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3. O ENVELHECIMENTO DEMOGRÁFICO

3.3 A PESSOA IDOSA NA SOCIEDADE

”A velhice é a soma de todas as virtudes, é a cena final dessa peça que constitui a existência”.

Cícero

O envelhecimento e a velhice têm sido alvo de mutações sociais e representacionais, ao longo dos tempos: “desde a imagem de uma velhice como fonte de sabedoria (nas sociedades tradicionais, quando ser-se velho era um acontecimento raro), a uma velhice dependente e isolada (financeira e culturalmente), a uma velhice reformada ou pensionada, com a universalização dos sistemas de reformas da Segurança Social.”66 Constata-se assim que o envelhecimento é vivido de forma variável, consoante o contexto social em que se inscreve. A imagem da velhice é incerta, confusa, contraditória, variável de acordo com os tempos e os lugares.

Desde o antigo Egipto, Mesopotâmia, Palestina, Grécia, Roma, existem referências sobre a velhice. De acordo com os dados referenciados por Beauvoir67, os primeiros escritos consagrados acerca do idoso surgem no ano 2500 a.C., e pertenciam ao poeta e filósofo Egípcio Ptah-Hotah: “quão penoso é o fim de um ancião! Vai dia a dia enfraquecendo! A velhice é a pior desgraça que pode acometer um homem”.

Nas civilizações primitivas, quando o homem se dedicava à caça e à guerra, os idosos eram desprezados, afastados do poder e dos rituais e, por vezes, abandonados pela tribo devido à sua fraqueza física. Quando ocorreu a sedentarização das tribos nómadas e estas passaram a dedicar-se à agricultura, os anciãos passaram a usufruir de consideração no clã, ocupando um lugar socialmente elevado, sendo, por vezes, eleitos chefes.

Na maioria das sociedades primitivas, o velho era aureolado pelo privilégio “sobrenatural” de longevidade e, como tal, ocupava um lugar de destaque na sua comunidade. A longevidade era associada à sabedoria e à experiência. A velhice associava-se ao sagrado. (Rodrigues,2000)

65 Vide as Comunicações da Comissão COM (1999) 221 final “Uma Europa para todas as idades – Promover a prosperidade e

solidariedade entre gerações”, COM (2002) 143 final “Resposta da Europa ao progresso económico e Social num mundo em

envelhecimento” e , mais recentemente, a COM (2005) 94 final “Livro Verde – Uma nova solidariedade entre gerações face às mutações demográficas”.

66 GIL, Ana Paula (1999), «Redes de Solidariedade intergeracionais na velhice», in Cadernos de Política Social - Redes e Política

Social, Nº 1, 1999, Associação Portuguesa de Segurança Social.

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Também na antiga civilização chinesa existia a chamada “grande idade” que estava relacionada com o respeito e a deferência com que os idosos eram tratados, com a força da família chinesa, que compreendia o respeito pelos anciãos, educadores das novas gerações e a comunhão espiritual com os antepassados.

Na Grécia antiga, a pessoa idosa, detentora da sabedoria e fonte de todos os conhecimentos acumulados ao longo de toda a sua existência, detinha todos os poderes. Em Esparta, o conselho de estado era composto por 28 homens com mais de 60 anos, recrutados entre os mais valorosos. Na República Veneziana, os doges eram muitas vezes homens idosos, tal como no pontificado, onde a gerontocracia foi sempre a regra.

Todavia, o prestígio de outrora foi-se desvanecendo e o papel de destaque que o idoso ocupava na sociedade foi gradualmente perdendo importância. Esta mudança de cenário começa a ganhar relevo e concretiza-se com a decadência da oligarquia na Era Romana. A sociedade privilegia o poder militar, como condição de transformação social.

