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Partilhando doações

No documento anaclaudiadonascimento (páginas 53-56)

1.3 Que rota seguir? A assistência social procura um caminho

1.3.4 Partilhando doações

Conheci Marilene na antessala do CRAS/Leste, enquanto aguardava o momento de ser chamada para o cadastramento no programa. Iniciei uma conversa com ela desejando saber sobre suas expectativas quanto ao cadastramento e interessava-me a possibilidade de incluí-la na pesquisa. Nos primeiros momentos ela respondia com frases curtas, sem me olhar diretamente no rosto e, claro, quis saber quem eu era. Só se sentiu mais à vontade quando perguntei a ela quem era a ACS responsável pela rua onde ela mora. Indicar Cínara como uma pessoa conhecida comum facilitou o contato, deixando-a mais desinibida, principalmente quando concordei com seus comentários sobre como a agente comunitária de saúde é “atenciosa e prestativa”. A relação entre nós foi mediada pela agente, sem que fosse preciso sua presença física. Ao terminar o atendimento, um pouco mais confiante, dirigiu-se até mim e disse: “vai lá em casa com a Cínara”.

A área do bairro onde Marilene mora fica numa área de invasão, bem no topo da rua de terra, “aonde o ônibus não chega”. Sua casa é bem simples, feita de placas de cimento e coberta por telhas de amianto. Mora ali há três anos, com seus dois filhos do segundo “casamento”, Marcos com 08 anos e Wallace com 04 anos, e o marido Geraldo, 45 anos, que trabalha como servente de pedreiro, mas não tem vínculo empregatício. 34

Marilene tem 44 anos, mas aparenta bem mais, já trabalhou como faxineira e por

problemas de saúde (dor na coluna) se afastou do trabalho. Ela não havia se interessado em se

34 Apesar da maioria das mulheres estudadas viverem o regime de união consensual, os termos casamento e

cadastrar para receber os benefícios do programa. Informou que “só criou coragem” para ir até o CRAS/Leste naquele dia porque a ACS toda vez que vai a casa dela diz que ela “precisa muito”.

Como mencionei, Marilene é uma mulher bem retraída e durante a observação pude refletir sobre a utilidade que esse traço possui nas relações que ela estabelece. Suas intenções, caso venha a conseguir o benefício, é poder ―comprar leite, carne e pão todos os dias”.

Marilene também recorre à ajuda da caridade para manter a necessidade de sua

família. O salário que seu marido recebe não é fixo, pois trabalha como servente de pedreiro recebendo pelo serviço semanal R$50,00. A família recebe uma cesta básica oferecida pela Igreja Católica e, às vezes, um pastor evangélico também ajuda com alguns produtos alimentícios. O filho de 04 anos está matriculado na creche onde faz toda alimentação e

Marcos, que estuda à tarde, também merenda na escola. Assim, é preciso garantir que a

comida feita no jantar alimente a família e sobre para a marmita do senhor Geraldo.

O jeito introvertido de Marilene é importante nas articulações que estabelece para receber ajuda. Serve para mobilizar os vizinhos e sua família que intercedem por ela junto a outros conhecidos. Como é o caso de dona Célia, 56 anos que conhece Marilene desde pequena e a considera como filha, sempre que pode divide com ela um pouco dos alimentos que prepara e pede à sua patroa roupas e sobras de comida que leva para Marilene.

Dona Célia me informou que se sensibiliza pela situação de Marilene e “ajuda no que pode”, porque “ela precisa muito”, por ser “uma mulher calada”. No seu entendimento, não se pode ter vergonha de pedir quando não se tem, ela mesma pediria para si, caso necessitasse. O que me surpreendeu foi o fato das condições de vida de ambas serem bem parecidas. Célia teve oito filhos, mas atualmente só dois moram na sua casa, dois filhos morreram assassinados, dois moram com uma tia e dois já se casaram. O marido não mora com ela, e ajuda pouco em casa.

