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3. A RELAÇÃO TENSIONADA ENTRE RECONHECIMENTO JURÍDICO E

3.3 A despatologização das transidentidades e a necessária mudança paradigmática

3.3.2 O Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde e seu impacto na

Apresento neste tópico o protocolo do Processo Transexualizador realizado pelo SUS e discuto como os requisitos nele elencados sobrepujam a autonomia dos sujeitos. Saliento que apesar de não ser um sistema perfeito e conter falhas em sua estrutura, o SUS é uma grande conquista democrática, apresentando-se como um sistema universal de saúde reconhecido como um dos mais justos e amplos do mundo.

Apesar da recente manifestação da OMS no sentido da despatologização das transidentidades ao retirar as identidades trans e travestis do capítulo de transtornos mentais na CID-11, passando ao capítulo destinado às condições relativas à saúde sexual, ainda não houve alterações no protocolo e resoluções específicas, embora haja discussões acontecendo nesse sentido enquanto escrevo estas linhas.

Assim, os requisitos atuais e vigentes para se ter acesso aos procedimentos cirúrgicos pelo SUS, conforme Portaria 2.803/2013 do Ministério da Saúde, que redefine o Processo Transexualizador, e Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dispõe sobre a cirurgia de “transgenitalismo”, são: 1) ser maior de 21 anos de idade; 2) ter realizado acompanhamento prévio e compulsório de dois anos pela equipe multiprofissional que acompanha o(a) usuário(a) no Serviço de Atenção Especializada; 3) ter indicação específica

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após avaliação da equipe, com diagnóstico médico de “transgenitalismo”; 4) ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia e ausência de transtornos mentais. Daí se denota que o/a “paciente” passa por um período probatório de sua própria identidade, a ser atestada pela equipe multidisciplinar que o acompanha.

O diagnóstico médico ou laudo diagnóstico será concedido à(ao) paciente “transexual”, considerado(a) pela Resolução 1.955/2010 do CFM como “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”. Essa resolução considera, ainda, que “a cirurgia de transformação plástico- reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários” tem “o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico”. O CFM define, portanto, a cirurgia de redesignação sexual como o “tratamento” indicado para pacientes com “transexualismo”, visando sua “cura”, e dispõe sobre os procedimentos de seleção de candidatas e candidatos aos procedimentos.

Baseada em tais considerações e premissas, a Resolução 1.955/2010 do CFM reconhece como o/a “verdadeiro/a transexual”, ou seja, como portador ou portadora de “transexualismo”, aquele ou aquela que obedecer, no mínimo, aos seguintes critérios: 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de transtornos mentais.

A partir desses requisitos, pergunto: como o protocolo atualmente adotado pelo SUS no Processo Transexualizador afeta o exercício da autonomia de um sujeito trans? Conforme já abordei anteriormente, essa é uma reflexão que exige uma mudança paradigmática na maneira de elaborar e interpretar as normas médicas, partindo da despatologização das transidentidades. Da forma como ainda se realiza o Processo Transexualizador no SUS é negada ao próprio sujeito a sua autonomia em autodeterminar-se e em afirmar, em primeira pessoa, a sua transidentidade e seu desejo de realizar procedimentos médicos para alcançar um fenótipo que entende ser mais condizente com o seu gênero vivido e, em última instância, um corpo que lhe confira maior inteligibilidade social68. Essa afirmação é transferida às/aos especialistas que verificarão, investigarão, analisarão, esmiuçarão o corpo e a história das “candidatas” e dos

68 Importante reforçar que o desejo de realização de mudanças corporais e de se alcançar a inteligibilidade social

de seus corpos não é unanimidade entre as pessoas trans, uma vez que o sentimento em relação ao corpo faz parte da singularidade de cada um. Dessa maneira, pode ser que o sujeito pretenda apenas a hormonização, apenas algumas mudanças sexuais secundárias ou pretenda passar pela transgenitalização. Esta observação fica evidenciada nas entrevistas aqui realizadas.