Na Idade Média com a vigência da lei do mais forte física e militarmente, optou-se pela exaltação da juventude com o consequente desprezo sobre a pessoa idosa. Para se ser respeitado tinha que se morrer em combate. A idade significava perda de valor, na sociedade bárbara. O grande vigor físico, “corpo bem talhado”, apetite vigoroso, o amor pela guerra, à imagem das personagens heróicas da época, personificadas por jovens cavaleiros, opunha-se à imagem do velho debilitado, enfraquecido e incapaz de lutar68. Apesar de pouco numerosos, os velhos eram tratados como inúteis e “passar dos 80 anos era um prodígio diabólico que se devia exorcizar com a pena capital” (Bacelar, R., 2002: 22).

Quando detinham o estatuto de senhores, anciãos, chefes de clãs e de tribos ou de grandes famílias nobres, os mais velhos eram aceites se ainda demonstrassem a energia do homem maduro, caso contrário, se se encontrassem doentes, frágeis e incapazes de produzir, recolhiam a uma abadia, à qual doavam os seus bens e ali permaneciam até à morte.

No período Renascentista, o envelhecimento era concebido a partir dos 40 anos. A pessoa idosa deixa de ser admirada enquanto figura do saber, é desprezada, e os conceitos de decrepitude e feiura, associados ao idoso, relegam os velhos para um segundo plano, em benefício da adoração e culto à beleza, e à força associada à juventude.

Esta analogia aparece “…nas imagens do Inverno, em que este era personificado pelos cabelos e barba branca, evocando assim o frio e a neve em contraste com a força e o vigor da juventude, que personificavam o verde da Primavera ou o encarnado do Verão”69.

No Mundo Ocidental, com a revolução industrial, uma vez mais a velhice surge como um problema social na medida em que os idosos são caracterizados pela ausência de produtividade e de consumo. O trabalho especializado leva a uma estratificação e segregação etárias: os que aprendem, os que produzem e os que saíram do ciclo produtivo, onde se incluem os idosos. Com o fenómeno da industrialização e o consequente desaparecimento dos modelos de família baseados na agricultura de subsistência, nasce o conceito de reforma com o intuito de afastar o indivíduo idoso do seu emprego a partir dos 65 anos, quando já não é considerado elemento produtivo. Uma vez mais a pessoa idosa perde o seu papel de transmissor transgeracional do Saber, face a uma economia de mercado baseada no lucro.

A época entre o final da segunda guerra mundial e meados da década de setenta, designada pelos economistas como «os trinta anos gloriosos», correspondeu a um período de euforia desenvolvimentista que se traduziu em índices de crescimento económico e tecnológico (comunicação e informática), cuja probabilidade de repetição no futuro é considerada praticamente nula. Este súbito desenvolvimento tecnológico determinou que os trabalhadores mais velhos e mais experientes, que não

conseguiram e não conseguem hoje acompanhar essa evolução, sejam

frequentemente ultrapassados pelos jovens em matéria de conhecimentos, relegando- se para segundo plano a experiência e a antiguidade. O respeito pelos mais velhos tornou-se menos profundo porque o critério de valores foi alterado, explodindo conflitos de gerações tanto na família como no local de trabalho.

A agravar a situação, a estrutura familiar sofreu alterações profundas. A presença permanente das mulheres no espaço-doméstico, remetidas ao seu papel de cuidadoras, tanto das crianças como dos idosos a seu cargo, foi posta em causa com a integração destas no mercado de trabalho. De facto, com a industrialização há uma integração massiva da mulher no mundo do trabalho. Este facto veio alterar fortemente o papel da família e, nesta, o papel da mulher, diminuindo as hipóteses de os idosos beneficiarem de ajuda e protecção na velhice. Casamentos tardios, divórcios frequentes, aumento das famílias monoparentais, fazem parte do leque das alterações que se fizeram sentir na tradicional estrutura dos núcleos familiares e que

culminaram com o aumento da procura, por parte da população, das instituições, dos serviços sociais e de saúde, em busca de uma resposta para os seus problemas. A forma como a sociedade concebe os períodos de vida, de acordo com as ideologias vigentes em cada época, explica a variabilidade de representações sociais da velhice. Não obstante a existência de civilizações em que ainda hoje os idosos são venerados e considerados a fonte do saber, é um facto que a “imagem” e as “crenças” que existem em relação ao envelhecimento modificaram-se nos últimos tempos. Se o idoso foi, em tempos, considerado um elemento fundamental na transferência de valores e conhecimentos para as populações mais jovens, actualmente, tem uma imagem e um “papel social” quase insignificante.

