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Agentes caridosos e motivações

No documento anaclaudiadonascimento (páginas 44-49)

1.3 Que rota seguir? A assistência social procura um caminho

1.3.2 Agentes caridosos e motivações

Durante a pesquisa de campo não pude deixar de observar as ações de solidariedade em diferentes contextos da pesquisa de campo. Entre os agentes comunitários de saúde, por exemplo, pude registrar dados que permitem afirmar que suas práticas profissionais junto às famílias não se restringem apenas às funções atribuídas a eles pelo Estado. Além de cumprirem com as formalidades burocráticas do programa, eles são importantes mediadores para a resolução de outras carências da população, que estão para além dos problemas de saúde que enfrentam.

Silmara, 46 anos, que cursa pedagogia, e é agente comunitária há oito anos, mora

com sua família composta por marido e duas filhas, todos eles seguem a religião Metodista. Ela representa bem o que afirmei acima. Além de cumprir seus compromissos para com os usuários que residem na microárea que está sob sua responsabilidade, participa de diversas

ações assistenciais no bairro. Em parceria com a prefeitura municipal, ela e um grupo de mulheres da Igreja Metodista do bairro desenvolvem vários projetos na sede da igreja. O curso de artesanato é oferecido para outras mulheres da comunidade, em que onde se ensina confeccionar bonecas de pano, almofadas, peças de biscuit, pinturas em tecidos, que podem ser vendidos e gerar alguma renda. Além desse curso, ela mantém funcionando um ambulatório, onde profissionais liberais (psicólogos e advogados) oferecem seus serviços a preços simbólicos para os moradores do bairro. Tudo sob sua coordenação. Junto com

Cínara, 47 anos, uma outra agente comunitária de saúde organiza no centro da cidade uma

feira de artesanatos para que os produtos possam se transformar em renda.

Sempre que eu a acompanhava caminhando pelas ruas do bairro, ela cumprindo suas tarefas e eu atenta à coleta de dados para minha pesquisa, éramos interrompidas por moradores, tanto mulheres, quanto homens, jovens, crianças e idosos, que precisam informar as dificuldades que estavam vivenciando. Para cada uma delas, Silmara sempre dizia “vou ver o que dá pra fazer”. E fazia. Entregava algumas roupas usadas, remédios conseguidos com vizinhos ou parentes e passava informações sobre serviços oferecidos por instituições do bairro e da cidade que pudessem de alguma forma resolver a necessidade apresentada. Quando perguntei a ela sobre como fazia para dar conta de tantos pedidos e tarefas, ela me respondeu que o fato de fazer isso há muitos anos “deixa a pessoa esperta”. Quando procurei saber como sua família via esse seu envolvimento com “os outros”, soube que seu marido, que trabalha numa importante empresa do município, também se envolve com várias ações de assistência, tanto no trabalho quanto no próprio bairro via Igreja, e que a filha mais nova já começou a se interessar em ajudar crianças a serem alfabetizadas.

As razões que a motivam são de cunho religioso. Na ocasião em que visitei a sede da igreja, atendendo a um convite seu para conhecer os cursos que são oferecidos ali, ela me relatou todos os desdobramentos do rompimento de Calvino com a Igreja Católica, de que para os evangélicos o importante é “passar o testemunho”, acreditando que “as pessoas nasceram para serem vitoriosas”, que se “eu amparar os outros eles conseguiram avançar mais fácil”.

Enfatizando as considerações de Silva Neto (2006) sobre as motivações que normalmente impulsionam agentes religiosos a se envolverem com ações na área da assistência social, segundo ele é importante:

[...] lembrar que normalmente a mobilização de um agente religioso para atuar no trabalho assistencial passa geralmente por um processo de

conversão em que seu envolvimento pessoal é fundamental para estruturar os nexos que irão conduzir sua ação. Ou seja, a salvação para os necessitados normalmente está diretamente vinculada à salvação do próprio agente religioso que procede ao trabalho de amparo. Existe um sentido religioso para a ação que supera as motivações que a crença numa racionalidade puramente política e sociológica, que também está presente, poderia mobilizar (SILVA NETO, 2005, p. 35).

Por um lado, os profissionais do campo da assistência são incitados a promover o modelo assistencial inscrito na lei – amplo, formal, organizado – ou seja, racional. Mas, por outro, seu cotidiano é eivado de demandas reais que escapam à lógica planificada. São instituições e indivíduos com outras perspectivas, assentados em um ethos mais amplo: na tríade dar-receber-retribuir. A sensação para muitos deles é que se demanda muito mais do que eles efetivamente podem atender.

Portanto, o interesse do Estado em tomar as relações entre os sujeitos como essencialmente racionais, emperra o processo, uma vez que, previamente, as classifica como assistencialistas. Pelo que pude observar, é preciso considerar as negociações que se processam num nível mais micro da vida cotidiana e os significados dos sujeitos nas relações de reciprocidade que estabelecem via caridade.

A reciprocidade foi definida por Marcel Mauss pela tríade ''dar, receber e retribuir''. As questões formuladas em seu clássico estudo Ensaio sobre o Dom: Forma e Razão da Troca nas Sociedades Arcaicas (1974) apontavam na direção de meus interesses

de compreender como estas ―trocas" articulavam os interesses dos sujeitos envolvidos fazendo surgir relações solidárias. 32 Como se cumpre entre os meus informantes a obrigatoriedade do dom (dar, receber e retribuir), ou seja, qual regra estas pessoas usam para retribuir o presente? Como se processa a relação entre o objeto dado e que faz com que os sujeitos que recebem se sintam obrigados a restituir?

