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A população flutuante

No documento anaclaudiadonascimento (páginas 101-104)

3. MIRANDO NA FAMÍLIA ACERTANDO NA MULHER

3.1 A família referenciada

3.1.2 A população flutuante

Em uma das regiões do bairro Linhares, conhecida como Boto encontrei um grande fluxo de “novos moradores”. Os ACS me esclareceram que esta mobilidade de pessoas acontece por que ali se instalam temporariamente os familiares que acompanham seus parentes que cumprem pena na Penitenciária ou no CERESP. Sempre que o familiar preso é transferido, seus familiares o seguem.

O Boto apresenta casas precárias, ruas com buracos, e grande quantidade de lixo e entulhos são colocados na rua. O nome do lugar me pareceu não ter sido uma escolha aleatória. Supus que esta alcunha fizesse alguma referência à lenda do folclore nordestino em que um boto cor-de-rosa vira homem, enamora-se das mulheres e depois desaparece, mas não consegui obter informações junto aos meus informantes que me indicassem o significado nativo daquela denominação.

Nessa região, pude perceber que a numeração das casas é confusa para o estrangeiro e, segundo os moradores que entrevistei, isso causa constantes prejuízos. Relataram, por exemplo, casos em que a correspondência fica perdida, pois o carteiro não encontra a casa certa, ou, quando precisam receber encomendas em casa (materiais de construção ou compras de supermercado), há sempre o inconveniente de terem que esperar na calçada para evitar que seja entregue em outra casa.

Quando se trata de morador antigo, há uma solidariedade que reina, e sempre existe aquele que se encarrega de informar a casa correta, porém nos casos em que envolve a “população flutuante”, por não terem vínculo com o território e a vizinhança, sempre são vistos com desconfiança, sendo inclusive imputados a estes os pequenos furtos que acontecem nos quintais e nas casas. Mas, apesar deste clima de desconfiança, foi interessante perceber

que vários moradores dessa região possuem cômodos extras nos quintais para alugarem para estas pessoas, o que permite aumentar o orçamento familiar.

Existe uma ―relação contratual‖ específica; normalmente o pagamento é feito adiantado ao dono do imóvel, para não ser surpreendido com uma mudança repentina do “morador flutuante”. Ou seria com o sumiço do boto? A possibilidade de se conseguir alguma renda extra sustenta a convivência entre os ―moradores fixos‖ e os ―flutuantes‖.

Claudia Turra Magni, em seu estudo Povo da Rua: um estudo sobre o

nomadismo urbano (1995), analisando a população sem domicílio fixo na cidade de Porto

Alegre, aponta para as dificuldades de se colher dados sobre sujeitos que não possuem documentos, usam diversos nomes e não possuem endereços fixos. A autora considera que nem mesmo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelo censo demográfico nacional, possui dados sobre a população nômade, uma vez que utiliza ―o domicílio como critério de contagem‖ (MAGNI, 1995, p. 1).

Essa dificuldade apontada pela autora é percebida quando a “população flutuante” precisa ser atendida na Unidade Básica de Saúde. As fichas utilizadas registram as famílias residentes no bairro. Assim, quando algum parente se instala na casa da família cadastrada, é incluído na ficha da família (Ficha A), e, quando vai embora, precisa ser retirado da ficha.

Quando não se trata apenas de um parente temporariamente instalado na casa de uma família já cadastrada, mas sim de uma nova família que se fixou em uma casa no mesmo quintal (mesmo endereço), esta deverá ser cadastrada no PSF. Nestes casos, o endereço é mantido para as duas residências, e as famílias numeradas como Família 01, Família 02 e assim sucessivamente, tantas quantas forem as famílias que se instalem em um mesmo endereço. Se ocorrer a mudança para outro bairro da cidade, a família é simplesmente desligada do PSF. Caso se mude para uma outra região dentro do próprio bairro, a família deve ser desligada de uma microárea e cadastrada na microárea para onde se mudou. Segundo ACS Leila “manter as fichas em ordem é uma dificuldade”.

Fonseca (2005) propõe que seja feita uma distinção entre “família” e “unidade doméstica”. Segundo ela, os dados produzidos por agências do Estado definem a vida familiar a partir da moradia, traduzindo uma visão limitada da dinâmica das relações familiares e que, em geral, extrapola em muito “a casa”:

Muitos dos moradores de bairros pobres pensam não em termos de ―casa‖, mas sim em termos de ―pátio‖. Em um terreno, por menor que seja, sempre tem lugar para construir mais uma ―puxada‖, isto é, uma peça ou uma meia- água, para receber um amigo ou parente. A primeira moradia da maioria de jovens casais é uma peça construída no quintal dos pais ou sogros. Com

filhos casando e descasando, pessoas mudando atrás de um novo emprego, ou simplesmente com a incorporação de algum inquilino, a composição do pátio muda. Mas, seja qual for a relação formal, é comum que haja uma troca intensiva entre essas ―casinhas‖ para a realização de tarefas domésticas. Quando uma mulher trabalha fora, por exemplo, as outras do pátio tendem a suprir sua parte na organização doméstica – fornecendo almoço quente para os sobrinhos, e supervisionando as brincadeiras dos filhos pequenos (FONSECA, 2005, p. 53).

A mobilidade desta “população flutuante” causa transtornos também na previsão de medicamentos de uso continuo que a equipe da UBS precisa manter para atender aos familiares cadastrados. Quando algum “morador flutuante” precisa da medicação, ela é cedida, mas falta para aquele que já estava cadastrado, exigindo negociações entre a UBS de Linhares e a Secretaria de Saúde Municipal. Como me explicou Leila: ―É uma loucura, você não pode deixar de atender, a pessoa diz que mora ali, fica um dia, uma semana, se passar mal vai ao posto e pega o remédio que é de outra pessoa cadastrada. O que acontece? Falta para quem já recebe todo mês. E, para explicar isso lá na Secretaria de Saúde, é outro problema”.

Esta “população flutuante” encontrada no bairro Linhares parece se enquadrar nos parâmetros apontados Magni no seu texto Habitantes de rua: um caso de nomadismo

urbano (1997), pois, apesar de não viverem pelas ruas, sob viadutos, como a população que

seu estudo descreve, a “população flutuante” do bairro Linhares apresenta determinadas características que dificultam sua inserção na lógica social das cidades modernas, que se formam segundo a noção de sedentarismo.

Excluída de um mercado de trabalho rentável, freqüentemente sem vínculo ou apoio familiar, induzida a optar por morar em aglomerados subabitacionais ou a viver na rua, esta população acaba por fazer da mobilidade, não apenas um período transitório, como ocorre com a migração, mas uma forma de vida, mantida ao longo dos anos e através das gerações (MAGNI, 1997, p. 1).

É importante considerar, portanto, que as dinâmicas familiares são fluidas e influenciadas por fenômenos sociais que afetam a vida dos sujeitos, impedindo que ―A Família‖ se encaixe como uma imagem congelada nos formulários de sistemas cadastrais. Os estudos sobre a cultura familiar, onde se destacam historiadores, alguns psicanalistas e, sobretudo, os antropólogos, têm ajudado a colocar em relevo tais embaraços.

No documento anaclaudiadonascimento (páginas 101-104)