Reportando-nos aos nossos dias e à nossa cultura, constatamos que as construções sociais da imagem da pessoa idosa, tendem a identificá-la com a decadência física, as rugas, os cabelos brancos, a diminuição da capacidade intelectual, o encurvamento do corpo, a dependência, em oposição ao jovem, dotado de um corpo esbelto, forte, vigoroso, criativo, inovador e capaz de acompanhar a mudança. De facto, nos nossos dias, a imagem de juventude é apregoada, exaltada e idolatrada através dos media.

Citando Alexandre O’Neill, num poema intitulado “Velhos de Lisboa” 70 não podemos deixar de rever o que expressámos atrás, neste retrato da velhice.

"Em suma: somos os velhos, cheios de cuspo e conselhos, velhos que ninguém atura a não ser a literatura

e outros velhos. (Os novos afirmam-se por maus modos com os velhos). Senectude é tempo não é virtude... Decorativos? Talvez...

Mas por dentro “era uma vez...”

(...)

Velhinhas de gargantilha visitam o neto, a filha, e levam bombons de creme ou palitos “de la reine”.

(...)

Outros mijam, fazem esgares, têm poses e vagares

bem merecidos. Nos jardins, descansam, depois, os rins.

Aqueloutros (os coitados!) imaginam-se poupados pelo tempo, e às escondidas partem p’ra novas sortidas...

(...)

Velhotes com mais olhinhos que tu, fazem recadinhos, pedem tabaco ao primeiro e mostram pouco dinheiro...

E os que juntam capicuas e fotos de mulheres nuas? E os tontilhos, os gaiteiros, que usam cravo e põem cheiros?

(Velhos a arrastar a asa pago bem e vou a casa.)

E a velha que se desleixa e morre sem uma queixa? E os que armam aos pardais nessas hortas e quintais?

(Quem acerta co’os botões deste velho? Venha a cidade ajudá-lo a abotoar

que não faz nada de mais!)

Velhos, ó meus queridos velhos, saltem-me para os joelhos: vamos brincar? "

É fundamental alterarmos a postura que temos em relação à velhice e aos idosos, os estereótipos associados a este grupo mais vulnerável e percebermos que os jovens de hoje serão os avós de amanhã. A solidariedade entre gerações deve reconstruir-se hoje, olhando para o futuro, alicerçando os laços familiares, fomentando as relações intergeracionais de ajuda e participação, a inter-ajuda dos vizinhos e amigos que rodeiam os idosos fortalecendo estes laços tão importantes e quase perdidos na nossa sociedade contemporânea.

Há uma cultura, um passado, uma experiência e uma vontade própria a respeitar e há, portanto, que encarar a pessoa idosa como um recurso social e económico importante na sociedade, transmissor para as gerações mais jovens de um património de valor inestimável que deve ser preservado.

Todos os parceiros da comunidade são elementos indispensáveis para criar condições para a constituição de uma sociedade para todas as idades, contribuindo, assim, para a promoção e melhoria de um processo de envelhecimento saudável.

Porém, esta mudança de comportamentos e atitudes não passa apenas pela sociedade, é igualmente necessário que o próprio idoso seja capaz de conseguir viver com as transformações que lhe ocorrem a nível físico, psíquico e social e encare o envelhecimento como mais um ciclo de vida que se abre e que deve ser vivido por ele, não como um luto, mas, e antes de mais, como uma etapa a vivenciar de forma positiva, sendo que

Envelhecer é também ir aprendendo outra forma de viver”71.

É neste contexto que surge o conceito de envelhecimento activo, considerado o novo paradigma para a velhice.

O envelhecimento da população significa um aumento da dependência e um eventual decréscimo do potencial crescimento.