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A posição divergente entre governante e governados

2.3 Caracterização do governo despótico

2.3.2 A posição divergente entre governante e governados

No livro segundo do “Espírito das Leis”, Montesquieu descreve uma lei fundamental67 do governo despótico: o estabelecimento de um vizir. O governante desse estado não está interessado nos assuntos públicos. Diante desse seu desinteresse, o governante deve achar alguém que se preocupe por ele. Destacamos o seguinte trecho em que Montesquieu fala sobre esse assunto:

Um homem cujos cinco sentidos dizem incessantemente que ele é tudo e os outros nada são, é naturalmente preguiçoso, ignorante e voluptuoso. Abandona então os negócios públicos. (...) O estabelecimento de um vizir é, nesse Estado, uma lei fundamental (1979, p. 36-37).

Montesquieu afirma que se o governante confiasse os negócios públicos a diversos homens, haveria disputa entre eles e o príncipe seria obrigado a cuidar da administração. Assim, a transmissão do poder ao vizir é a solução mais simples (MONTESQUIEU, 1979, p. 36). Dessa forma, é interessante destacamos como o príncipe age nesses governos:

Quanto mais o império cresce, mais o harém aumenta e, consequentemente, mais o príncipe está embriagado de prazeres. Assim, nesses Estados, quanto mais súditos o príncipe possui para governar, menos pensa no governo; quanto mais se avolumam os negócios, menos se delibera sobre eles (MONTESQUIEU, 1979, p. 37).

67Esse termo “lei fundamental” é entendido como uma característica marcante do governo despótico, e não como

Diante dessa ideia, Binoche constata a existência de duas forças contraditórias no governo despótico. De um lado, há a força centrípeta das riquezas que faz com que tudo seja transferido para as mãos do déspota. De outro lado, há a força centrífuga da autoridade caracterizada pela entrega do poder a um subordinado (BINOCHE, 1998, p. 228-229). Em outros termos, para que o déspota semergulhe nos prazeres, ele precisa delegar suas funções a um vizir.68

Observamos, portanto, que o déspota está ocupado somente com os seus prazeres. Diante disso, para que ele possa se deleitar, delega ao vizir o comando das questões do governo. É interessante destacar ainda que essa transmissão do poder ao vizir é feita de forma integral. Os governantes do Estado despótico transmitem o poder de forma total em benefício do seu subordinado. Esse, que era um escravo, torna-se um déspota.

Percebemos, assim, o quanto a comunicação do poder no governo despótico é peculiar. Ora, em todos os governos, percebemos a ocorrência da transmissão do poder para alguns subordinados. Entretanto, essa transmissão do poder não ocorre de forma integral como acontece nos governos despóticos em que, de modo súbito, um escravo se torna um déspota.

Como mencionado, essa delegação total da autoridade nas mãos de alguém não ocorre nos governos moderados. Nesses governos, o príncipe somente concede uma parte de sua autoridade quando retém uma maior (MONTESQUIEU, 1979, p. 75). Nos Estados monárquicos estabeleceu-se, por exemplo, que os indivíduos que dispõem de um comando um pouco amplo não sejam ligados a qualquer corpo de milícia (MONTESQUIEU, 1979, p. 75). Essa ordem faz com que o poder de determinada pessoa não seja tão grande.

68Binoche acrescenta que a ideia de vizirato descrita por Montesquieu traz alusões a Richelieu, Mazarin e Dubois

É importante destacarmos que o vizir vai agir em nome do déspota. O papel do vizir é demonstrado na seguinte frase: “O vizir é o próprio déspota, e cada oficial particular é o vizir”. (MONTESQUIEU, 1979, p. 75). Diante desse trecho, constatamos que o vizir atuará como o déspota. Assim, o exercício arbitrário do déspota será verificado também na forma de agir do vizir.

Percebe-se, assim, que o governante do estado despótico não está interessado no bem-estar dos seus súditos nem nos negócios do seu país. Ele somente se preocupa consigo próprio. Tendo em vista esse seu comportamento, não é de se estranhar que ele delegue a alguém a função de cuidar das questões do governo. Ele concede de forma integral o seu poder para um sujeito sem experiência alguma de mando. Pelo contrário, o indivíduo que exercerá as funções de governante sempre obedeceu cegamente às ordens do seu superior. Da condição de escravo, esse indivíduo passará à posição de déspota.

Constatamos, portanto, que esse indivíduo obedecia cegamente; agora ele precisa apenas querer. Apesar da discrepância entre esses dois papéis, podemos ver também uma grande semelhança entre eles. Em ambas as posições, não há necessidade de pensar, na primeira situação deve obedecer sempre ao governante; e na segunda, ordenar que sejam feitas as suas vontades momentâneas.

Essa conduta do déspota contribui para que os súditos não reconheçam a sua pessoa. Mas, por outro lado, o seu nome parece se tornar mais eficaz e temível. Os súditos não conhecem o indivíduo que os governa. Os déspotas se escondem, não se revelam, não estão presentes no imaginário dos súditos; o que aparece é a realeza, o trono. Assim, o espírito dos súditos está

ligado a determinado trono, e não a uma pessoa específica. Nesse sentido, destacamos a seguinte passagem das “Cartas Persas”:

Esse poder invisível que governa é sempre o mesmo, aos olhos do povo. Ainda que dez reis, de quem sabe apenas o nome, se matem em rápida sucessão, ele não percebe diferença alguma; é como se tivesse sido governado por uma série de espíritos (MONTESQUIEU, 2005, p. 146).

