mudou a percepção quando soube que não era uma reprodução, mas um original feito pelo próprio Picasso.

Koestler (1964) continuou insistindo para que ela dissesse as razões pelas quais mudara de opinião. Ela replicou contando que levou em consideração a qualidade estética do desenho nos aspectos relativos à: composição, cor, harmonia, energia etc. “Ela acredi- tava sinceramente ser guiada por juízos de valor estético meramente baseados nessas qualidades, mas se fosse o caso, já que as qualidades do desenho não haviam mudado, como poderia a sua atitude ter mudado?” (KOESTLER, 1964, p. 403, tradução nossa).

A atitude esnobe de Catherine, que não lhe é exclusiva, não foi determinada pela qualidade estética do desenho, mas foi instigada por alguma informação recebida, correta ou não, externa às questões estéticas do desenho. Tendemos a acreditar que nossa atitude em relação a alguma obra é determinada somente por considerações estéticas, mas ela é determinada por outro fator de ordem diferente, ainda que alguém possa ficar ofendido quando se diz que a origem de um desenho é independente de seu valor estético. Isso acontece porque em nossas mentes é quase impossível decifrar período, autoria e autentici- dade do valor estético de determinada obra (KOESTLER, 1964, p. 404).

Catherine não teria sido esnobe se dissesse que as caraterísticas da reprodução eram tão belas quanto as do desenho original. Mudar a atitude não tem nada a ver com a estética do desenho ou com a própria Catherine. Tem a ver com aquela informação inci- dental que foi dada sobre o desenho, a qual serviu como raio de luz, “[...] não emitido pelo pigmento, mas pelo córtex cerebral da arte esnobe.” (KOESTLER, 1964, p. 404, tradução nossa).

Nesse contexto, Koestler (1964, p. 405) reforça que a apreciação de uma obra é resultado de processos independentes e simultâneos que interagem entre si. Um dos pro- cessos refere-se à experiência estética propriamente dita, “[...] sistema de valores e de certos critérios de excelência em que nós acreditamos apoiar o nosso julgamento.” (KOESTLER, 1964, p. 405, tradução nossa).

Há outros processos que interferem em nosso julgamento, todavia Koestler (1964, p. 405) menciona somente dois. O primeiro se refere ao contexto ou a origem do objeto. “Nossos antepassados acreditavam que um objeto que estava em posse de uma pessoa se tornou imbuído de suas emanações e, por sua vez, emanava algo de sua substância.” (KOESTLER, 1964, p. 405, tradução nossa).

Certa vez, conta Koestler (1964, p. 405), um colunista de jornal escreveu que o prazer de alguns britânicos era poder dar uma mordida num pêssego produzido em alguma propriedade da Família Real. A partir desse fato, Koestler sustenta que “você pode até sentir que é parte da família, se insistir por tempo suficiente nesse método um tanto indireto de transubstanciação.” (1964, p. 405, tradução nossa). O fato pode ser ilustrado exaustiva- mente: relíquias de santo, a pena que algum escritor usou para escrever alguma carta, o telescópio de Galileu Galilei, os óculos daquele cientista famoso, a roupa que o pop star usava em vida e assim por diante.

O segundo processo mencionado por Koestler (1964, p. 406) refere-se à falácia dos antiquários que buscam valorizar a obra nos aspectos relativos ao tempo e ao espaço em que foi criada. Em parte, a obra afamada é apreciada em sintonia com valores e técnicas

da época de sua criação. É possível entrar no espírito e no clima do tempo e do espaço do ato criativo, mas tal ação, adverte Koestler (1964, p. 407, tradução nossa), pode degenerar “[...] em esnobismo antiquário no ponto em que o período emoldurado torna-se mais impor- tante do que a imagem, e perverte a nossa escala de valores.”

Os sintomas do esnobismo podem ser reconhecidos: na reverência indiscrimina- da por qualquer coisa rotulada em termos como ‘clássico’, ‘primitivo’, ‘barroco’ e similares; na mudança coletiva de valorização de períodos ou de movimentos, como de antivitoriano para pró-vitoriano; e nas futilidades do estilo designados por termos como está “in” ou está “out”.

O ato criativo é realizado por meio de colisão de matrices em padrões em que o criador descobre, por integração, e vivencia a experiência estética, por justaposição. O esnobe não segue tais padrões, confunde as matrices aplicando regras de um jogo em outro ou usa “[...] um relógio para medir o peso e um termômetro para medir a distância.” (KOESTLER, 1964, p. 408, tradução nossa). Além disso, suas criações são estéreis como a lua que depende do sol para brilhar e, o que ele admira em público, enfada-o na vida privada. O esnobe está perdido num labirinto com uma bússola que aponta para várias direções.

Assim, o esnobe não se submete às dores da criatividade porque prefere o conforto da esterilidade, pois “[...] suas emoções não derivam do objeto, mas a partir de fon- tes alheias afins; suas satisfações são pseudossatisfações, os seus triunfos autoilusões. Ele nunca passou pelo ventre da baleia [...].” (KOESTLER, 1964, p. 408, tradução nossa).

Concluímos esta parte citando algumas considerações importantes relacionadas ao ato de criação da obra. O criador explora os artifícios da criação, combinando-os em pro- cessos, em geral inconscientes. “Aqui, a diversidade de variações de um escritor para outro – de uma obra para outra do mesmo escritor – é tão grande quanto à elaboração e à formu- lação de uma ‘descoberta nuclear’ na ciência.” (KOESTLER, 1964, p. 318, tradução nossa).

A consciência se torna evidente no corte, na trituração e no polimento da “pedra bruta” que o criador desenterrou. Desse modo, “[...] o monumento está na pedra, a escultura está na madeira. A pintura está na cor: A obra de linguagem está na fala. A obra musical está na sonoridade.” (HEIDEGGER, 2010, p. 43).

Vale citar ainda outro aspecto encontrado na abordagem de Koestler (1964, p. 408). Ele emprega o verbo inglês spark off para designar o ato criativo que parece bem relevante à noção de obra a que nos propomos. Esse verbo é usado para designar o que se traz à existência ou a ação; ativar ou iniciar para desencadear uma discussão; colocar em

movimento ou passar para agir, provocar uma reação, acionar os circuitos. A obra só é obra quando se realiza e se materializa em instanciações documentais, as quais discutiremos nas duas seções seguintes.