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A POESIA EM PÂNICO : ENTRE O ANDAR TÉRREO E O ANDAR

3 EMOÇÕES OPOSTAS, RELAÇÕES CONSTRUTIVAS

3.2 A POESIA EM PÂNICO : ENTRE O ANDAR TÉRREO E O ANDAR

O arsenal de deus é de carros alados, cada carro com seis asas, Com águias degoladas indo e vindo pelo mundo Jorge de Lima, As armas de Deus

Para Mário de Andrade, “Murilo Mendes conseguiu provar com expressão dura, infalível, mesmo genial, que entrando para o Catolicismo, não se entregara ao recurso de uma paz, porém, se dera conscientemente à grandeza de mais uma luta” (ANDRADE, 1946 apud MENDES, 1994, p.34). Luta: expressão certeira, pois a conversão oficial de Murilo Mendes por ocasião da morte do amigo Ismael Nery, longe de se constituir atitude de subserviência aos preceitos de uma religião, passa a configurar-se como meio de denúncia ou de expressão do espírito insatisfeito do poeta.

Nosso ponto de análise nesse percurso é reconhecer de que forma a presença dos elementos religiosos pode representar a temática do choque entre os opostos  aspecto preferencial do Surrealismo75. Aliás, conforme demonstramos anteriormente, a pertinência do binômio Deus-Diabo em A Poesia em Pânico reconhece-se pela intensidade da utilização direta e indireta de vocábulos ligados aos dois mundos antagônicos.

A aproximação entre esses dois pólos76 constitui o próprio drama do

poeta que se vê diante de horizontes divergentes, porém, igualmente, sedutores:

Vejo sempre à minha frente dois estandartes

Túnica negra de Berenice,

75 Ferdinand Alquié reprova a idéia de que o Surrealismo se funda nas forças malditas ou propaga a

inexistência de Deus. Para ele, o Surrealismo “reprocha a la idea de Dios el limitar al hombre, el impedirle marchar a la conquista de la totalidad de sus poderes” E acrescenta: “No hay satanismo en eso, sino confianza humanista”, ou seja, “la rebelión contra Dios ya no es rebelión desesperada contra el Ser, sino rebelión contra las ilusiones que, según Breton, precisamente impiden al hombre llegar a ser” (ALQUIÉ, 1974, p. 63).

76 Em ensaio intitulado “Um narrador Surrealista: Ernest Kreuder”, Anatol Rosenfeld chama a atenção

para a convivência entre “o lugar suréel” e o “andar térreo”  andar superior e andar inferior: “Céu e inferno, as regiões infra e supra-racionais, se reúnem na obra de Kreuder para fazer uma poética frente comum contra a andar térreo da razão e do bom senso” (ROSENFELD, Anatol. Um narrador surrealista: Ernest Kreuder. In: ---. Letras Germânicas. São Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1993, p. 182).

Túnica vermelha da paixão de Deus. Os dois estandartes cruzam-se no ar:77

De um lado, a bandeira de Deus, para onde o poeta se lança e, de outro, a bandeira do demônio:

Ó Deus

Eu nasci para ser decifrado por ti

Com um pé no limbo, o coração na estrela Vênus e a cabeça na Igreja78

A fulguração que me cerca vem do demônio. Maldito das leis inocentes do mundo

Não reconheço a paternidade divina.79

A presença real do demônio É meu pão de vida cotidiano

Minha alma comprime a aleluia gloriosa. 80

Diante dessa possibilidade dobrada é que se acentua a angústia81do

poeta que se vê esmagado pelo monumento do mundo82 e proclama junto aos homens:

Meus irmãos, somos mais unidos pelo pecado do que pela Graça Pertencemos à numerosa comunidade do desespero

Que existirá até a consumação do mundo.83

O poeta, ao reconhecer-se humano  condição que ele rejeita 

confessa:

Maldito das leis inocentes do mundo Não reconheço a paternidade divina

77 MENDES, PP, Os Dois Estandartes, p. 299. 78 MENDES, PP, A Esfinge, p. 291.

79 MENDES, PP, A Danação, p. 286. 80 MENDES, PP, O Impenitente, p. 291.

81 Em capítulo intitulado “Angústia e liberdade”, em Passagem para o Poético, Benedito Nunes

assinala: “Como um existentivo, a alegria é o estar à vontade no meio do ente, dissipado o que há nele de ameaçador. Tão raro quanto a angústia, o verdadeiro sentimento de alegria interrompe a tônica do medo ou do temor que domina o cotidiano”. Tal proposição sobre a alegria se fixa justamente para uma justificativa do temor: “O que se teme é sempre algo intramundano, um perigo a que se está exposto, surdindo de determinada passagem, em sítios tornados infamiliares, em relação nunca se está à vontade. Só um ente em que o ser está em jogo é capaz de atemorizar-se. A facticidade o expõe ao desabrigo do seu ser-no-mundo, de seu aí, e nisso reside o perigo que o torna essencialmente vulnerável” (NUNES, 1992, p.108).

