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CAPÍTULO 2 PROCESSOS MIGRATÓRIOS INTERNACIONAIS: A POLÍTICA, O

2.1 A Política Municipal para a População Imigrante

Em um dos encontros do grupo de pesquisa “Processos Migratórios Internacionais e Saúde: perspectivas interdisciplinares”, no dia 24 de agosto de 2016, foi apresentado pela coordenadora técnica da área de saúde dos imigrantes e refugiados da Secretaria Municipal de Saúde o processo de implementação da política pública de saúde municipal para essa população.

Estavam presentes pesquisadores da área de imigração de diferentes instituições, professores, duas consultoras da Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS, uma professora, psicóloga e psicanalista, que atua com imigração e saúde mental, uma socióloga colombiana, que estuda o impacto da religião na vida de mulheres com HIV/Aids, uma geógrafa que estuda população boliviana no bairro do Bom Retiro, uma antropóloga que pesquisa na área da Atenção Básica e professores do departamento de saúde coletiva da Santa Casa.

Considero importante mencionar este encontro, pois foi o meu primeiro contato com o modo como estava sendo organizada a política de atenção em saúde para a população de imigrantes e refugiados no município de São Paulo. A premissa de que os imigrantes são, antes de tudo, cidadãos de direitos e devem poder se comunicar, circular pela cidade, ser cuidados e ter um cotidiano com menos dificuldades permeou as discussões.

No seminário, foi mencionada a importância de capacitar os diferentes serviços de saúde para assistência e acompanhamento dos imigrantes e refugiados em São Paulo, em vez de criar um serviço específico para essa população. Foi apontada também a necessidade de reafirmar os princípios da universalidade e da equidade do SUS, garantindo o atendimento dos imigrantes nas suas necessidades específicas, nos serviços de saúde existentes na rede.

Explicou-se durante o seminário que a metodologia de trabalho envolveu encontros entre trabalhadores de saúde e imigrantes, por meio do método das “rodas de conversa”. Estas representam “um modo crítico de pensar os papéis socialmente construídos, transversalizados pelas histórias e desiguais relações de classe, de gênero e de etnia” (SAMPAIO et.al, 2014, p.1299). Na área da saúde, trata-se de uma

estratégia engajada nas possibilidades de transformação dos discursos e práticas relacionados a um tema específico, podendo gerar mudanças nas ações de saúde.

As rodas foram realizadas em 64 Unidades Básicas de Saúde do município de São Paulo. Nelas, “facilitadores” imigrantes de diferentes países traziam algumas noções de saúde e de adoecimento dos países de origem e as impressões sobre a relação deles com o SUS. A coordenadora mencionou que esses encontros têm gerado debates para além das questões da migração, sobre temas como a melhoria do acolhimento no SUS, a diversidade cultural, entre outros. E disse que esse processo faz parte da proposta de educação permanente em saúde voltada a essa população. A educação permanente sendo caracterizada como uma:

“prática de ensino-aprendizagem”, que significa a produção de conhecimentos no cotidiano das instituições de saúde, a partir da realidade vivida pelos atores envolvidos, tendo os problemas enfrentados no dia-a-dia do trabalho e as experiências desses atores como base de interrogação e mudança (PEREIRA; LIMA, 2009).6 As instituições ligadas a esse processo são a escola de formação do SUS, a Coordenação de Vigilância em Saúde (COVISA) e o Departamento de Atenção Básica de São Paulo. A contribuição das propostas de educação permanente em saúde está na reflexão dos profissionais sobre o trabalho no SUS, os efeitos dos processos de trabalho sobre a assistência aos usuários e a maneira como podem melhorar a qualidade do encontro trabalhador-usuário.

Aindaem relação às “rodas de conversa”, tive a oportunidade de participar de uma delas a convite desta coordenadora mencionada. A roda foi gravada ao vivo e exibida no Canal Profissional da TV Saúde, no dia 9 de novembro de 2016, na Escola Municipal de Saúde, em São Paulo. E está disponível no Canal Profissional da TV Saúde, no Youtube.

2.1.1 Dia de Roda

No dia da gravação, encontro a coordenadora já com o grupo de imigrantes que vão participar da roda: uma boliviana, uma mulher da Guiné-Bissau, um homem do Haiti, outro da Palestina e um senhor boliviano. Eles conversam entre si. O assunto chega até Donald Trump como possível presidente dos EUA. A boliviana diz que não

6 Disponível em http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/edupersau.html (acesso em

há candidato bom, mas acha que pode acontecer uma virada com a chegada de Trump no poder, como um “choque de realidade”. Ela comenta o discurso de Trump durante a campanha não foi novidade, pois acha que muitos americanos pensam como ele. Acredita que as pessoas lá sempre pensaram assim. A diferença, para ela, é que agora estão explicitando a xenofobia, o racismo e o preconceito. Ela diz que os americanos são racistas. O haitiano comenta que Trump fechará a porta para os imigrantes. Lembra o comentário de Obama sobre mandarem os afro-americanos de volta para a África. De modo geral, falamos sobre a onda de conservadorismo político no mundo.