Dessa passagem, observamos como a imagem de quem governa é distante da visão dos súditos. Eles não se identificam com o governante, uma vez que este é ausente. Ele não quer saber de responsabilidades nem está interessado nos assuntos da cidade; somente pensa nas suas questões pessoais.

Grosrichard comenta que a prova de que somente o nome governa esses estados está demonstrada no acontecimento vivenciado por Safiê. No momento em que se percebe que o nome de “Safiê” não possui os efeitos benéficos esperados, decide-se, de acordo com o conselho dos astrólogos, mudar não a pessoa do Imperador, mas seu nome (GROSRICHARD, 1988, p. 104). Constata-se, assim, que os indivíduos não têm contato com o governante, eles somente memorizam um nome que governa.

Grosrichard diz ainda que o Estado despótico é um teatro onde atores diferentes se sucedem para representar sempre os mesmos papéis (1988, p. 106). Percebemos, portanto, que nos estados despóticos os atos dos governantes são muito parecidos. Eles são conhecidos pelo medo que eles despertam nos súditos; e não, pelos atos bons feitos para o país.

Observa-se, também, nos regimes despóticos, a enorme diferença entre a posição do governante e a dos governados. O primeiro é tudo e os segundos não são nada. O déspota se julga superior aos seus súditos. No seu pensamento, esses devem ser tratados como animais,

eles não são dignos de atenção ou respeito. Por outro lado, esse indivíduo que governa pode fazer o que lhe convier e exigir que todos satisfaçam os seus desejos.

Nesse sentido, Santos diz que o olhar é um elemento motor do poder despótico no Oriente: o regime mantém-se por meio da cegueira dos súditos. Esse intérprete ainda diz que “ver” é tarefa do governante e “obedecer” cegamente é a tarefa dos súditos. O déspota possui o monopólio do olhar, ele pode ter todas as imperfeições, mas não pode ser cego (SANTOS, 2006, p. 61).

Assim, os súditos devem apenas obedecer. Eles não podem tomar atitudes que lhes parecem melhores, eles não traçam os seus caminhos, eles devem seguir o que foi ordenado pelo governante. Esse indivíduo que governa, por sua vez, dita ordens, decide o que os demais devem fazer. Ele é o indivíduo que guia os seus súditos, ele tem o monopólio do olhar. E o caminho que ele ordena seus súditos seguirem visa somente aos objetivos pessoais desse indivíduo que enxerga.

Tratando ainda da posição dos governados e do governante, no próximo item analisaremos a questão das mulheres no regime despótico. No primeiro capítulo, tratamos desse assunto no romance “Cartas Persas”. No presente capítulo, examinaremos esse tema na obra “Do Espírito das Leis”.

2.3.2.1 As mulheres no regime despótico

Na obra “Do Espírito das Leis”, Montesquieu analisará o papel que as mulheres ocupam nos diferentes regimes. Esse interesse de Montesquieu em tratar da questão feminina chamou a

atenção de alguns intérpretes. Pangle considera que, possivelmente, Montesquieu foi o filósofo político que mais se ateve ao papel da mulher em uma ordem política (1973, p. 98).

O autor francês diz que as mulheres têm pouco recato nas monarquias, uma vez que elas podem se beneficiar do espírito de liberdade. Observamos nesses governos que as mulheres buscam o luxo. Nas repúblicas, as mulheres são livres pelas leis e prisioneiras pelos costumes, o luxo é banido delas. Percebe-se, assim, que em uma república, as mulheres não têm tanta liberdade uma vez que os costumes as prendem.

Por sua vez, nos governos despóticos, as mulheres não têm vontade própria, por isso são consideradas escravas. Além disso, as mulheres do governo despótico não introduzem o luxo, uma vez que elas mesmas são objetos de luxo (MONTESQUIEU, 1979, p. 104).

O autor francês diz que os príncipes dos governos despóticos, geralmente, têm várias mulheres. E a família reinante assemelha-se ao Estado, ou seja, ela é muito fraca ao passo que o seu chefe é muito forte (MONTESQUIEU, 1979, p. 73). Ademais, o iluminista diz que essas mulheres são geralmente enclausuradas e não têm opinião a emitir (1979, p. 269).

Diante da posição da mulher no regime despótico, percebe-se que não há leis civis sobre seus direitos. Já que esses seres não têm vontade própria, eles não podem responder por suas condutas perante um juiz. Assim, as condutas das mulheres são decididas pelas vontades da figura masculina mais próxima delas, como a vontade do pai, do marido, do senhor (MONTESQUIEU, 1979, p. 82).

Diante dessa situação, percebemos que as mulheres no estado despótico são consideradas objetos dos seus senhores. Eles têm várias esposas e as consideram como suas escravas. Elas não podem ter opinião e devem seguir tudo o que o senhor lhes ordenar.

Após tratarmos da situação das mulheres, iremos tratar da questão jurídica no regime despótico. Assim, analisaremos como o Estado regulamenta a noção de justiça na relação entre os governados e na relação entre governante e governados.