82 MENDES, PP, A Danação, p. 286. 83 MENDES, PP, A Destruição, p. 287.

Eu profanei a hóstia e manchei o corpo da Igreja:84

Eu sou uma moeda que deus deixou rolar no chão.85

Nota-se claramente também a presença daquilo que Merquior (1976) destaca como “antiteodicéia”, ou melhor, o poeta não aceita a religião como forma de submissão ao mal ou justificação dele (NIETZSCHE, 1991).86 Então, a religião

mostra o seu reverso: o que poderia resolver-se de forma apaziguada, paradoxalmente, se dá por meios provocativos. O poeta, portanto, impossibilitado de dizer sim ao mundo pela suas próprias convicções, desafiando a Deus, resolve anunciar o embate:

O que há entre ti e mim, Filho do Altíssimo? O mundo inteiro é tua arena.87

A luta que se trava entre os opositores é severa: de um lado, o homem e sua “condição desumana”; de outro, o Cristo/Deus/Igreja. O primeiro lança as provocações:

Os sentidos em alarme gritam:

O demônio tem mais poder que Deus.88

Hóstias puras,

Inutilmente vos ergueis sobre mim.89

Então, a Igreja se lhe apresenta como Uma Grande Mulher:

A igreja toda em curvas avança para mim,

Enlaçando-me com ternura mas quer me asfixiar. Com um braço me indica o seio e o paraíso,

Com outro braço me convoca para o inferno. Ela segura o Livro, ordena e fala:

Suas palavras são chicotadas para mim, rebelde. 90

84 MENDES, PP, A Danação, p. 286 85 MENDES, PP, O Átomo, p. 303.

86 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: ensaio de uma crítica do cristianismo. In: Obras

incompletas. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural. Coleção os Pensadores, 1991, p. 125-141. v. 2

87 MENDES, PP, A Destruição, p. 287. 88 MENDES, PP, O Exilado, p. 286. 89 MENDES, PP, O Impenitente, p. 286. 90 MENDES, PP, Igreja Mulher, p. 303.

Mas o poeta prefere a cruel e necessária Berenice, com a qual comunga no corpo e no sangue. Ele reconhece a força divina, mas ainda assim, desafia:

Até quando deverei opor a minha nudez Ao mistério da Tua insaciabilidade?

Nada tenho para Te oferecer, senão os crimes de outrem.91

Deus tenta o resgate, mas o poeta, cansado, entrega-se:

Apontai-me para meu corpo, altar do sacrifício, Para minha cabeça, que guarda todas as imagens, Para meu coração ansioso de se consumir em outros. Ó filhos transviados do mesmo Pai celeste,

Aqui estou eu... perdôo a todos e não me perdôo. Queimai-me.92

Então perguntamos: quem será o grande derrotado nesse diálogo entre o

Criador e o Destruidor?93 Não há vencedor ou vencido. Há um estado de embate

permanente.94 Há a eterna questão esfíngica do verbo interrogativo, enquanto a

platéia  que prefere a inquietação da luta à placidez da vitória ou derrota  assiste ao árduo combate nos arredores do grande círculo.

A poética de Murilo Mendes é palco dessa luta dupla: a que se trava entre os termos dissonantes que, pelas vias do insólito, provocam as aproximações absurdas e inaceitáveis pela lógica do consciente, em detrimento dos corriqueiros efeitos da linguagem; e a luta mais difícil  a que dispõe o homem frente a frente aos inimigos mais ocultos: a angústia, o medo, a morte. Ambas são determinadas pelo choque entre o oprimido que, em desacordo às imposições do seu inimigo opressor, decide enfrentá-lo em defesa da própria liberdade.

91 MENDES, PP, A Casa dos Átridas, p. 295. 92 MENDES, PP, O Resgate, p. 297.

93 Percebamos a ironia presente não apenas no termo “diálogo”, mas também em “Criador e

Destruidor”, expressão que desorganiza o par bíblico “Criador” e “Criatura”.

94 Flora Susseking, aproximando Murilo Mendes a T.S.Eliot, chama a atenção para as relações entre

tempo, mudança e permanência: “para que se possa superar o transitório, é preciso superar as oposições fim/começo, juventude/velhice, construção/destruição. Isso por que, se no plano terreno estas oposições se delineiam claramente, no Eterno se apagam” (SUSSEKING, Flora. Murilo

É desta forma que Murilo, este “cristão ecumenicamente interrogador” 

para fazer valer a aplicadíssima expressão de Josué Montello (2001, p.7)95 ,

anuncia o caráter explosivo de sua poesia, conforme registramos no título deste capítulo, “a vida nos oferece em seu curso as emoções mais opostas emoções necessariamente opostas, pois de outra maneira não teríamos relações construtivas”.96

Mendes: Um bom exemplo na história. In: Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v.8, n. 7, p. 147-169, Jan. 1979).

95 MONTELO, Josué. Pretexto para louvar Murilo Mendes. Revista Brasileira. Fase 7, out./nov./dez.,

2001, v. 8, n.29, p. 7.

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DUPLO: A INQUIETANTE ESTRANHEZA

Encorajamento ao estudo da Fisiologia Ismael Nery

Aquarela, 31 x 22 cm

Sinto terror de mim, mais que do mundo. Que matéria me ergueu, que astro mau? Que força de beleza, unida à morte, Em seus braços de raio me constringe? ... Vejo-me estranho a mim, à minha voz, Ao meu silêncio, ao meu andar e gesto. Que espera o Fogo pra me esclarecer? Que espera o Fogo pra me refundir?