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2. GRAMÁTICA DOS GÊNEROS E (IM)POSSIBILIDADES CONCEITUAIS

2.2 Ditadura da heteronormatividade e desarticulação entre sexo-gênero-desejo

Dentre as proposições teórico-políticas da teoria queer estão a desconstrução do binarismo de gênero, o gênero como performatividade e o imperativo heterossexual como uma matriz excludente pela qual os sujeitos são formados e onde, simultaneamente, é produzido um domínio de seres abjetos que ainda não são tidos como “sujeitos” (BUTLER, 2000, p. 153). Larissa Pelúcio (2014b, p. 13) compreende a teoria queer como uma teoria de combate, nascida como discurso acadêmico que trazia consigo o frescor “suficiente para não estar marcado pelo peso dos saberes psi, médicos e jurídicos”. Por aqui, em terras brasileiras, a teoria queer não se origina apenas como tradução das produções teóricas “importadas”, mas também a partir de reflexões e produções originais de teóricas/os nacionais. Esse grande campo de articulação também se apresenta como

[...] um espaço de luta política, uma arena de embate de ideias que procura enfrentar a naturalização de uma série de opressões. Seja evidenciando o caráter compulsório da heterossexualidade; desconstruindo binarismos que enrijecem possibilidades de transformações; politizando o desejo; ou apontando para as crueldades dos discursos hegemônicos, muitas vezes revestidas de um cientificismo que quita a humanidade de determinados seres humanos, tratando-os como abjetos (PELÚCIO, 2014b, p. 7).

Richard Miskolci (2014, p. 14) descreve três importantes conceitos trazidos pela teoria queer à arena de discussões a fim de interpelar a hegemonia heterossexual e criticar aspectos normalizadores da sociedade, além de enxergarem a sexualidade como um dos eixos de organização política e hierarquização coletiva – o heterossexismo, a heteronormatividade e a matriz heterossexual:

De forma muito geral, heterossexismo explicita quando a heterossexualidade é tomada como um dado, pressuposta ou esperada em teorias, normas jurídicas ou mesmo em relações sociais cotidianas. Heteronormatividade se refere às normas sociais que impõem não necessariamente a heterossexualidade em si, mas seu modelo a outras relações, inclusive entre pessoas do mesmo sexo. A matriz heterossexual designa a expectativa social de que os sujeitos terão uma coerência linear entre sexo designado ao nascer, gênero, desejo e práticas sexuais. Assim, por exemplo, alguém com vagina teria que – obrigatoriamente – ser feminina, ter desejo por pessoas com pênis/masculino e ser passiva sexualmente (MISKOLCI, 2014, p. 14, grifos nossos).

O termo heteronormatividade foi usado pela primeira vez por Michael Warner (1993) para se referir a uma ordem social que, de maneira invisível e penetrante, regula a vida social e impõe um modelo de organização. A maneira insidiosa como tais normas nos são apresentadas ao longo da vida nos faz crer em sua total naturalidade, de modo que grande parte das pessoas

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nem mesmo se dão conta das teias articuladas de poder nas quais estamos todas e todos imbricadas/os.

A heteronormatividade pode ser entendida, consoante o título desta seção, como uma “ditadura” na medida em que as suas imposições sociais conferem a ideia de inescapabilidade do padrão estabelecido, com previsão de graves sanções a quem ousar subverter tais normatividades. Mas é importante esclarecer que da mesma maneira que não há um determinismo biológico no que se refere à identidade de gênero, também não há um determinismo puramente cultural, como se houvesse um esvaziamento do sujeito que ficasse totalmente à mercê das vicissitudes da vida. Com isso, pretendo dizer que por mais que pareça impossível escapar das complexas redes heteronormativas, os sujeitos trans escancaram, com a sua existência, que não é compulsória e inarredável a relação entre sexo biológico e gênero vivido (e, ainda, desejo ou orientação sexual, considerando que pessoas trans não são exclusivamente heterossexuais). Espera-se e exige-se que assim seja, mas não alcança a todos e todas que, não obstante, sofrem as devidas sanções sociais.

