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A poesia lírica de Bocage

No documento Guia Prático da Língua Portuguesa (páginas 52-55)

Bocage, ou Elmano Sadino, culti- vou a lírica bucólica e amorosa, através de suas odes, elegias, canções, epís- tolas e sonetos. Influenciado por Ca- mões, podemos encontrar em seus so- netos traços do artista clássico, além de traços pessoais do próprio Bocage, através de uma linguagem mais prosai- ca e até mesmo coloquial.

Soneto

Camões, grande Camões, quão [semelhante Acho teu fado ao meu, quando

[os cotejo Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, Arrostar co’o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges [sussurrante, Da penúria cruel no horror me vejo; Como tu, gostos vãos, que em

[vão desejo, Também carpindo estou,

[saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura Meu fim demando ao Céu,

[pela certeza De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!... Se te imito nos transes da Ventura, Não te imito nos dons da Natureza.

BOCAGE, M. M. Barbosa. Sonetos. Lisboa: Bertland, s d. p. 207.

Neste soneto o poeta faz um para- lelo de sua vida com a do poeta Camões. A poesia lírica de Bocage é dividi- da em:

Lírica Arcádica ou da 1ª Fase – en-

contramos a presença de regras e convenções trazidas pelo Arcadismo. O poeta adota uma atitude de artificia- lismo poético, dotando sua poesia de imagens mitológicas e clássicas. Procu- ra utilizar o racionalismo, porém, a sua sensibilidade o levou a uma expressão mais emotiva, pessoal e sincera.

O artista demonstra o seu “eu” tur- bulento em reação à impessoalidade e o fingimento da poesia árcade.

Sonetos

Incultas produções da mocidade Exponho a vossos olhos, ó leitores: Vêde-as com mágoa, vêde-as

[com piedade, Que elas buscam piedade,

[e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lágrimas e

[amôres; Notai dos males seus a imensidade, A curta duração dos seus favores:

E se entre versos mil de sentimento

Encontrardes alguns, cuja aparência Indique festival contentamento,

Crêde, ó mortais, que foram com [violência Escritos pela mão do Fingimento, Cantados pela voz da Dependência.

Lusos heróis, cadáveres cediços, Erguei-vos dentre o pó, sombras

[honradas, Surgi, vinde exercer as mãos

[mirradas Nestes vis, nestes cães, nestes

[mestiços.

Vinde salvar destes pardais [castiços As searas de arroz, por vós

[ganhadas; Mas ah! Poupai-lhe as filhas

[delicadas, Que elas culpa não têm, têm mil

[feitiços.

De pavor ante vós no chão se deite Tanto fusco rajá, tanto nababo, E as vossas ordens, trémulo,

[respeite.

Vão para as várzeas, leve-os o [Diabo; Andem como os avós, sem mais

[enfeite Que o langotim, diâmetro do rabo.

M. M. B. Sonetos in Moisés, Massaud. A Literatura

Portuguesa através dos textos. 9. ed. São Paulo: Cultrix,

Lírica Pré-Romântica ou da 2ª Fa- se – em seus poemas, encontramos

um reflexo de si mesmo. Destaca-se o lado psicológico, através do sentimento e da personalidade do autor, gerando um gosto pelo noturno, por formas ma- cabras e tendo a morte como única so- lução para os seus problemas:

“Ó retrato da Morte, ó Morte amiga Por cuja escuridão suspiro há tanto!”

O artista se opõe totalmente à de- pendência e ao despotismo, em nome da Razão.

Em seus poemas, encontramos o cultivo a uma vida fúnebre e noturna, exprimindo sentimentos negativos como o ciúme, a blasfêmia e a contrição, ge- rados pelo abandono, além de uma lin- guagem pessimista e fatalista:

Sonetos

Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me

[arrastava: Ah! Cego eu cria, ah! mísero

[eu sonhava Em mim quase imortal a

[essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava! Mas eis sucumbe Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua

[origem dana.

Prazeres, sócios meus, e [meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si [não coube, No abismo vos sumiu dos

[desenganos;

Deus, oh Deus!... Quando a morte [à luz me roube Ganhe um momento o que

[perderam anos, Saiba morrer o que viver

[não soube.

BOCAGE, M. M. Barbosa. Sonetos. Lisboa, Bertland, s d . p. 67.

Este soneto foi composto momen- tos antes da morte de Bocage.

Ó retrato da morte! Ó Noite amiga, Por cuja escuridão suspiro há

[tanto! Calada testemunha de meu pranto, De meus desgostos secretária

[antiga!

Pois manda Amor que a ti somente [os diga Dá-lhes pio agasalho no teu manto; Ouve-os, como costumas, ouve,

[enquanto Dorme a cruel que a delirar me

[obriga.

E vós, ó cortesãos da escuridade, Fantasmas vagos, mochos

[piadores, Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus [clamores;

Quero a vossa medonha

[sociedade, Quero fartar meu coração de

[horrores. Bocage procura fazer uma auto-aná- lise e disso encontramos traços vivos em sua poesia: confissões, arrependimen- tos, tensão dramática, sofrimento, luta entre a Razão e o Sentimento, a cabeça e o coração:

“Razão, de que me serve [o teu socorro? Mandas-me amar, eu ardo, eu amo; Dizes-me que sossegue, eu penso, [eu morro.” Observando-se estes dois períodos da poesia lírica de Bocage, podemos di- zer que a 1ª fase do artista é mais volta- da ao seu lado emotivo, refletindo uma fase romântica de sua vida, quando co- nheceu seu grande amor, Gertrudes.

A 2ª fase, no entanto, por sua lingua- gem e expressão mais negativa, reflete a sua nova vida, quando descobriu que sua amada casou-se com o seu irmão; e a par- tir daí, passou a levar uma vida errante e boêmia:

Eu deliro, Gertrúria, eu desespero No inferno de suspeitas e temores. Eu da morte as angústias e

[os horrores Por mil vezes sem morrer tolero.

Pelo Céu, por teus olhos

[te assevero.

Que ferve esta alma em

[cândidos amores; Longe o prazer de ilícitos favores! Quero o teu coração, mais nada quero.

Ah! Não sejas também qual comigo A cega divindade, a Sorte dura, A vária Deusa, que me nega abrigo!

Tudo perdi: mais valha-me a ternura Amor me valha, e pague-me contigo Os roubos que me fez a má ventura.

BOCAGE, M. M. B. Sonetos. Lisboa: Bertland, s. d., p. 67

Gertrúria = pseudônimo de Gertru- des, o verdadeiro amor do poeta, que se casou com seu próprio irmão, Gil Fran- cisco Barbosa du Bocage.

No documento Guia Prático da Língua Portuguesa (páginas 52-55)