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“candidatos” em busca do(a) “transexual verdadeiro(a)”. Ou seja, em detrimento da declaração autorreferenciada que possibilita o exercício da autonomia do sujeito, a heteroidentificação é priorizada, retirando do sujeito o direito de fazer as próprias escolhas acerca de sua identidade e de seu corpo.

Partindo dos estudos queer, especialmente da ideia de performatividade de gênero de Butler, dos discursos de poder desvelados por Foucault e das narrativas de sujeitos trans entrevistados em sua pesquisa, Berenice Bento (2006) se coloca em favor da despatologização da experiência transexual, da existência de uma multiplicidade de significações para transexualidade, da interrogação à construção pelo saber médico de um/a suposto/a “transexual verdadeiro/a” (ou sujeito transexual universal), como quer fazer parecer o protocolo médico na seleção de “pacientes” ao Processo Transexualizador e na prescrição de “tratamentos” válidos para todas e todos.

A universalidade de um sujeito transexual não converge com o entendimento da transgeneridade como fenômeno sociológico que comporta múltiplas e fluidas identificações, expressões de gênero e diversidade corporal, como esposado nesta dissertação. Inclusive, nesta pesquisa, a partir da entrevista com alunes trans, observo a multiplicidade de desejos, intenções e percepção com relação à própria corporeidade e subjetividade, parecendo mais adequado pensar na diversidade corporal, que vai desde os/as que desejam realizar intervenções até aqueles/as que se sentem confortáveis com o corpo sexuado que possuem, ou seja, conceber a existência de corpos híbridos que não pretendem ocupar integralmente o outro polo do binarismo.

Pensar em corpos possíveis e não mais no binômio corpos congruentes x incongruentes (como a nova classificação da CID-11), segundo Marco Aurélio Máximo Prado (2018, p. 32), requer que despatologizemos primeiro o nosso pensamento e o nosso olhar sobre os corpos, que costuma realizar um escaneamento dos corpos na tentativa de alcançar inteligibilidade. O autor lembra que nosso afã classificatório e diagnosticador, já interessado na previsão de terapêuticas para a normalização social, tem como pressuposto que as experiências de gênero são uma linha reta com ponto de partida e de chegada, universal para todos os sujeitos trans. Todavia, ao contrário, há singularidades, sinuosidades e traços próprios que culminam em processos de transição completamente particulares (PRADO, 2018, p. 73).

Há muitos mitos sobre transexualidades, principalmente quando se trata de experiências na infância ou na juventude. Um deles é o ponto de partida e o de chegada. Todos querem saber quando começou e até onde será capaz de ir. É como se as experiências de gênero fossem uma linha reta com um ponto inicial e um final e

110 estamos nós, cisgêneros, como aqueles que supostamente não sabem seu ponto de partida e nem precisam dar satisfação do lugar de chegada, doidos para saber da diferença do outro afinal, como isso começou? Além disso, há sempre uma ideia de tentar dar inteligibilidade e uma racionalidade à experiência. Como se fosse um certo cálculo entre causa e efeito (PRADO, 2018, p. 60).

Em sua tese sobre a (re)invenção do corpo, Berenice Bento (2006, p. 24) toma como variável – e não universal – a relação que os sujeitos trans estabelecem com o próprio corpo, de maneira que não poderia haver um tipo específico de transexual preenchendo exaustivamente todos os critérios diagnósticos e somente a ele/ela fosse permitido o acesso ao Processo Transexualizador (embora grande parte das pessoas trans preencham tais requisitos). A autora reforça que a relação que os sujeitos estabelecem com seus genitais pode variar desde a completa abjeção (com desejo de extirpar aquela parte de si) até o reconhecimento de que fazem parte de seu corpo (e lhe conferem prazer, inclusive), não lhes trazendo nenhum problema (BENTO, 2006, p. 24-25).

