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2. GRAMÁTICA DOS GÊNEROS E (IM)POSSIBILIDADES CONCEITUAIS

2.1 A perspectiva queer e a ideia de performatividade de gênero

A abordagem da transgeneridade passa, inicialmente, pelo conceito de gênero, como ele é construído e como opera a sua gramática. A abordagem desta dissertação é orientada pelas proposições político-teóricas da Teoria Queer, que surge no final dos anos 1980, eminentemente nos Estados Unidos, e tem Judith Butler como uma das precursoras e maiores expoentes, apesar de ser objeto de discussão de pesquisadoras e ativistas diversificadas em vários países.

“Gênero” surge como uma nova categoria de análise e investigação, além de se apresentar como uma ferramenta política, durante a “segunda onda” do movimento feminista, historicamente situada entre 1967 e 1975, apesar de seu conceito já ser anteriormente utilizado por John Money, psicólogo que na década de 1950 fazia parte das equipes médicas de tratamento das pessoas que eram designadas como ‘hermafroditas’ e fazia distinção entre o atributo psicológico (o gênero) e o atributo biológico (o sexo genital). Ele já classificava seus pacientes como pertencentes do gênero feminino, gênero masculino e gênero neutro, de forma que esta “classificação dos pacientes segundo um gênero, de natureza psicológica, serviu de base para elaboração de protocolos e categorizações diagnósticas as quais passaram a orientar a prática médica no que se refere aos indivíduos hermafroditas e transexuais” (CYRINO, 2013, p. 2).

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A partir dessa ruptura com o biológico, o conceito de gênero foi introduzido pelas feministas, especialmente as norte-americanas, no contexto da investigação a respeito das diferenças entre os sexos e inspiradas, dentre outras referências, pela obra da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1949).

Guacira Lopes Louro (2014, p. 19) recupera a história do movimento feminista e localiza no que ficou conhecido como a “primeira onda” do feminismo, iniciada no Ocidente do século XIX, as manifestações contra a discriminação feminina e a invisibilidade da mulher como sujeito, destinada que era ao universo privado/doméstico, sobretudo para o reconhecimento do direito ao voto (ou sufragismo), à vida pública (como direito ao trabalho sem autorização do cônjuge) e à emancipação feminina. Já na “segunda onda” do feminismo, iniciada no final dos anos 1960, além das preocupações sociais e políticas, o movimento se volta às construções teóricas e, entre elas, iniciam os debates sobre gênero. (LOURO, 2014. p. 20). Nessa fase, o movimento também se voltava contra a ditadura militar e todo o arsenal de violências por ela perpetrada. A “terceira onda” do movimento feminista tem início na década de 1990, quando começam a ser discutidos os próprios paradigmas do movimento.

Em um “contexto de efervescência social e política, de contestação e de transformação”, ressurge o movimento feminista contemporâneo (LOURO, 2014, p. 20), que questiona a universalidade do sujeito feminino, visto que o universalismo torna-se excludente já que ignora as interseccionalidades, desconsiderando as especificidades das diferentes mulheres, como da mulher negra, por exemplo. As principais reivindicações do movimento até este momento eram pensadas para mulheres brancas de classe média. O feminismo de “terceira onda”, momento de emergência da obra de Judith Butler, sem deixar de reconhecer a importância dos primeiros estudos realizados e das primeiras lutas, problematiza as próprias teorias feministas, questiona as categorias binárias de gênero e coloca em xeque a dualidade sexo/gênero. É importante lembrar que o movimento feminista se constitui por diferentes perspectivas analíticas e, apesar dos interesses e motivações comuns, não se configura em um bloco monolítico de ações e posições ideológicas.

Maria da Penha F. S. de Carvalho (2010, p. 234) explica que o uso e o significado de gênero originam-se da intenção de combater o reducionismo biológico e demonstrar a construção social e histórica dos sexos, entendendo que os papéis sexuais dependem menos das diferenças biológicas entre os sexos do que de imposições socioculturais, destacando, dessa maneira, o caráter social e dinâmico das diferenças e discriminações baseadas no sexo. Ela diz que o “conceito de gênero possibilitou um novo olhar sobre os atributos específicos e as relações dos sexos, que podem ser concebidos não mais como fixos e determinados pela

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natureza, mas como resultantes de construções socioculturais e, como tais, são passíveis de desconstrução” (CARVALHO, 2010, p. 234).

A primeira tentativa de conceituação de gênero se deu em comparação à noção de sexo, uma vez que não são expressões sinônimas. Louro (2014, p. 25) acentua que é por meio das feministas anglo-saxãs que gênero (gender) passa a ser diferenciado de sexo (sex), com o objetivo de rejeitar um implícito determinismo biológico contidos nos termos ‘sexo’ e ‘diferença sexual’ e evidenciar o caráter social das diferenças baseadas no sexo. Nessa perspectiva, enquanto ‘gênero’ pode ser entendido como construção simbólica e cultural, variante no tempo e espaço, estabelecendo uma diferenciação social, o ‘sexo’ pode ser entendido como natural, se referindo a aspectos fisiológicos e anatômicos. Não se tratava de negar a biologia, mas “se referir ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como são trazidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico” (LOURO, 2014, p. 26). Ou ainda, como descreve Jeffrey Weeks (2000, p.40), “embora as distinções anatômicas sejam geralmente dadas no nascimento, os significados a elas associados são altamente históricos e sociais”. Entretanto, toda essa discussão em que se coloca o gênero em questão é muito recente, considerando-se o tempo em perspectiva, o que permite dizer que os debates acontecem no presente, no aqui-agora, com grande relevância para os estudos contemporâneos de gênero. E, nesse sentido, a própria teoria vai sendo problematizada, se desconstruindo e se refazendo.

Assim, na fase que ficou reconhecida como “terceira onda” do movimento feminista, Butler propõe o questionamento da oposição entre sexo e gênero, colocando em dúvida a clássica ideia de que o sexo está para a natureza assim como o gênero está para a cultura, entendendo que inclusive o sexo é uma diferença construída culturalmente. Butler rechaça a ideia da existência de uma matéria sexuada (ou corpo/genitália) e dada pela natureza sobre a qual repousaria um gênero, ou em outras palavras, um “dado corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente imposto” (BUTLER, 2000, p.152-153). Isto porque, para a autora, “a diferença sexual não é meramente um fato anatômico, pois a construção e a interpretação da diferença anatômica é (sic), ela própria, um processo histórico e social” (CARVALHO, 2010, p. 236).

Butler (2000, p. 151) entende que desde o início a categoria de ‘sexo’ é normativa, sendo aquilo que Foucault denominou de “ideal regulatório”, cuja materialização é imposta por meio de certas práticas altamente reguladas. Ou seja, para ela, o ‘sexo’ não é uma simples condição estática de um corpo, mas um processo formado por práticas discursivas pelo qual as normas regulatórias produzem essa materialização por meio da sua própria reiteração, de forma que os

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fatores biológicos são também inscritos de significação cultural. Entendo que, para a finalidade desta pesquisa, a breve discussão a respeito da díade sexo-gênero aqui explicitada seja suficiente, visto que o cerne da questão reside não na diferença conceitual entre sexo e gênero, mas no reconhecimento que o sujeito trans faz acerca de sua identidade de gênero.

Fica evidenciada aqui a contraposição entre as correntes de pensamento do “construcionismo social” e do “essencialismo”. Weeks (2000, p. 40) expõe didaticamente que, enquanto o essencialismo “é o ponto de vista que tenta explicar as propriedades de um todo complexo por referência a uma suposta verdade ou essência interior”, que reduz a complexidade do mundo e concebe os sujeitos como produtos de seus impulsos internos ou de sua natureza, o construcionismo social, corrente da qual se aproxima e que flerta com essa pesquisa, é uma abordagem historicamente orientada que argumenta:

[...] que só podemos compreender as atitudes em relação ao corpo e à sexualidade em seu contexto histórico específico, explorando as condições historicamente variáveis que dão origem à importância atribuída à sexualidade num momento particular, compreendendo as várias relações de poder que modelam o que vem a ser visto como um comportamento normal ou anormal, aceitável ou inaceitável (WEEKS, 2000, p. 40).

A partir do papel crítico de gênero, torna-se possível questionar o argumento essencialista do patriarcado que sustenta que a relação hierárquica, de dominação e opressão das mulheres pelos homens obedece a uma ordem natural e atemporal, originada na ideia de superioridade do masculino sobre o feminino. Esse argumento baseia-se nas diferenças sexuais biologicamente observadas para explicar as diferenças socialmente estabelecidas (de papéis, comportamentos, aptidões etc.). A crítica, entretanto, vai além do gênero, assumindo papel político subversivo e dizendo da própria estabilidade do gênero enquanto categoria de análise, precisando entender antes de tudo o que é uma mulher e o que é um homem.

A premissa essencialista e naturalista considera as diferenças biológicas entre os sexos como ontológicas, conferindo caráter de imutabilidade à condição de inferioridade da mulher e justificando as relações de desigualdade existentes (CARVALHO, 2010, p. 237). Essa perspectiva compartilha a crença na existência de uma feminilidade universal e eterna, dizendo sobre “a mulher”. São justamente essas ideias que o conceito de gênero se propõe a desestabilizar, desvelando as relações de poder subjacentes e apresentando-se como um caminho e uma importante ferramenta para transformações sociais. Além disso, o conceito de gênero exige que se pense de modo plural, “acentuando que os projetos e as representações

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sobre mulheres e homens são diversos”, e considerando os diversos grupos que compõem dada sociedade (LOURO, 2014, p. 27).

Com efeito, compartilho do pensamento de que não há como compreender os sujeitos em termos estáveis e permanentes, como fez outrora e inicialmente, por exemplo, a teoria feminista, ao presumir que exista uma identidade definida e única, compreendida pela categoria “mulheres” e representada por este significante estável (BUTLER, 2016, p. 17). Ao contrário, seria falacioso supor que exista uma identidade universal de mulher. De que mulher estamos falando, afinal? Certamente “mulher” não é tudo que esta pessoa é, uma vez que o termo não consegue ser exaustivo e o gênero não pode ser separado de intersecções políticas e culturais, como raça, classe social, etnia etc.29 (BUTLER, 2016, p. 20).

Para o enfrentamento das relações desiguais entre os sujeitos em função do seu gênero e a hierarquia entre eles existente, o debate que ultrapasse a biologia se faz importante:

Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação (LOURO, 2014, p. 26).

Richard Miskolci (2014, p. 8) revela que a teoria queer surge como uma corrente de reflexão que “traduz o impulso insurgente que dava origem a um novo pensamento radical sobre a sexualidade”, tendo sido proposta por Teresa de Lauretis, feminista italiana radicada nos Estados Unidos. Sobre a origem e o contexto do surgimento do termo queer, Paul B. Preciado disserta sobre ressignificação de seu conceito e mudança de sua utilização, adquirindo uma conotação política:

Houve um tempo em que a palavra queer era apenas um insulto. Na língua inglesa, desde seu aparecimento no século XVIII, queer servia para nomear aquele ou aquilo que, por sua condição de inútil, malfeito, falso ou excêntrico, questionava o bom funcionamento do jogo social. Eram queer o trapaceiro, o ladrão, o bêbado, a ovelha negra e a maçã podre, mas também todo aquele que, por causa de sua peculiaridade ou sua estranheza, não pudesse ser imediatamente reconhecido como homem ou mulher. A palavra queer não parece tanto definir uma qualidade do objeto a que se refere, quanto indicar a incapacidade do sujeito que fala de encontrar uma categoria no âmbito da representação que se ajuste à complexidade do que ela pretende definir. Portanto, desde o início, queer é mais o traço de uma falha na representação linguística do que um simples adjetivo. O que de certa forma equivale a dizer: o que chamo de

29 Sobre o “etc.” (etecetera) comumente utilizado ao final de uma lista de adjetivos (tais como cor, sexualidade,

identidade de gênero, etnia, classe social etc.) atribuídos ao sujeito, na tentativa de postular a identidade de uma vez por todas, Butler diz que ilustra o fracasso dessas enumerações, tratando-se de “um sinal de esgotamento, bem como do próprio processo ilimitável de significação” (BUTLER, 2016, p. 247).

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queer é um problema para o meu sistema de representação, é um distúrbio, uma

estranha vibração no meu campo de visibilidade que deve ser marcada com a injúria. [...]

Era necessário desconfiar do queer, pois se desconfia de um corpo que, por sua mera presença, confunde as fronteiras entre as categorias previamente divididas pela racionalidade e o decoro. Na sociedade vitoriana, que defendia o valor da heterossexualidade como eixo da família burguesa e base da reprodução da nação e da espécie, queer servia para nomear também aqueles corpos que escapavam à instituição heterossexual e suas normas. A ameaça vinha, nesse caso, daqueles corpos que por suas formas de relação e produção de prazer punham em questão as diferenças entre o masculino e o feminino, mas também entre o orgânico e o inorgânico, o animal e o humano. Eram queer os invertidos, a bicha e a lésbica, a travesti, o fetichista, o sadomasoquista e o zoófilo. O insulto queer não tinha um conteúdo específico: pretendia reunir todos os sinais do abjeto. Mas a palavra servia na realidade para traçar um limite no horizonte democrático: aquele que chamava o outro de queer se situava a si mesmo sentado confortavelmente em um sofá imaginário da esfera pública em uma troca comunicativa tranquila com seus iguais heterossexuais enquanto expulsava o queer para além dos confins do humano. Deslocado pela injúria para fora do espaço social, o queer estava condenado ao sigilo e à vergonha (PRECIADO, 2009).

E como a linguagem é dinâmica, de forma que um significado não se prende definitivamente a um significante, houve uma mudança radical no sentido atribuído ao termo queer. Assim, o nome dado à teoria deriva da ressignificação do termo queer, que em meados da década de 1980 era utilizado de forma pejorativa para insultar pessoas homossexuais, especialmente no contexto do surgimento da AIDS, considerada como prerrogativa dessas pessoas e práticas30. A injúria se tornou lugar de ação política, resistência à normalização, lugar

de combate e crítica social. Segundo Preciado (2009), mudara o sujeito da enunciação: antes usado por heterossexuais para injuriar gays e lésbicas, depois os próprios sujeitos passaram a se autodenominar queer, anunciando uma ruptura intencional com a norma31.

A partir de então, apesar da difícil tradução para o português, queer pode ser entendido por estranho, excêntrico e caracterizado por sua instabilidade e fluidez. Aqueles corpos que Butler (2000) denomina abjetos. Aquilo que não se deixa apreender ou se esgotar em um conceito, não se tratando da adjetivação de um substantivo, mas antes de um lugar da falha da própria conceituação. Localiza-se na ordem do não categorizável, não enquadrável. Trata-se da linguagem usada para demonstrar a sua própria insuficiência em dar conta de toda a realidade. Sob o manto queer, agrupa-se um amplo e diverso conjunto de reflexões sobre a heterossexualidade compulsória como um regime político-social que regula nossas vidas e que

30 Richard Miskolci (2014) relata os aspectos político-sociológicos da AIDS no contexto mundial e como a sua

epidemia foi utilizada de subterfúgio para uma renovação e potencialização da perseguição ao desejo e práticas homossexuais e um reordenamento da sexualidade sob o controle heterorreprodutivo, reacendendo um conservadorismo e acirrando a luta pela manutenção da ordem e hegemonia heterossexual.

31 Por sua postura disruptiva com a norma dominante e de enfrentamento aos dogmas naturalizados, a teoria queer

é por vezes chamada de teoria cu, teoria viada, puta teoria, teoria deslocada, entre outros nomes que referenciam seu caráter subversivo.

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garante privilégios políticos-sociais-econômicos-culturais para quem se adequar às suas normas prescricionais e mantém em condição de desigualdade e ausência de reconhecimento aqueles sujeitos que rompem tais normas sociais de conduta, ou seja, promove a exclusão daqueles sujeitos com sexualidades e gêneros dissidentes (MISKOLCI, 2014, p. 9).

Segundo Sara Salih (2015, p. 19), a expressão queer constitui uma “apropriação radical de um termo que tinha sido usado anteriormente para ofender e insultar, e seu radicalismo reside, pelo menos em parte, na sua resistência à definição – por assim dizer – fácil”. A teoria pretende utilizar o termo como uma prática de vida que questiona a normatividade socialmente imposta, não dizendo de uma identidade ou categoria identitária específica e fixa, mas de um instrumento revolucionário, com potencial político e herdeiro da tradição feminista e anticolonial:

O movimento queer é pós-homossexual e pós-gay. Já não se define com respeito à noção médica de homossexualidade, nem tampouco se conforma à redução da identidade gay a um estilo de vida acessível dentro da sociedade de consumo neoliberal. Trata-se, portanto, de um movimento pós-identitário: queer não é uma identidade a mais no folclore multicultural, mas uma posição de crítica atenta aos processos de exclusão e marginalização gerados por toda a ficção identitária. O movimento queer não é um movimento de homossexuais nem de gays, mas de dissidentes sexuais e de gênero que resistem às normas impostas pela sociedade heterossexual dominante, atento também aos processos de normalização e exclusão internos à cultura gay: marginalização das caminhoneiras, dos corpos transexuais e transgêneros, dos imigrantes, dos trabalhadores e trabalhadoras sexuais… (PRECIADO, 2009).

As obras de Simone de Beauvoir, Gayle Rubin, Monique Wittig, Adrienne Rich, Luce Irigaray, Gilles Deleuze e Felix Guattari e também de Michel Foucault, dentre outros(as) autores(as), foram fundamentais para a construção desse novo e diversificado arcabouço teórico-político que se formava. No Brasil, essa nova perspectiva intelectual e política começa a ganhar mais força e visibilidade na década de 2000, no contexto acadêmico, com autoras como Guacira Lopes Louro, que segundo Miskolci (2014, p. 13), publicou o primeiro artigo brasileiro nessa linha de pensamento, chamado “Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação”, em 2001. A partir daí, pesquisadoras/es brasileiras/os de diferentes áreas do conhecimento, como Educação e Sociologia, iniciaram uma ruptura com a produção científica sobre sexualidade até então dominante no país, inaugurando um novo léxico nas discussões acadêmicas, com termos e expressões como heteronormatividade, matriz heterossexual, performatividade de gênero, seres abjetos, dentre outras.

Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012, p. 570) evidenciam um dos objetivos dos estudos queer, que demonstra “interesse investigativo nos discursos de saber que constituíram

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determinadas existências como menos legítimas que outras, patologizando comportamentos, criminalizando práticas e desejos a partir da naturalização/legitimação da heterossexualidade”. A teoria queer vai se dispor a pensar sobre o impensável, ou seja, sobre aquilo que a sociedade tem como mais natural e inquestionável, que está dentro da cultura, mas que nem mesmo acredita que possa ser pensado de maneira diversa, por ser excluído da cultura dominante, como a existência de sexualidades e gêneros que rompem com a linearidade da matriz heterossexual (conceito que será mais aprofundado na próxima seção) e também o enfrentamento da naturalização de situações de opressão.

Quando Butler apresenta o seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2016), ela deixa claro que o termo "problema" não contém necessariamente uma carga negativa. O que ela deseja é problematizar, ou seja, questionar, interrogar as categorias de gênero – homem e mulher – que dão sustentação à hierarquia dos gêneros e à heterossexualidade compulsória, pretendendo realizar, em última análise, uma genealogia crítica das categorias de gênero (BUTLER, 2016, p. 10). Seu esforço nessa obra reside em

[...] refletir a possibilidade de subverter e deslocar as noções naturalizadas e reificadas do gênero que dão suporte à hegemonia masculina e ao poder heterossexista, para criar problemas de gênero não por meio de estratégias que representem um além utópico, mas da mobilização, da confusão subversiva e da proliferação precisamente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o gênero em seu lugar, a posar como ilusões fundadoras da identidade (BUTLER, 2016, p. 70).

De maneira instigante e provocativa, a autora nos impele à reflexão crítica de conceitos e ideias naturalizadas, possibilitando deslocamentos e subversões. A leitura de seus escritos provoca não apenas um deslocamento epistemológico e paradigmático, mas também um deslocamento pessoal, nas crenças de leitoras/es e na forma de pensar o mundo, as relações de poder, as normas sociais, a sexualidade e as categorias de gênero, que de tão naturalizadas e introjetadas na consciência coletiva, são percebidas como fixas, inalteráveis e inquestionáveis. Butler realiza uma análise crítica e subversiva do gênero, pretendendo investigar quais relações de poder estão imbricadas na produção da estrutura binária. Acredito que a religião