No caso relatado acima, Silmara não esperava receber “nada em troca”, mas é claro que recebe. Ela tem o reconhecimento das pessoas que ajuda e estas oferecem a ela “pequenos presentes”. Pude perceber que cuidam para que seu trabalho seja menos difícil, frequentemente pude ver a oferta destes presentes sendo realizada no oferecimento de um copo d’água nos dias muito quentes, sem ela pedir alguém gritava de dentro dos quintal “Silmara, você quer um copo d’água”? Ou ainda, no cuidado para com sua segurança avisando sobre “o movimento da noite anterior na área”. Em certas ruas, na parte da noite é comum ocorrerem brigas entre pequenos traficantes com troca de tiros. E quando “o

32 Um outro estudo sobre o sistema de trocas também pode ser encontrado em Argonautas do Pacífico Ocidental,

movimento da noite” anterior indica perigo, ela é logo avisada, podendo assim, adiar por um ou dois dias as visitas àqueles lugares, quando “tudo volta a ficar mais calmo”.

Este também é o caso de Cínara. Esta agente de saúde indicou como sua motivação o fato do conceito de saúde ser amplo, envolvendo também noções subjetivas “de bem-estar”. Segundo ela “se uma pessoa se sente bem, acolhida nas suas necessidades, adoece menos”. Ela participa do Conselho da Municipal dos Direitos da Mulher, acompanha em viagens o grupo que faz artesanatos no bairro, inclusive para a Capital e outros estados do Brasil. Cínara também participa de várias reuniões com representantes da saúde nas quais intermedeia as relações dos agentes comunitários com os gestores da saúde. Quando procurei saber mais sobre suas motivações e expectativas de retribuição, perguntando sobre possíveis interesses políticos, pois já havia percebido algumas insinuações sobre esta possibilidade entre seus colegas de trabalho, ela me respondeu: “eu não quero, mas se acontecer, por que não”?

É preciso, porém, destacar que esta forma de atender a demanda dos usuários, apesar de ser expressiva, não é unanimidade entre os agentes de saúde. Fabíola, 37 anos, socióloga, agente de saúde no bairro desde a implantação do PSF, não acha correto ficar “dando roupas usadas para os usuários”. Segundo ela, isso alimenta as relações clientelistas entre os usuários e a política pública. Apresento suas considerações, pois além de indicarem a “diversidade de atores” envolvidos nas atividades assistenciais, indicam a regra fundamental considerada por Silva Neto (2005) como importante na compreensão desses discursos defendidos pelos agentes do Estado. Na sua perspectiva, estes discursos indicam um desejo de que a assistência social possa ser oferecida à população seguindo somente os “princípios reguladores da racionalidade legal”. Neste sentido, a percepção de Fabíola, se alia aos princípios desta racionalidade.

Entre os agentes do Estado, que atuam no CRAS/Leste, esta intenção é perseguida, mas sua efetivação parece distante. As entrevistas realizadas neste espaço institucional indicam os impasses vividos, principalmente pelas assistentes sociais, diante do desafio de se romper com as práticas assistencialistas. Elas frequentemente lidam com instituições e sujeitos que concebem as ações da assistência social, não necessariamente pela via da racionalidade como apontou Silva Neto (2005). Estes sujeitos são movidos por diversos interesses e ethos de vida, demandando das assistentes sociais, algumas vezes, muito mais do que efetivamente podem atender. Além disso, paira na sociedade a imagem da assistente social (frequentemente mulher), como um profissional capacitado para ajudar as pessoas a

enfrentarem dificuldades, estando sua imagem fortemente ligada à assistência social e ao cuidado maternal.

Esta imagem é atualizada constantemente na fala das mulheres acompanhadas neste estudo. Era comum ouvir, nos diálogos de campo, nas conversas entre as mulheres diante de qualquer problema enfrentado a frase: “procura a assistente social que ela te ajuda”.

―Ajudar‖ aqui assume significados diferentes e serve para as mais diferentes situações. A figura da assistente social é entendida como alguém que acolhe suas queixas, podendo interceder junto aos órgãos para resolver alguma pendência ou oferecendo orientações sobre como proceder em determinadas situações. Isso inclui encaminhamentos para vagas de creche e escola, ou ao Conselho Tutelar, encaminhamentos para retirada de segunda via de documentos, pedidos de cesta básica, orientações sobre processos de aposentadoria, ou de algum parente preso nas instituições do bairro. Resumindo, as assistentes sociais são acionadas como importantes mediadoras entre estas mulheres e as instituições para onde se dirigem.

Retomando o estudo de Mauss (1974), nesse caso parece haver uma aliança entre assistentes sociais e mulheres que extrapolam o que é efetivamente doado, indicando haver uma identificação entre a coisa dada e o espírito do doador, fundando relações de reciprocidade que se mantêm na existência de uma razão simbólica. É importante considerar que os sujeitos sociais estão envolvidos no fenômeno que funda a reciprocidade, o que significa dizer que os sujeitos sociais estão envolvidos por relações simbólicas e destas não podem escapar. 33

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O texto elaborado pelo Conselho Federal de Serviço Social, em 2005, procura esclarecer as competências desta profissão, informando sua trajetória histórica e ampliando as possibilidades de atuação dos profissionais para além das que envolvem a assistência social.

No documento anaclaudiadonascimento (páginas 44-49)