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POESIA: JOGO DO ESCONDE, ENIGMA DO AMOR

6 POESIA: A BUSCA PELO OUTRO SENTIDO

6.2 POESIA: JOGO DO ESCONDE, ENIGMA DO AMOR

La poesia es el lugar de nuestra libertad y nos permite conferir a todas las cosas la forma de nuestros deseos. Ferdinand Alquié, Filosofia del Surrealismo

A palavra no Surrealismo flutua solta, sem as amarras do universo hermético do sistema lingüístico que visa apenas à parcial intenção de comunicar. A palavra no Surrealismo, tal qual se pretende em qualquer discurso poético, admite todas as formas de respostas possíveis. As experiências com o automatismo deram à palavra novas dobras, possibilidades outras de aproximações já experimentadas pelas fórmulas simbolistas. A poesia surrealista é a soma do duplo desejo de liberdade: o primeiro pela transgressão ao discurso racionalista e o segundo porque só o fazer-poético, em sua posição imparcial, garante a verbalização das expressões inefáveis. Só a poesia, em suas lacunas intermitentes, pode desviar o olhar vigilante da consciência.

É nesse interregno que liga o verbo e o silêncio que está localizado o dizer oculto, a palavra essencial, que se vê encarcerada, até que o poeta, gênio involuntário, possa libertá-la dos jugos da ordem consciente: Eu sou teu anunciador

desde os tempos remotos. / Se eu não te vir ninguém te verá – eu te aponto.164

A palavra, portanto, é a fêmina, na medida em que transfigurada nessa presença feminina é também sedução, complemento, laço enigmático:

Jamais conseguirás te libertar de mim Porque eu te sitiei com a chama do amor,

Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus A fim de extrair dele o segredo da ternura.165

Nestes versos, o eu-lírico sabe que a ternura de Deus está representada

na mulher e por isso ele não desistirá dessa perseguição: Eu te perseguirei até

164 MENDES, PP, Evocação, p. 290. 165 MENDES, PP, A uma Mulher, p. 302.

depois da minha morte. A mulher é o elemento fecundo, produtor do alimento que

deve nutrir o poeta: E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.166

Esta nostalgia é que deve garantir a eterna procura da outra metade, a busca do grande segredo tornado mistério. O poema “Enigma do Amor” é a expressão clara da fusão entre a mulher e a poesia. Não seria demais transcrevê-lo completo aqui, pois cada linha representa o discurso reiterado dessa intersecção:

Enigma do Amor

Olho-te fixamente para que permaneças em mim. Toda esta ternura é feita de elementos opostos Que eu concilio na síntese da poesia.

O conhecimento que tenho de ti É um dos meus complexos castigos. Adivinho através do véu que te cobre O canto do amor sufocado,

O choque ante a palavra divina, a antecipação da morte. Minha nostalgia do infinito cresce

Na razão direita do afastamento em que estou do teu corpo.167

Formado por três estrofes, o poema é também um grande enigma. O centro tripartite evoca totalidade, inclusão, combinação necessária que se faz por meio da sedução. O olhar, uma das ligações mais profundas entre as pessoas, é a primeira arma de sedução, a primeira palavra do primeiro verso. O olhar fixo prende, captura o instante na deliciosa sensação de infinito. É o olhar que melhor demonstra a ternura que envolve os opostos “síntese da poesia”.

O poeta, gênio feiticeiro, sabe que pode ver além, que detém o

conhecimento sobre as coisas e os seres, mas reconhece que esta “pré-visão”

missão prometeica  está conjunta com o pleno castigo que o torna acorrentado:

Adivinho através do véu que te cobre / o canto do amor sufocado.168 Ele entrevê, no

véu das palavras, a mensagem latente: o canto do amor sufocado, que ao ser libertado, permitirá ao homem a plena felicidade. Essa possibilidade anularia de vez

166 MENDES, PP, A uma Mulher, p. 303. 167 MENDES, PP, p. 303.

a proposta cristã da “terra prometida”, gerando, assim, o choque entre os dois mundos: o divino e o humano.

Segundo Ferdinand Alquié, “el problema del descubrimiento de la felicidad humana en esta vida, y por la única modificación de nuestra actitud hacia ella, es un problema que ha ignorado toda la era cristiana, porque el cristianismo sólo considera posible la felicidad en el orden sobrenatural” (ALQUIÉ, 1974, p.27). Ou seja, apesar dos limites do humano, a felicidade plena pode ser alcançada ainda no mundo terreno. O cristianismo, em oposição a essa idéia, faz o homem acreditar que a almejada felicidade, também condicionada aos atos realizados na terra, só é possível em outra esfera.