No segundo momento, os imigrantes participantes se posicionam frente à câmera, parecem animados. Importante destacar que, dos imigrantes convidados a falar no programa, pelo menos três tinham formação superior no país de origem e alguns eram ligados a instituições de atuação política. Foi perceptível a proximidade que a coordenadora tinha com os participantes. Ela ficou o tempo todo à frente, orientando-os, conversando, em alguns momentos de forma bem descontraída. Todos os participantes seguravam um papel que parecia ter algumas respostas para as perguntas que seriam realizadas ao longo do programa.

Iniciada a filmagem, foi apresentado o tema do dia: “Diferenças Culturais e Sistemas de Saúde”. Cada imigrante pôde falar brevemente de suas referências culturais, suas impressões sobre o Brasil e sobre os brasileiros. A mulher boliviana fala sobre sua sensação de que no Brasil (contexto do SUS) predomina a prática da biomedicina. Ela conta que estranhou isso aqui, pois na Bolívia ainda são fortes os saberes e crenças indígenas, baseados na medicina tradicional desses povos. Ela diz que lá existem 37 nações originárias. Ressalta ainda que medicina tradicional não é só tomar chá e usar ervas, mas está ligada a uma cosmovisão, à crença de uma ligação com a terra, com a espiritualidade.

Em relação ao sistema de saúde da Bolívia, ela diz que há uma diferença na comparação com o Brasil ligada à questão tributária, de arrecadação de impostos. Aqui no Brasil, segundo ela, arrecada-se mais do que lá, o que garantiria mais recursos para investir em áreas como a saúde. Na Bolívia, não há tanto recurso. Ela afirma também que o sistema boliviano é público para populações específicas, como menores de 5 anos, idosos, “descapacitados” (termo dela) e mulheres grávidas. E que isso influencia, segundo ela, o modo como os bolivianos cuidam de si: utilizam os chás, as ervas, a medicina tradicional. Se não melhoram e ficam muito doentes,

recorrem ao médico, afirma. Ao final de sua fala, ela reforça que as diferenças culturais deveriam ser vistas não como um problema, mas como possibilidade de aprender sobre outras culturas e agregar conhecimento.

Pareceu-me fundamental ouvir os imigrantes e tê-los como participantes na construção de uma política voltada para eles, não só para que essa política esteja ligada ao que necessitam, mas também para que possa oferecer mudanças nos diferentes espaços por onde esses imigrantes circulam e não só nos serviços de saúde.

A Política Municipal para a População Imigrante foi construída a partir de audiências públicas e do apoio de diferentes gestores. Na área da saúde, sua implementação tem acontecido por meio da sensibilização dos profissionais de saúde e de outros atores que atuam com essa população para as questões relativas às diferenças culturais entre nós, brasileiros, e os imigrantes que aqui chegam, aos sistemas de saúde dos diferentes países e ao processo migratório de modo geral.

Steffens e Martins (2016), ao examinarem esta Política, destacaram alguns pontos relativos à saúde que se tornaram prioridade, como “a realização anual de um curso de saúde da população imigrante” (STEFFENS e MARTINS, 2016, p.288) voltado para assistentes de gestão de políticas públicas.

O tema saúde do imigrante e do refugiado foi, pela primeira vez, incluído na Programação Anual de Saúde em 2016. Dentre as metas, estão a contratação e capacitação de profissionais, incluindo a possibilidade de estes serem imigrantes, o que facilitaria a comunicação e maior sensibilidade para lidar com as diferentes línguas e culturas. A experiência de contratação de ACS bolivianos nos bairros da Barra Funda e do Bom Retiro serviram como exemplo. Persiste, no entanto, a necessidade de se formar uma rede de apoio, com a promoção de fóruns de trocas de experiências e captação de recursos (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2016, p.27). A Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig), criada em 2013, por ser vinculada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos (SMDHC), possui “uma abordagem à questão migratória calcada nos direitos humanos dos imigrantes” (STEFFENS; MARTINS, 2016). O objetivo da CPMig é articular as políticas públicas migratórias no município de forma transversal, intersetorial e intersecretarial, uma proposta pioneira na cidade e no país.

Levando isso em conta, lembro-me de uma pauta que me chamou muito a atenção, ao participar de uma audiência pública (antes da existência da Política), e

que tinha relação com o preconceito e o racismo que afetam de maneiras variadas os imigrantes de diferentes nacionalidades. O reconhecimento das questões culturais relacionadas à saúde foi algo que apareceu na audiência e se tornou parte do texto da Política. Por exemplo: a “promoção do parto humanizado e intercultural”, respeitando os desejos da mulher e suas culturas de origem. (STEFFENS e MARTINS, 2016)

A partir da breve apresentação de alguns aspectos desta Política, das temáticas mais relevantes e da sua efetivação em processo, outro ponto que acredito merecer destaque é a questão do trabalho. Trata-se de uma demanda comum à maioria dos migrantes e refugiados, que chegam à cidade e precisam garantir sua sobrevivência. Essa questão está contemplada na minha experiência de uma manhã na Feira da Madrugada e nas entrevistas realizadas com os profissionais que estão envolvidos com os imigrantes.