Ocorre que, por furarem uma das regras mais fundantes e sagradas que estrutura toda a sociedade, qual seja, a existência de apenas dois tipos de seres humanos, homens e mulheres que se relacionam entre si, os sujeitos trans arcam com alto custo ao afirmarem a sua identidade de gênero. Acabam por serem constituídos quando tais normas sociais são transgredidas. Entretanto, o sujeito pode resistir à norma, mas não vive sem ela, de maneira que mesmo quando escapa de alguma normatividade ou quebra algum paradigma, há outra/outro operando.

Em um texto anterior, propus em coautoria com Bruno Camilloto uma crítica à heteronormatividade à luz do pluralismo e do princípio da tolerância liberal apresentados por John Rawls, entendendo que o paradigma heteronormativo afeta as possibilidades de tratamento igualitário dos indivíduos “na medida em que propõe uma normatividade jurídica que privilegia uma única maneira de ser e estar, com supremacia heterossexual e total coerência e linearidade entre sexo biológico, gênero e sexualidade”. (CAMILLOTO; CAMILLOTO, 2017, p. 25). Dissemos, ainda, que:

Como mecanismo regulador, viabilizado por discursos de poder (discursos políticos, científicos, religiosos e dos mass media, por exemplo), impõe o modelo heterossexual como a única forma natural, legítima, saudável e aceitável de expressão identitária e sexual e de organização da vida, conferindo uma ideia de inescapabilidade deste padrão. Nas teias invisíveis da heteronormatividade dá-se a produção do preconceito e das diferenças, da tirania e da violência física e psíquica contra os corpos que se opõem ao modelo hegemônico. Além disso, produz a ideia do que é ser mulher ou homem, qual o papel social a ser desempenhado por cada um e portanto, estabelece como regra o binarismo de gênero. A maneira hierarquizante de regulação da sociedade imposta pela heteronormatividade se alia a outras tantas formas opressivas

48 perpetradas, por exemplo, pelas questões raciais e de classe, alcançando patamares perversos de violência e opressão (CAMILLOTO; CAMILLOTO, 2017, p. 31).

O controle exercido pelo discurso heteronormativo produz a ideia de exclusividade e compulsoriedade da ligação linear entre sexo biológico, gênero, desejo e prática sexual. Isso quer dizer que um bebê designado menino ao nascer deve se reconhecer como homem, portanto, com gênero masculino e sentir-se atraído afetiva e sexualmente por mulheres cisgêneras, ou seja, ser heterossexual. Para as meninas, a regra é a mesma, em sentido oposto. Desse modo, furam as teias da heteronormatividade aqueles sujeitos que ultrapassam as normas de gênero que preveem inexoravelmente as seguintes e únicas configurações possíveis: pênis-macho- homem-masculino e vulva-fêmea-mulher-feminino.

A respeito do que entende por matriz heterossexual, Judith Butler esclarece o conceito e informa que baseou sua ideia nas obras de Adrienne Rich e, sobretudo, de Monique Wittig33:

Uso o termo matriz heterossexual ao longo de todo o texto para designar a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados. Busquei minha referência na noção de Monique Wittig de “contrato heterossexual” e, em menor medida, naquela de Adrienne Rich de “heterossexualidade compulsória” para caracterizar o modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade (BUTLER, 2016, p. 258).

Butler (2016, p. 44) lembra que a matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível “exige que certos tipos de ‘identidade’ não possam ‘existir’ – isto é, aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’”. Os sujeitos trans estariam, portanto, fora do sistema (ou melhor, CIStema) de inteligibilidade, de maneira que sua identidade não pode existir.

Viviane Vergueiro (2015, p. 15) explica o significado do termo “cistema”, utilizado nesta dissertação como mais um exemplo de negociação linguística, às vezes com a criação de neologismos, para dar conta do que exatamente se pretende representar e descrever, neste caso, o “cistema” heteronormativo, que normatiza e normaliza corpos, identidades e gêneros: “A

33 Monique Wittig, inclusive, de maneira mais radical e incisiva, denuncia o sistema de pensamento heterossexual,

afirmando que “las lesbianas no son mujeres” (WITTIG, 2010, p. 57). Ao dizer que as lésbicas não são mulheres, a autora interroga a própria categoria “mulher”, de modo que esta somente faz sentido para os sistemas heterossexuais de pensamento. “Homem” e “mulher” seriam conceitos políticos de oposição e, para a autora, o estabelecimento da diferença, ou seja, a necessidade do outro/diferente, “tem como função mascarar os conflitos de interesse em todos os níveis, inclusive os ideológicos”. (WITTIG, 2010, p. 54, tradução nossa). Ela afirma que “constituir uma diferença e controlá-la é um ato de poder já que é um ato essencialmente normativo” (WITTIG, 2010, p. 53, tradução nossa).

