• Nenhum resultado encontrado

A obra “Cartas Persas” foi publicada em 1721, Montesquieu tinha 32 anos. Por receio de sofrer perseguições, Montesquieu não publicou seu nome nesse livro, optando pelo anonimato. Essa obra teve um sucesso notório na França. Várias edições foram feitas após sua publicação, confirmando a intuição de Pére Desmolet, amigo do autor, de que esse livro seria vendido como pão.45

Essa obra apresenta personagens e uma trama fictícios, entretanto Montesquieu mistura ficção com realidade em várias passagens desse romance. Pode-se perceber essa prática quando o autor francês faz sátiras ao governo francês, à religião e a outros fatos que ocorreram no momento da escrita desse livro. Frequentemente, durante a leitura desse romance, deparamos com reflexões ligadas à filosofia, à política, à moral e a outros temas.

Desde a escrita desse livro, que tem como destaque a presença do sentimento do medo no harém do senhor, já se observa a inquietação que o despotismo despertava no pensamento de

45Essa informação foi tirada do Índice Cronológico (p. 11) presente nas “Oéuvres Complètes” de Montesquieu,

Éditions du Seuil,1964. Seguindo ainda essa fonte, acrescentamos que, somente no ano de 1721, havia quatro edições diferentes e, ao menos, quatro edições clandestinas.

Montesquieu. Posteriormente, no “Espírito das Leis”, Montesquieu apresentará um estudo (sem ter um cenário fictício) sobre o regime em que o medo é o guia.

Esse romance é escrito por meio de cartas de dois viajantes, Usbek e Rica, eunucos, esposas, amigos distantes e dervixes. Assim, não há apenas um narrador, mas sim, várias pessoas que têm a oportunidade de exprimirem suas ideias. Entretanto, as vozes principais desse romance são as de Usbek e Rica, pois na maior parte das vezes, as cartas são sempre escritas ou dirigidas para um desses personagens.

Usbek é o detentor de um harém em Ispham. Nesse seu harém, ele possui algumas mulheres e eunucos ao seu dispor. Tendo em vista que Usbek segue apenas seus caprichos e trata os seus eunucos e suas mulheres como escravos, podemos classificá-lo como um déspota no âmbito doméstico.46

Porém, observamos certa ambiguidade no caráter de Usbek, ao mesmo tempo em que ele é um déspota na relação com seus eunucos e suas mulheres, ele também é um indivíduo interessado pelo saber, crítico das instituições governamentais de outros países e do seu próprio país.

É importante também destacarmos que Usbek, apesar de possuir seu harém e governá-lo de forma despótica, também é sujeito às ordens do governante de seu país. Por conseguinte, observamos um comportamento diferente de Usbek em relação aos cortesãos e em relação aos seus eunucos e mulheres. O tratamento que Usbek dá aos cortesãos é gentil e sincero, uma vez

46O conceito e a caracterização do despotismo serão trabalhados de forma mais detalhada no capítulo sobre o

despotismo no “Espírito das Leis”. Entretanto, já introduzimos esse conceito nesse capítulo pelo fato de, nas “Cartas Persas”, observarmos a prática de medidas arbitrárias pelo senhor do harém, Usbek.

que não há diferença hierárquica entre o primeiro e os últimos. Por sua vez, Usbek é o senhor dos seus eunucos e mulheres, isso lhe permite tratá-los de forma autoritária e, muitas vezes, sem respeito pelo sentimento desses indivíduos.

Entretanto, esse seu comportamento marcado pela verdade e sinceridade direcionado aos cortesãos somente lhe trouxe inimigos. Devido a isso, Usbek resolveu retirar-se desse lugar. Com esse intuito, ele procurou o rei e com o argumento de que gostaria de se instruir nas ciências do Ocidente, conseguiu a permissão do monarca para fazer a viagem a esse hemisfério.

Starobinski comenta que a necessidade de Usbek escapar da arbitrariedade é uma causa importante para sua viagem. Porém, esse comentador acrescenta que o desejo de saber de Usbek é um motivo sério e não um simples pretexto (1989, p. 101). Essa motivação que o saber produz em Usbek parece ser semelhante ao apreço que Montesquieu tem pelo conhecimento e pela cultura de outros países. Nesse sentido, Shklar diz que Usbek é o alter

ego de Montesquieu (1987, p. 32). Alguns parágrafos adiante, essa autora acrescenta que

Usbek representa muitos papéis além daquele de porta-voz do autor (1987, p. 33).

Observamos, assim, que Usbek apresenta características e pontos de vista semelhantes aos de Montesquieu. Em alguns momentos, percebemos que as ideias defendidas pelo iluminista francês estão presentes na fala do viajante persa. Ademais, o desejo de Montesquieu de conhecer países e culturas diferentes coincide com a intenção de Usbek de viajar e de conhecer diferentes povos.

Entretanto, o comportamento de Usbek no seu harém se mostra em desacordo com o posicionamento de Montesquieu. O pensador francês é contra a atuação de um indivíduo que age de acordo com suas vontades. Podemos considerar que Montesquieu durante todo o seu percurso intelectual combate atos arbitrários dos governantes. Montesquieu condena a atuação de uma pessoa que exerce o poder de forma ilimitada. Devido a isso, percebemos que, nesse sentido, Montesquieu se afasta e, mais do que isso, o pensador francês condena a forma que Usbek atua.

Esse comportamento de Usbek nos ajudará a compreender o despotismo a partir de duas perspectivas. Uma maneira é analisar as críticas de Usbek aos governos autoritários. Como veremos adiante, Usbek critica os governos que se utilizam somente da violência. A outra maneira é analisar a própria conduta de Usbek. Apesar de esse viajante persa apreciar os governos moderados, e, por conseguinte, a ideia de liberdade; no âmbito privado, Usbek se comporta de forma diferente. No seu harém, o seu poder absoluto faz com que o menor desejo de liberdade sentido pelos seus eunucos e mulheres seja apagado.

Como já mencionado acima, Usbek não fará essa viagem sozinho. Juntamente com seu amigo Rica, esses dois viajantes passarão por vários países até chegarem ao destino final: a França. É interessante destacarmos o diferente temperamento desses dois viajantes. Usbek é melancólico, taciturno e até mal-humorado. Já Rica é alegre, tudo parece o distrair, uma vez que ele não tem muitas preocupações como o primeiro que deixou um harém com eunucos e mulheres.

Esses viajantes se interessam por tudo; tudo os impressiona e os faz refletir. Aliás, não poderia haver crítica melhor do que a de indivíduos que não estão acostumados com os costumes e as práticas de determinado lugar.

Starobinski nos lembra que o espaço geográfico das Cartas Persas não comporta apenas as duas capitais: Paris e Isphan. Mas também inclui as cidades onde residem os correspondentes informantes: Esmirna, Veneza, Moscou. Salienta-se ainda que notícias chegam também da Espanha, Suécia, Tartária e Inglaterra (STAROBINSKI, 2001, p. 99). Entretanto, podemos perceber o enfoque dado para o harém de Usbek e para a sociedade parisiense. