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A política social na Constituição Federal de 1988

1.2 Histórico das políticas sociais brasileiras

1.2.3 A política social na Constituição Federal de 1988

Nesta seção apresentamos as principais estruturas sobre direitos sociais previstos pela Constituição Federal de 1988 (CF/88). Não trataremos aqui do debate ocorrido pré-constituinte, tampouco abordaremos o conflito existente entre o texto constitucional e a realidade da sociedade brasileira quanto ao acesso aos direitos sociais. O objetivo é apresentar as estruturas de proteção social presentes nesse documento.

De fato, a Constituição de 1988 lançou as bases para uma expressiva intervenção do Estado na área social, alargando o arco dos direitos sociais e o campo da proteção social sob responsabilidade estatal que, apesar dos esforços anteriores, somente em 1988 se consolidou no país.

A CF/88 marcou o princípio da descentralização das políticas sociais em favor dos estados e municípios, ampliando a autonomia fiscal e oferecendo maior participação dentro das receitas federais, um diferencial em relação ao governo militar, marcado pela centralização administrativa.

Outra conquista importante da Constituição, não relacionada diretamente às questões sociais, se deu via orçamento público. No campo técnico, a reformulação concedeu uma participação mais ampla ao poder legislativo (Senado Federal), na programação econômica e financeira do Estado. Além disso, estabeleceu uma hierarquia dos instrumentos de planejamento orçamentário: plano plurianual, diretrizes orçamentárias e diretrizes anuais.

O debate sobre a eficiência e a eficácia na alocação de recursos do orçamento federal tem relevância por pertencer a uma coletividade, principalmente, quando se tem em perspectiva a equidade social. Ademais, quando se leva em consideração que os direitos sociais, de acesso à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados, são princípios fundamentais, conforme o artigo 6º da Constituição brasileira.

A partir da CF/88, as políticas sociais brasileiras passaram a ter como finalidade os objetivos fundamentais descritos no artigo 3º; (i) construir uma sociedade livre, justa e solidaria; (ii) garantir o desenvolvimento nacional; (iii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (iv) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para tanto, a Constituição combinou medidas com vistas à garantia de uma série de direitos sociais como a Seguridade Social, que dava acesso à Saúde16,

Previdência17 e Assistência Social18. As conquistas e a universalização desses direitos podem ser constatadas pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS) – atendimento público e gratuito da saúde – e pelo reconhecimento da Assistência Social que garantiu o direito a uma renda para idosos e deficientes físicos em extrema pobreza, o seguro-desemprego e a aposentadoria ao trabalhador rural. Outras políticas voltadas para a melhoria das condições de vida da população também foram contempladas, exemplo; Educação, Trabalho, Habitação, Saneamento Básico e Cultura. Vale destacar que a moradia foi reconhecida como direito social pela Emenda Constitucional número26, de 14 de fevereiro de 2000.

No tocante ao trabalho é direito dos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros19, a relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, prevendo indenização compensatória. Soma-se a isso o seguro-desemprego (criado em 1986) em caso de desemprego involuntário; o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e um salário mínimo fixado em lei, nacionalmente

16 A partir do ano 2000 os gastos com saúde passaram a apresentar maior estabilidade com a

aprovação da Emenda Constitucional nº 29, que estabeleceu patamares mínimos de aplicação de recursos da União, estados e municípios para a manutenção do Sistema Único de Saúde.

17 À previdência social, integrante da Seguridade Social, cabe a cobertura de eventos como doença,

acidentes, invalidez, morte, velhice e reclusão. A cobertura também se estende à proteção à maternidade, ao trabalhador em situação de desemprego involuntário, aos dependentes do segurado de baixa renda e a garantia de pensão, por morte do segurado, aos seus dependentes – artigo 201 da CF/88.

18 Estabelecia-se, assim, uma clara diferenciação entre previdência social e assistência social. A

previdência era destinada à manutenção de renda no caso de sua perda temporária ou permanente por indivíduos com capacidade contributiva. O acesso à assistência social, por sua vez, não dependia de contribuição. O sistema era dirigido aos indivíduos sem capacidade contributiva, vulneráveis ou em

situação de necessidade (FAGNANI, 2005, p.235, grifo do autor).

A seguridade social é financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes do orçamento da União, do Estado, do Distrito Federal, dos Municípios e das contribuições sociais (empregadores, trabalhadores etc), formando o Orçamento da Seguridade Social (OSS), responsável por financiar a Saúde, Previdência e Assistência Social (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

unificado, capaz de atender as necessidades vitais dos trabalhadores e de suas famílias com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social (com reajustes periódicos que lhe preserve o poder aquisitivo).20

O documento trouxe avanços na organização sindical dando direito à greve e à livre associação profissional ou sindical. Reabilitou o marco legal de conquistas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas o avanço mais significativo se deu pela equiparação dos direitos dos trabalhadores rurais aos urbanos. As diferenças existentes em relação aos benefícios previdenciários foram suprimidas. O trabalhador rural passou a ter direito a uma aposentadoria por idade, 60 anos, para os homens e, 50 anos, para as mulheres. Já os trabalhadores urbanos precisariam trabalhar 5 anos a mais. A introdução de um piso salarial (salário- mínimo) também foi significativa.

Outra importante conquista foi a vinculação entre salário mínimo e o piso dos benefícios previdenciários e assistenciais permanentes. No caso da Previdência Social foi estabelecido que “nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo”.21 No caso da Assistência Social foi estabelecida “a garantia de um salário

mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.22

A educação (o acesso ao ensino fundamental23) foi reconhecida como direito

universal e dever do Estado e da família, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, além da integração das ações do poder público com o objetivo de: (i) erradicar o analfabetismo; (ii) universalizar o atendimento escolar; (iii) melhorar a qualidade do ensino; (iv) formar para o trabalho; e (v) promover uma formação humanística, científica e tecnológica do país. Com isso a

20

Cf. Artigo 7, inciso IV da CF/88.

21 Cf. Artigo 201, inciso V, parágrafo 5º da CF/88. 22

Cf. Artigo 203, inciso V da CF/88.

23 Na educação apenas o acesso ao ensino fundamental foi previsto na CF/88 e, reafirmado como um

direito universal na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), sua oferta gratuita é um dever do Estado, quando aos demais níveis e modalidades de ensino, estão previstas a expansão quantitativa de acesso, mas não a obrigatoriedade por parte do Estado (CASTRO; CARDOSO JUNIOR, 2005).

Educação obteve um aumento no vínculo de recursos federais direcionados para essa política.24 Ainda assim, manteve a contribuição social do salário-educação.25

Para Castro et al (2009, p. 67), a Constituição apresentou claramente a distribuição das receitas entre os entes federativos, por outro lado, não definiu adequadamente a distribuição de responsabilidades relativas aos encargos sociais. Essa lacuna gerou desequilíbrios e controvérsias durante toda a década de 1990. Isso porque grande parte da receita ficaria comprometida e, haveria dificuldades em alocar recursos para atender outras e/ou novas prioridades. Qualquer esforço para aumentar a arrecadação não necessariamente ajudaria no equilíbrio orçamentário ou no controle do déficit público, grande parte desses recursos adicionais já teria um destino definido – “salvo o caso de recursos adicionais oriundos da criação de novos impostos”. A Constituição foi o meio através do qual houve uma maior democratização das políticas sociais. Todavia, sua implementação não atingiu a plenitude, dado o projeto elaborado e executado em paralelo pelos setores mais conservadores da sociedade, alinhado às estratégias econômicas neoliberais.

O discurso conservador26 defende uma estratégia de política social focalizada e atribui à política universalizada a responsabilidade pelo atraso econômico devido aos desequilíbrios do orçamento público. Sob esse argumento, pressiona o governo para que a política social faça parte do ajuste fiscal.

Outra discussão presente acerca do debate conservador é apresentada por Gimenez (2007, p. 13), cuja crítica se refere ao engessamento do orçamento público, previsto pela CF/88, que determina valores específicos para algumas áreas (exemplo: Educação e Saúde). Outra crítica recai sobre a organização das políticas sociais, que passaram a ser organizadas através de políticas focalizadas, que

24

A Emenda Calmon de 1983 estabelecia um vínculo mínimo de 13% das receitas da União com impostos para a manutenção e desenvolvimento do ensino (CASTRO JUNIOR e JACCOUD, 2005). Após a CF/88 a vinculação de recursos para a educação passou a ser determinado pelo percentual arrecadado via impostos, conforme previsto no Art. 212: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.

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A Lei nº 9.424/96, em seu Art. 15, estabeleceu alíquota de 2,5% sobre a folha de pagamento dos empregados, sendo, dos recursos arrecadados, 40% realizados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e os 60% restantes feitos pelo Sistema de Manutenção do Ensino (SME), que representa a forma de arrecadação mais usada pelas empresas. Além disso, a Lei nº 9.766/98, em seu Art. 6, prevê a possibilidade de aplicação desses recursos no mercado financeiro, cujos rendimentos transformam-se em recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

contam com orçamentos mais modestos, ou seja, políticas “flexíveis e baratas”, de caráter temporário, desvinculadas de obrigações legais, que podem ser interrompidas a qualquer momento.

Para Pires (2004, p. 54) as influências das ideias conservadoras nas políticas sociais na América Latina também estão presentes na “transferência, cada vez maior, de parcelas dos serviços de saúde, educação e previdência social, antes reservado ao setor público, para o setor privado”, passando a tratar a oferta desses serviços como mercadorias e não mais como “solidariedade social”.

Na contramão do processo de universalização das políticas sociais, o debate conservador da ortodoxia macroeconômica27, inscrita no projeto liberal, fragiliza

permanentemente a já precária estrutura de proteção social. Nesse sentido, a CF/88 com a garantia de universalização dos direitos sociais está colocada de forma antagônica ao projeto de neoliberal de Estado mínimo, de transformação da universalização em focalização, dos direitos trabalhistas em desregulamentação e assim por diante.

Nesse contexto, sem o devido crescimento econômico para que as despesas na área social se ampliem é preciso avançar sobre outras rubricas de dispêndio e/ou aumentar a carga tributária. Lembrando ainda que a expansão dos gastos com juros e amortização da dívida pública, também se tornam altamente regressivo do ponto de vista social (GIMENEZ, 2007). O debate em torno das despesas sociais e financeiras no âmbito do governo federal serão abordadas no segundo e terceiro capítulo deste trabalho.