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corruptela ‘cistema’, entre outras corruptelas do tipo, têm o objetivo de enfatizar o caráter estrutural e institucional – ‘cistêmico’ – de perspectivas cis+sexistas, para além do paradigma individualizante do conceito de ‘transfobia’”. Manifestando-se sobre o cistema – termo adotado, então, em referência ao sistema predominantemente cisgênero, que exclui os sujeitos trans –, a resolução 001/2018 do Conselho Federal de Psicologia, que traz orientações acerca das transexualidades e travestilidades, descreve o que pode se entender por cisnormatividade:

[..] refere-se ao regramento social que reduz a divisão das pessoas apenas a homens e mulheres, com papéis sociais estabelecidos como naturais, postula a heterossexualidade como única orientação sexual e considera a conjugalidade apenas entre homens e mulheres cisgêneros [...] cisnormatividade como discursos e práticas que excluem, patologizam e violentam pessoas cujas experiências não expressam e/ou não possuem identidade de gênero concordante com aquela designada no nascimento (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).

Leticia Lanz (2015) observa que a partir da nomeação ou interpelação médica, quando fica evidenciado o sexo genital do bebê, a criança é apresentada cotidiana e repetidamente a uma espécie de cartilha específica para seu gênero, com a expectativa dos papéis, comportamentos, formas de conduta, expressões, vestuários e interesses típicos. Desde pequenos/as somos todos e todas, em maior ou menor grau, mergulhados/as em universos claramente distintos para meninos e meninas, com previsão de brinquedos, cores, atividades, desenhos infantis etc., típicos de cada gênero, como se brinquedos e cores tivessem um gênero. A respeito da naturalização do processo de heteronormatividade, bem como da heterossexualidade compulsória e suas estratégias de manutenção, Guacira Lopes Louro esclarece:

Mas a manutenção dessas posições hierarquizadas não acontece sem um investimento continuado e repetitivo. Para garantir o privilégio da heterossexualidade – seu status de normalidade e, o que ainda é mais forte, seu caráter de naturalidade – são engendradas múltiplas estratégias nas mais distintas instâncias (na família, na escola, na igreja, na medicina, na mídia, na lei). Através de estratégias e táticas aparentes ou sutis reafirma-se o princípio de que os seres humanos nascem como macho ou fêmea e que seu sexo – definido sem hesitação em uma destas duas categorias – vai indicar um de dois gêneros possíveis – masculino ou feminino – e conduzirá a uma única forma normal de desejo, que é o desejo pelo sujeito de sexo/ gênero oposto ao seu.

Esse alinhamento (entre sexo-gênero-sexualidade) dá sustentação ao processo de heteronormatividade, ou seja, à produção e à reiteração compulsória da norma heterossexual. Supõe-se, segundo essa lógica, que todas as pessoas sejam (ou devam

ser) heterossexuais – daí que os sistemas de saúde ou de educação, o jurídico ou o midiático sejam construídos à imagem e à semelhança desses sujeitos. São eles que estão plenamente qualificados para usufruir desses sistemas ou de seus serviços e para receber os benefícios do Estado. Os outros, que fogem à norma, poderão na melhor das hipóteses ser reeducados, reformados (se for adotada uma ótica de tolerância e complacência); ou serão relegados a um segundo plano (tendo de se contentar com recursos alternativos, restritivos, inferiores); quando não forem simplesmente

50 excluídos, ignorados ou mesmo punidos. Ainda que se reconheça tudo isso, a atitude mais frequente é a desatenção ou a conformação (LOURO, 2009, p. 89-90, grifos nossos).