Os rendimentos de Célia, no valor de R$100,00, são recebidos de uma vizinha, mensalmente, pelos serviços que presta a esta nos cuidados de uma criança de três anos e que “não conseguiu vaga na creche”. Os filhos casados também ajudam no que podem, às vezes trazem um pouco de carne ou alguma verdura. Por ser uma “mulher falante e esperta”, segundo sua própria descrição, ela consegue ter acesso às instituições do bairro, o que garante acesso aos recursos, como as cestas básicas que recebe: uma da Igreja Católica e outra de um Centro Espírita. Ela descreveu o processo para receber as cestas como “bem simples”. “É bem simples conseguir ajuda. Na igreja é só falar com a moça da pastoral da família.

Explicar que passa necessidade. E isso é verdade. Porque aqui ninguém vive sobrando. No centro é só assistir a uma palestra por semana e se você não faltar no fim do mês recebe a cesta.”

Quando me interessei em saber de Célia o porquê de, mesmo sendo “tão simples”,

Marilene não procurar receber a própria cesta ela esclareceu - “Ela não é esperta. Com aquele jeito, ela não consegue nada, minha filha. Eu já tentei animar ela, já tentei ver se ela fica mais falante, mas ela não consegue nem olhar direito para gente como é que vai saber falar das dificuldades dela”? E prossegue explicando sua estratégia - “Eu chego, fico esperando um pouco, depois que me chamam eu falo mesmo! Conto tudo! Explico direitinho como é que a gente vive aqui, passando necessidade das coisas. Aí sempre consigo alguma coisa e divido o que posso com ela, por que ela precisa mais que eu”.

Esta forma de buscar ajuda não se limita apenas às instituições mencionadas, ela consegue articular com diversas pessoas. Sempre que caminha pelo bairro, aproveita para “falar” com as pessoas, que já sabem da sua necessidade e elas próprias se encarregam de avisá-la sobre alguma possibilidade de doação. Como a dona da quitanda que lhe avisou que vai “mexer no guarda roupas do filho no final de semana e eu já sei que segunda-feira, recebo alguma coisa”.

O fato de ser falante, segundo Célia, lhe dá muitas vantagens em relação à

Marilene, por isso, a considera pouco “esperta”. No seu entendimento Marilene “precisa mais que ela”, fazendo com que ela ofereça uma parte dos recursos recebidos à vizinha. Essas dinâmicas, encontradas em campo, fizeram-me refletir sobre a importância dessas redes de apoio que se sustentam na solidariedade e na caridade, para a vida dessas pessoas. Contudo, a política de assistência social também prevê um cadastro para tais instituições, pretendendo criar uma rede socioassistencial, hierarquizada pelo critério de complexidade das ações desenvolvidas na área de assistência. E, procura disciplinar as ações destas instituições na medida em que exigem a construção de projetos planificados e racionalizados. Mas tenho dúvidas se seria possível incluir essas ricas dinâmicas de troca e apoio. 35

Esta proposta pode ser interessante para se conhecer os atores envolvidos com as práticas assistenciais, e ainda para garantir o melhor investimento dos recursos, que quase sempre são insuficientes para este setor. Mas, as intenções de se evitar superposições de ações, nesta área, podem representar, na prática, uma forma de controle sobre o acesso das

35 Redes socioassistenciais: é assim denominado o ―conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da

sociedade que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas essas unidades de provisão de proteção social, sob a hierarquia de básica e especial e, ainda, por níveis de complexidade‖ (BRASIL, 2004 e BRASIL, 1993).

pessoas aos recursos. Como indica a percepção de uma assistente social do CRAS/Leste, e que ilustra a percepção do Estado sobre os pobres: “Se deixar eles querem tudo. É um tal de receber ajuda aqui, na Igreja, no Centro Espírita. Isso é errado, porque tiram a oportunidade de outras pessoas. O que tem já é pouco, se só um receber como é que ficam os outros?

Não é nossa intenção problematizar nesse estudo a relação da assistência social com as Organizações Não-governamentais – ONGs. Apenas procurei destacar a importância de se considerar toda a construção histórica da assistência social no Brasil, inclusive no seu caráter religioso, e os sentidos dados às ações dos sujeitos que a ela recorrem, analisando criticamente as reais possibilidades do Estado executar efetivamente a assistência social, oferecendo-a enquanto política pública universal.

No documento anaclaudiadonascimento (páginas 53-56)