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SURREALISMO, BARROCO, CATOLICISMO : VOZES DE MESMO

3 EMOÇÕES OPOSTAS, RELAÇÕES CONSTRUTIVAS

3.1 SURREALISMO, BARROCO, CATOLICISMO : VOZES DE MESMO

Não venho esta noite vencer-te o corpo, ó fera, Onde os pecados de um povo se acumulam, ...

Que tu podes fruir após negras mentiras Tu que sobre o nada bem mais sabes que os mortos Pálido, vencido, assombrado p’lo sudário, Fujo, temendo morrer se me deito só. Mallarmé, Angústia

Não se pode negar que a religiosidade  pedra de toque na poética de Murilo Mendes  é a grande gerenciadora dos conflitos mais internos do poeta, sobre o que expõe Murilo Marcondes de Moura:

Ao longo da década de 30, novos problemas surgiram na poesia do autor, particularmente após sua conversão ao cristianismo em 1934, cujo resultado imediato foi Tempo e Eternidade, o livro mais unilateral e, por isso mesmo, o menos interessante de toda a sua obra. A religião, por outro lado, não veio apaziguar os conflitos do poeta e passou a representar, já a partir dos livros seguintes  Os quatro elementos (1935) e A Poesia em Pânico (1936-1937) , uma outra possibilidade de totalização do sentido da vida (MOURA, 1990, p.72).72

Não é nossa primeira intenção perseguir as origens do aspecto religioso em Murilo Mendes. Além disso, seria demasiado perigoso justificá-las por um ou outro fato biográfico isolado que se acuse suficiente para tal.73 Entretanto, força-nos

este caminho, demarcado pela pertinência das imagens antagônicas, a considerar dois aspectos importantes referentes a essa temática: primeiro, a “antiteodicéia”, que contrapõe o divino e o humano  recorrência barroca, assinalada pelos pares antitéticos mais representativos da imposição divina versus condição humana e pelos eternos paradoxos e oxímoros acusadores da patente aproximação entre os temas aparentemente contraditórios; segundo, o gesto dionisíaco que aponta um

72 MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes no início dos nos 30. In: Revista do Brasil: A

Poesia em 1930. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, v. 5. n. 11, 1990, p 72.

73 A morte de Ismael Nery em 06 de abril de 1934 é um dos fatos cogitados para a conversão de

total “desregramento dos sentidos” ou desrespeito pelas leis divinas que condenam toda sorte de manifestação da libido.74

Em sua defesa do aspecto barroquizante na obra muriliana, observa Laís Corrêa Araújo:

O movimento dialético continua a ser a sustentação dessa poesia em que as “afinidades eletivas” de Murilo Mendes se mostram com evidência: o labirinto barroco no qual uma imagem ou palavra se enovela sobre a própria cauda e gera outras imagens, que por sua vez se enovelam e suscitam a nossa visibilidade no caos (ARAÚJO, 2000, p.92).

Para Joana Matos Frias, foi justamente esse “formante nuclear de estirpe barroca ou maneirista” o responsável pelo “universo em constante expansão que desde muito cedo [Murilo] designou como surrealista (FRIAS, 2002, p.65). É preciso salientar, pois, a estreita relação do Surrealismo com a religião, como afirma José Guilherme Merquior, em suas Notas para uma Muriloscopia: “o projeto surreal não era, em substância, estético, mas sim de cunho, antes de tudo existencial. Por isso, seu espírito se deixa entender melhor quando cotejado com as manifestações simbólicas das grandes religiões, não com estilos artísticos no sentido formal” (MERQUIOR apud MENDES, 1994, p.12).

Em ensaio dedicado ao Barroco, Benedito Nunes ressalta a aproximação das artes ao plano de fundo filosófico:

Trata-se de uma afinidade contraída em torno da “experiência da infinitude”, associada ao pathos, às vezes trágico, do logro da vida, do caráter ilusório do mundo sensível e da existência terrena, que tanto se exterioriza na linguagem, no discurso da filosofia, no seu sistema de imagens, quanto na criação artística (NUNES, 1993, p.121).

E referindo-se ao pensamento cartesiano, conclui:

Na origem do livre-arbítrio, da liberdade, assente na vontade, estaria, portanto, o Nada, contraparte do Infinito [...].

74 Consideremos esta afirmação de Merquior: “É preciso compreender a religiosidade muriliana em

seu rosto ambivalente e em seu coração dilacerado de contrários” (Cf. MERQUIOR, José Guilherme.

Foi a trágica fragilidade da sorte e do destino humanos e a vulnerabilidade do conhecimento, sujeito ao logro do mundo, em que o sobressalto metafísico e o temor do religioso se misturam [...] (NUNES, 1993, p. 121-122).

Ou melhor, o espírito barroco e a “liberdade despotenciada” em face do drama da “constituição terrena” é o grande propulsor da mescla entre os discursos que associa filosofia, religião, literatura, artes plásticas, etc. (NUNES, 1993).

Vale lembrar ainda que, pelas palavras de Murilo, catolicismo e Surrealismo são vozes de mesmo timbre, ou seja, ambos fazem ecoar o mesmo grito libertário:

O catolicismo era sinônimo de obscurantismo, servindo só para base de reação. Não era possível, sobretudo a uma pessoa de bom gosto, ser católica. Nós todos éramos delirantemente modernos, queríamos fazer tábua rasa dos antigos processos de pensamento e instalar também uma espécie de nova ética anarquista (pois de comunistas só possuíamos a aversão ao espírito burguês e uma vaga idéia de que uma nova sociedade, a proletária, estava nascendo). Nessa indecisão de valores, é claro que saudamos o Surrealismo como o evangelho da nova era, a ponte da libertação (MENDES apud GUIMARÃES, 1993, p.25).

Não poderia, dessa forma, ser o catolicismo de Murilo uma predisposição à passividade ou subserviência aos preceitos de determinada instituição. Como o próprio poeta enfatiza, não se trata de ser católico ou não, mas de que forma o pensamento católico teria aguçado a sua vontade de “reação” e, pergunta-se: reação a que ou a quem? Em que pontos o catolicismo de Ismael Nery teria acendido ainda mais as chamas do verbo anárquico de Murilo? Certamente que tais discussões acerca desse aspecto não tocam os objetivos desta pesquisa, apesar de estarem essas questões intimamente ligadas à inegável presença do Surrealismo na poética muriliana.