O que pode passar ligeiramente despercebido nessa maneira de educar as crianças é que esse início da sua formação com certos tipos de estimulações ou de proibições (brincadeiras que requerem raciocínio lógico-matemático, exploração de ambientes externos, superação de desafios, exercício de liderança etc., ou o contrário disso), e ainda com acentuação ou atenuação de determinadas características (docilidade / agressividade, organização / criatividade) pode limitar ou fomentar as potencialidades daquela criança durante a vida, podendo, inclusive, contribuir de maneira significativa para as desigualdades de gênero observadas nas estatísticas atuais, seja no ambiente organizacional (menor ocupação de cargos de liderança e menores salários, por exemplo), seja na vida privada (cuidados domésticos e com os filhos majoritariamente a cargo das mulheres, altos índices de violência e feminicídio, por exemplo). É, então, a partir da constatação do sexo do bebê que se tem início ao processo constante e infindável de tornar-se um determinado gênero. Sobre a interpelação médica, Butler (2000, p. 157) diz que ela “transforma uma criança, de um ser ‘neutro’ em um ‘ele’ ou em uma ‘ela’: nessa nomeação, a garota torna-se uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do gênero”. Entretanto, essa interpelação inicial e fundante não se esgota no primeiro ato, mas, ao contrário, é reiteradamente repetida e reforçada ao longo da vida por toda sorte de autoridades, ensejando o efeito de materialização (BUTLER, 2000, p. 157).

Todavia, é sabido que muitas pessoas, desde a mais tenra idade, “não se submetem de forma passiva, tranquila, confortável, natural e espontânea a esse ‘processo compulsório’ de capacitação sociopolítico-cultural que os obriga a viver como homem ou mulher” (LANZ, 2015, p. 155). São os sujeitos trans que, por recusarem o enquadramento de gênero recebido ao nascer, são alocados em lugares sociais de abjeção sendo, via de regra, considerados como pervertidos, perigosos, anormais, doentes ou como aberrações da natureza.

A ideia de abjeção é apresentada por Butler (que, por sua vez, pega o termo emprestado de Julia Kristeva) ao falar das vidas ou corpos que importam, instigando a “uma rearticulação radical daquilo que pode ser legitimamente considerado como corpos que pesam, como formas de viver que contam como ‘vida’, como vidas que vale a pena proteger, como vidas que vale a pena salvar, como vidas que vale a pena prantear” (BUTLER, 2000, p. 165). Ela esclarece que o abjeto designa “aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabaláveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o

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signo do ‘inabitável’ é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito” (BUTLER, 2000, p. 153). Ou seja, as margens são fundamentais para o estabelecimento e manutenção do “centro”, de forma que os não-sujeitos conferem condição de possibilidade para a existência dos que alcançam o status de sujeitos.

Fica evidente que todos os esforços serão engendrados para a manutenção do establishment, de maneira que o fomento da relação nós x eles ou legítimos x desviantes é necessário para manter as coisas como estão e não haver alterações nas correlações de poder existentes. Deseja-se o extermínio do diferente, mas no fundo não se pode viver sem ele, sob pena de se alterar a relação desigual de poder.

Norbert Elias e John Scotson (2000) explicitaram a lógica da construção das relações de poder que regia a vida em uma pequena comunidade inglesa onde realizaram a sua pesquisa nas décadas de 1950 e 60, mas que poderia indicar o modo de funcionamento em outros contextos sociais e aqui, por analogia, aos sujeitos trans. Naquela localidade em que o discurso era também pautado na lógica do “nós” versus “eles”, havia uma barreira quase intransponível entre os dois grupos: de um lado, os estabelecidos, os antigos moradores e de famílias tradicionais, arvorando-se como detentores da boa tradição e apresentando-se como a boa sociedade, e de outro, os outsiders, moradores mais novatos na comunidade, que viviam estigmatizados e destacados por sua (suposta) anomia, delinquência, desintegração, sujeira e violência34.

Por meio do binômio estabelecidos-outsiders, os autores tensionam a superioridade moral e social, a autopercepção e o reconhecimento, a hierarquização das pessoas segundo o grupo ao qual pertencem, o controle social de condutas, o pertencimento e a exclusão, revelando as propriedades gerais de outras relações de poder. Elias e Scotson (2000, p. 20) pretendiam saber como e porque um grupo de pessoas se considerava seres humanos melhores do que outros e que meios eram utilizados para impor a crença de sua superioridade humana aos que não gozavam do mesmo status, ou seja, aos inferiores. É possível concluir, a partir dos resultados encontrados por eles, que mesmo que haja alguma diferença visível como cor da pele, aparência física ou qualquer outro aspecto biológico, essas questões são meramente periféricas. A questão central que deve ser desnudada e problematizada, e que alimenta a segregação entre grupos estabelecidos e outsiders, reside na dinâmica da relação dos grupos interligados, nos diferenciais de poder, na exclusão de pessoas estigmatizadas de cargos de grande influência etc. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 32).