Diferentemente e de maneira irrefletida, o senso comum (derivado do saber médico/biológico) dissemina a ideia de que todo/a transexual “de verdade” tem horror ao seu corpo. Se não tiver, então é porque não seria verdadeiramente trans (portanto, não estaria legitimado/a a proceder a algumas mudanças corporais ou fazer uso de hormonização). Como sugestão de mudança na compreensão do fenômeno, a autora propõe:

O/a "transexual oficial", por sua vez: a) odeia seu corpo, b) é assexuado/a e c) deseja realizar cirurgias para que possa exercer a sexualidade normal, a heterossexualidade, com o órgão apropriado. Sugiro, ao contrário, que eles/as não solicitam as cirurgias motivados/as pela sexualidade, tampouco são assexuados/as: querem mudanças em

seus corpos para ter inteligibilidade social. Se a sociedade divide-se em corpos-

homens e corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante tendem a estar fora da categoria humano. [...] As histórias de mulheres transexuais lésbicas e de homens transexuais gays indicam a necessidade de interpretar a identidade de gênero, a sexualidade, a subjetividade e o corpo como modalidades relativamente independentes no processo de construção das identidades (BENTO, 2006, p. 25, grifos nossos).

Um argumento recorrentemente utilizado, mas que depõe contra a autonomia do sujeito trans, quando se fala em alterações corporais, é o de que se trata de um procedimento irreversível do qual pode vir a se arrepender no futuro, o que justificaria a verificação e validação do pedido de cirurgias por profissionais dos campos Psis (Psiquiatria e Psicologia). De fato, não é raro encontrar notícias (às vezes, sensacionalistas) na mídia de pessoas que fizeram a cirurgia de confirmação de gênero e se arrependeram após algum tempo, desejando proceder à “destransição”. E também é verdadeira a afirmação de que uma cirurgia de redesignação sexual, bem como para caracteres sexuais secundários (como ablação do útero),

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tem resultados irreversíveis. Mas, mais importante a se considerar, como assevera Beatriz Pagliarini Bagagli (2018), é a construção de uma “falsa narrativa de que o acesso a saúde de pessoas trans seria algo ‘perigoso’ com base em relatos anedóticos de arrependimento”. Além disso, ela lembra o “sofrimento psíquico decorrente das sistemáticas negações de reconhecimento identitário de jovens trans” e a negação da autonomia e da vontade das pessoas trans, tecendo, desta maneira, críticas àqueles/as que querem construir a narrativa de que

[...] a aceitação da transexualidade seria algo ruim porque hipoteticamente pessoas poderiam se arrepender de fazerem alterações corporais. Se baseando na premissa completamente equivocada de que pessoas trans seriam profundamente incentivadas socialmente a serem trans porque reproduziriam “estereótipos normativos de gênero”. [...] E não silenciem a verdade: as alterações corporais que pessoas trans realizam tem na realidade altíssimas taxas de sucesso e de não arrependimento. Não silenciem a verdade: pessoas trans tem melhor saúde mental quando conseguem acessar cuidados médicos que incluem hormonioterapia e cirurgias. Isso é o que diz as evidências científicas (BAGAGLI, 2018).

Com efeito, dada a seriedade e irreversibilidade da medida, essa decisão sobre as mudanças corporais requer devido amadurecimento reflexivo pelo sujeito que a deseja e é bastante importante que no período decisório conte com o apoio médico e psicológico necessário, estando munido/a de todas as informações e esclarecimentos quanto aos procedimentos cirúrgicos e também sobre os enfrentamentos sociais que virão juntamente com as alterações corporais. Falo sobre suporte de profissionais especialistas nesse tema e não de delegação da decisão a tais profissionais. Nesse mesmo sentido também se posiciona o CFP na Resolução 001/2018. Entendo, nesse contexto, que o mesmo princípio da autonomia que sustenta a autodeterminação do sujeito quanto à sua identidade de gênero e, portanto, o autoriza a afirmá-la para todos os fins, também sustenta o seu direito de decidir pela “destransição” de gênero69.