Ao decifrar o enigma do amor  que também é morte , o poeta prefere alimentar-se apenas da nostalgia do infinito que cresce com a distância entre os corpos. A incerteza da completude ou a união dos amantes é que alimenta a eterna esperança, que se fundamenta no jogo do velar ou do re-velar. Em outras palavras, sabendo que a lassidão é uma forma de morte, prefere o poeta o “afastamento dos corpos” e, conseqüentemente, o infinito desejo do encontro primordial. Um outro poema confirma esse desejo: Vem, abraça-me; procuraremos até o fim a inatingível

unidade.169

Tais armadilhas do desejo, anunciadas pelo discurso surrealista, nada mais são do que “exigências do espírito”. Segundo Breton, “todas essas imagens parecem testemunhar que o espírito está amadurecido para outra coisa que não sejam as inocentes alegrias que em geral ele se proporciona” (BRETON, 2004, p.180) Sempre haverá algo a ser perseguido, caso contrário, a vida do homem perderia todo sentido. E é justamente essa falta gerada pela inquietante procura que o angustia e, ao mesmo tempo, o impele para novas conquistas, outros sonhos, desejo de eternidade.

Eternidade? Sim. É nesse propósito que a palavra, então, transfigura-se em pedra, porque sendo pedra pode fixar-se fora do tempo para instituir-se como

discurso perene. O poeta sabe que, em desafio à morte, os fantasmas renascem

estátuas de metal e de pedra.170 E por isso acrescenta: Preciso me revestir da

estabilidade da pedra.171 Talvez seja a mesma pedra que batiza Pedro em sua

milagrosa missão de fundar a Igreja de Cristo, função para a qual Pedro se lança à sua maior pescaria. Isto mesmo: é pela pedra fundadora que se pode, enfim, alcançar os homens.

Mas à solidez da pedra opõe-se a variabilidade das águas que, ora turvas, ora claras, também se perturbam em altas ondas: o Poeta/Prometeu, acorrentado ao rochedo frente às revoltas águas do castigo divino, declara: Vejo

somente a água, a pedra fixa / Que me transportam ao princípio do tempo.172 A

palavra, em seu poder de regeneração, posto que também á água, assume igualmente o suposto desejo de eternidade.

Só a Poesia, como lugar de plena liberdade, permite ao homem equilibrar-se diante de todos os conflitos que se lhes apresentam. Para o “Discípulo de Emaús”, Todas as contradições se resolvem no espírito do poeta. O poeta é ao

mesmo tempo um ser simples e complicado, humilde e orgulhoso, casto e sensual, equilibrado e louco. O poeta não tem imaginação. É absolutamente realista.173 O

poeta é realista porque não tem nada a esconder. E, por isso mesmo, não hesita em proclamar o pânico na poesia, porque sabe que muito custa ao homem a angústia de escolher, entre dois atraentes opostos, apenas um que o satisfaça completamente.

Eis o grande mistério: a poesia como o jogo do esconde é o enigma do amor, transmutado na bela e sedutora dama: E és também quem sabe a anti- mulher, a que se nega sempre, desde o princípio dos tempos, ao poeta, para que ele possa desejá-la eternamente e nunca desmanche o Ideal.174

170 MENDES, PP, O Homem Visível, p. 288. 171 MENDES, PP, Viver Morrendo, p. 302. 172 MENDES, PP, A uma Mulher, p. 303.

173 MENDES, O Discíulo de Emaús, Aforismo 202, 834. 174 MENDES, O Sinal de Deus, Regina, p. 749.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Depois de mim nascerão outras crianças sozinhas que encararão com má vontade o professor esfinge. Depois de mim

crescerão outros adolescentes renegando o trabalho para descobrirem o amor. Depois de mim existirão outros tédios, outras insatisfações, outras anarquias. Depois de mim devem surgir outros poetas sacrificando o bem-estar e a comodidade para procurar a essência da vida. Depois de mim vibrarão outros gritos terríveis diante dos limites do homem. Depois de mim hão de se levantar outros túmulos com a grande mulher de pedra apontando para o deserto. Depois de mim voltará o cometa de Halley que anunciará e iluminará o nascimento, a morte e a ressurreição de outros poetas.