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CAPÍTULO 2 PROCESSOS MIGRATÓRIOS INTERNACIONAIS: A POLÍTICA, O

2.2. A história de Shaya – usuária do SUS e trabalhadora imigrante

2.2.1 A ACS brasileira da ESF

Esta foi uma das primeiras profissionais da equipe que tive contato no CSEBF, na primeira reunião onde nos apresentamos como pesquisadores do estudo sobre a tuberculose entre os imigrantes sul-americanos. Desde lá, sempre mantivemos contato e ela se colocou sempre à disposição quando eu tinha alguma dúvida em relação ao modo de organização do serviço, às atividades realizadas, entre outras questões e curiosidades.

Ela está no serviço desde novembro de 2001. Acompanhou o processo de implementação do Programa Saúde da Família no CSEBF. Conta que sempre morou na Barra Funda. No início da entrevista ela diz que trabalhar na saúde era um desejo seu e não sentiu tanta dificuldade porque, como testemunha de Jeová, já fazia o trabalho de ir até a casa das pessoas. A diferença é que levava saúde espiritual e depois passou a levar saúde física e mental.

Antes de ser contratada como ACS, ela já tinha contato com os imigrantes bolivianos e bolivianas do bairro. Quando começa a trabalhar, diz que foi difícil o acesso a eles, principalmente por causa da língua. Com relação ao direito à saúde, ela diz:

Eles achavam que era só para os brasileiros e que eles, por serem ilegais, não tinham esse direito. (entrevista ACS brasileira)

Ela considera que houve mudanças desde quando eles começaram a entender que tinham direitos. Hoje a relação com o serviço é diferente.

Eles se abrem pra gente, eles conversam, eles procuram, eles pedem ajuda.

Foi fundamental para o acesso deles aqui. Porque se não eu nem imagino como seria...a transmissão de doenças, principalmente a tuberculose. (entrevista ACS brasileira)

As suas primeiras impressões sobre essa população, antes de trabalhar na saúde, trazem uma perspectiva de quem estava perto. Ela diz:

Eles trabalhavam muuuuito fechado, você não via nada aberto, nada! Eles tinham medo do barulho, de incomodar os vizinhos, de serem deportados, de chamarem a polícia...então eles trabalhavam muito assim...naquele tempo, mesmo aqui na Barra Funda tinha muito trabalho escravo, aqueles que trabalhavam de manhã cedinho até altas horas da noite. (entrevista ACS brasileira)

E continua:

A gente via (os bolivianos) nos encontros, na rua. Só os que estavam mais próximos da minha casa que eu conseguia até ver...mas tinha lugares aqui alugados que eram oficina, que a gente nem sabia.(entrevista ACS brasileira)

O lugar da quase invisibilidade dessa população para os brasileiros, até mesmo para aqueles que residem no mesmo bairro, fica evidente pela sua fala. Cymbalista e Xavier (2007) associam a isso o fato de tratar-se de um grupo praticamente ausente nas estatísticas públicas. Eles apontam as oficinas de costura como um espaço de “privacidade coletiva” (CYMBALISTA e XAVIER, 2007, p.119) e sinalizam para a internalização da comunidade, com hipertrofia no local de trabalho, o que determinaria a invisibilidade do grupo e a pouca utilização, por parte dele, de equipamentos públicos, do comércio e dos serviços. Contudo, este cenário parece estar bem diferente hoje.

A entrevistada ressalta a importância do PSF para a garantia do acesso e para o conhecimento da existência dessa população:

A gente nem ia saber que tem (as oficinas) e eles nem iam saber que poderiam ter acesso aqui. (entrevista ACS brasileira)

Em relação às suas primeiras impressões sobre as oficinas de costura-moradia, ela diz:

Era difícil entender porque era muita bagunça. Eles não têm, assim...não são muito organizados com a casa, né? Não tem aquela ordem, aquela limpeza de certa forma...porque bagunçado é uma coisa, quando você vê sujo é outra. (entrevista ACS brasileira)

Ela depois associa o acesso da equipe às oficinas e as orientações como algo que gerou mudanças:

Eles tinham muito mais problemas de saúde, problemas respiratórios antes. Ficar ali, tudo fechado, não tinha ar, não tinha ventilação, é...era horrível. Eles tinham que conviver com aquilo, tinham que ficar naquilo. Hoje não, são mais abertos, deixam as coisas mais abertas... Nossa, você via cada coisa horrível, de fiação no chão, pra tudo quanto é lado...criança, bicho que fica passando. Hoje não mais...hoje tem oficinas bem montadinhas, tudo certinho. (entrevista ACS brasileira) Há uma mudança ligada ao fato de eles acessarem mais os serviços. Há também transformações em relação ao lugar social de alguns desses imigrantes, que

passam de funcionários a donos de oficinas. Quanto a isso, parece haver, por um lado, a vantagem de não terem que responder a um chefe, mas, por outro lado, há uma responsabilidade com contas, aluguel de casa, administração de funcionários, que torna esta opção não tão atrativa para alguns bolivianos e bolivianas.

A ACS menciona que alguns bolivianos e bolivianas que vão se estabelecendo na cidade têm assumido outros tipos de trabalho. Alguns fazem cursos, diz, como para auxiliar de enfermagem. Alguns homens vão para a área de informática. As mulheres acabam indo para a área da saúde mesmo. Eu acompanhei em uma consulta uma jovem boliviana que trabalhava como babá em uma casa de família no Pacaembu durante a semana e tinha um quarto alugado para as folgas nos finais de semana. A ACS destaca ainda o caso de um boliviano que montou uma espécie de estande que arruma celulares no Wallmart. Diz ter visto uma Mercedes estacionada na porta da sua casa outro dia.

Ainda sobre as oficinas, há a questão do aumento do aluguel, que acaba fazendo com que os bolivianos e bolivianas se desloquem para outros bairros, mostrando que a inserção territorial dessa população não está somente na região central ou região oeste.

Ao final da entrevista, ela traz sua percepção sobre a motivação dessas pessoas para migrarem para São Paulo:

Ninguém que tá no seu país ganhando, trabalhando, seja como for...tendo sua família, tendo como sobreviver...não vai fazer uma besteira dessa. Não faz...jovem até faz porque quer se aventurar, né... mas eu duvido que uma pessoa que tiver os seus...uma idade mais ou menos vai querer fazer isso...não faz. Ou faz por pura necessidade. Porque tava passando fome lá...então eles preferem ficar aqui escravizados, como diz...do que passar fome lá...(entrevista ACS brasileira)

É possível perceber que o fato de essa entrevistada estar em contato com essa população mesmo antes de começar a trabalhar como ACS muda sua percepção sobre eles. Ela menciona uma discussão com uma senhora no seu bairro, que dizia estar incomodada com a presença dessas pessoas, pois não haveria lugar para tanta gente nos espaços, como escola, serviços de saúde e etc. Ela respondeu dizendo que no nosso país é assim, se o presidente decidiu que eles podem entrar, eles têm direito e a gente tem que aprender a conviver. Traz também a questão do merecimento de estar aqui, pois trabalham muito para se manter, para sobreviver.