34 A observação cuidadosa dos pesquisadores demonstrou, entretanto, que não havia nenhuma diferença

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Assim como esses autores observaram outrora, no estudo sobre as transidentidades também é importante refletir sobre quais mecanismos produzem as situações de dominação e opressão. A lógica do nós x eles aqui se configura como sujeitos cis x sujeitos trans, sendo estigmatizados/as, inferiorizados/as e oprimidos/as aqueles e aquelas que se afastam do padrão heteronormativo vigente, ou seja, que furam a norma que fora socialmente estabelecida de maneira tão consistente que transmite a falsa ideia de naturalidade. A mera existência de uma pessoa trans ameaça desmoronar a ordem heteronormativa. Em alguma medida, podemos aproximar o conceito de sujeito abjeto descrito por Butler (2000), da ideia de sujeitos e grupos outsiders apresentada por Elias e Scotson (2000), embora um não possa ser tomado pelo outro:

O abjeto se aproxima daquilo que em Norbert Elias podemos definir como outsiders, ou seja, sujeitos e grupos que têm questionado/negado seu status humano nas dinâmicas relacionais. O termo outsider possui uma abrangência maior e não foi utilizado como em Butler. Contudo, pelas normas de gênero que se constitui o corpo das trans como abjeto, um estigma que faz delas – e de outros sujeitos marcados pelo conflito com a norma – outsiders (TORRES, 2012, p. 170, grifos do autor).

Nessa perspectiva, alguns achados de Elias e Scotson (2000) são muito pertinentes aos estudos trans, e podem ser emprestados para a nossa discussão, como a análise de grupos e as relações de poder que os atravessam:

a) revelam a importância da coesão grupal interna para que seja possível revidar e estabelecer resistência contra a opressão sentida (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 25). Na comunidade inglesa era evidente a falta de coesão entre os outsiders, o que impossibilitava qualquer ação coletiva de resistência. No caso dos sujeitos trans, fica cada vez mais notório o papel fundamental das lutas coletivas e dos movimentos sociais para o reconhecimento dos direitos e reconhecimento social das transidentidades;

b) se, de um lado, há a recompensa com status e poder para quem está no grupo superior, a pesquisa-observação evidencia o preço a ser pago, individualmente, que é a obrigação de se submeter às rígidas normas e lógica de afetos ali atuantes. O contato mais íntimo ou aliança com os outsiders, considerados seres anômicos, faz pairar sobre o sujeito estabelecido a suspeita de transgressor das normas e tabus e ele corre o risco de ser rebaixado dentro do grupo (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 28). Em situações análogas, ocorre uma espécie de “comportamento de manada”, demandando coragem daquele sujeito que contraria a opinião e regras do grupo majoritário, uma vez que essa atitude significaria desagradar aos seus pares e arriscar a sofrer pressões e punições destinadas pelo grupo aos não conformistas. Diuturnamente temos notícias de pessoas que foram atacadas moral e/ou fisicamente pelo simples fato de defenderem causas

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afetas à população LGBTI+ ou apresentarem-se como defensoras dos direitos humanos. Elias e Scotson falam também sobre a dificuldade de as crenças coletivas serem quebradas:

É frequente as crenças coletivas serem impermeáveis a qualquer dado que as contradiga ou a argumentos que revelem sua falsidade, pelo simples fato de serem compartilhadas por muitas pessoas com quem se mantém um contato estreito. Seu caráter coletivo faz com que elas se afigurem verdadeiras, particularmente quando se cresceu com elas, desde a primeira infância, num grupo estreitamente unido que as toma por verdades, e mais ainda quando os pais e os avós também foram criados com essas crenças. Nesse caso, o sentimento de que a crença é verdadeira pode tornar-se quase inerradicável e persistir com grande intensidade, mesmo que, num nível mais