Quando digo da autonomia do sujeito trans no Processo Transexualizador, questiono o fato de que seja exigido um laudo diagnóstico de “transexualismo” que o autorize à realização das mudanças corporais que deseja para si e, em última análise, alcance a almejada autorrealização pessoal e felicidade. Isso não quer dizer, absolutamente, que outras avaliações

69 Ademais, considerando o gênero como performatividade, conforme Butler (2016), não haveria total fixidez na

identidade de gênero de um sujeito, sendo por esse motivo mesmo, performativa. Desse modo, há e sempre haverá a possibilidade de mudanças na identificação de um sujeito quanto ao seu gênero, mesmo que este seja percebido e vivenciado como estável (um pouco mais ou um pouco menos) pela maior parte dos sujeitos. Porém, essa possibilidade não deve impedir o exercício da autonomia de uma pessoa de, em determinado momento de sua vida, fazer as suas próprias escolhas e, em contrapartida, se responsabilizar pelos resultados delas advindos. Bom esclarecer que a responsabilidade aqui mencionada não enseja um individualismo absoluto e que, portanto, o sujeito trans estaria abandonado à própria sorte ao afirmar a sua identidade de gênero e decidir realizar mudanças em seu corpo.

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médicas não sejam necessárias para o encaminhamento aos procedimentos70, a saber, avaliação clínica para verificação de alguma doença que traga riscos se aliada à administração de hormônios, por exemplo, como doenças cardiovasculares ou problemas de coagulação. Mais uma vez, autonomia não significa autossuficiência.

Em suma, entendo como necessária uma releitura do dispositivo legal acerca da disposição do próprio corpo (art. 13 CC/02), bem como das normativas específicas sobre o Processo Transexualizador (CFM e Ministério da Saúde), que enseje a efetiva fruição dos direitos da personalidade, a fim de viabilizar a integridade psicofísica a partir das mudanças corporais desejadas e realizadas. Esse entendimento decorre da urgência de não mais se sobrepujar a autonomia dos sujeitos trans, de se consubstanciar a dignidade da pessoa humana em sua plenitude e de efetivar o respeito à diversidade e saúde integral dentro do SUS. Em outras palavras, o questionamento de alguns dos requisitos previstos no protocolo se dá em virtude da importância da despatologização das transidentidades, aliada à autodeterminação do sujeito no reconhecimento de si, ao direito ao próprio corpo e de manifestação autônoma de seu consentimento livre e esclarecido para realização de cirurgias de transgenitalização, caracteres sexuais secundários e outros procedimentos.

Entendendo a autodeterminação de gênero e a identidade pessoal como direitos subjetivos garantidos constitucionalmente, uma vez que decorrem dos direitos fundamentais expressamente previstos, e partindo de uma interpretação do ordenamento jurídico como garantidor da subjetividade e individualidade dos sujeitos, questiono: no tocante ao reconhecimento da identidade de gênero, deve a medicina ser atavicamente adotada como fundamentação jurídica e de intervenção estatal no domínio privado? Ou seja, para a questão da transgeneridade, o Direito deve se reger segundo os seus parâmetros constitucionais ou deve operar atrelado compulsoriamente aos cânones médicos?

70 Essas reflexões são voltadas para sujeitos trans que possuem capacidade de discernimento, como é a regra.

Entretanto, caso haja indícios de transtorno psiquiátrico anterior que prejudique a plena manifestação do consentimento do sujeito e exercício de autonomia por reduzir a capacidade de discernimento e sua percepção da realidade, como algum transtorno psicótico com presença de alucinações ou delírios com alteração do conteúdo do pensamento, por exemplo, uma avaliação médica seria recomendada. Nesse caso de presença de transtorno psiquiátrico, sugere-se a utilização do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que traz uma mudança de paradigma na abordagem da deficiência, em uma perspectiva de respeito à dimensão existencial do outro e de atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana. O Estatuto prevê que a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar (art. 2º, §1º); que o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa com deficiência é indispensável para a realização de tratamento, procedimento, hospitalização e pesquisa científica (art. 12) e que em caso de pessoa com deficiência em situação de curatela, deve ser assegurada sua participação, no maior grau possível, para a obtenção de consentimento (art. 12, §1º) (BRASIL, 2015).

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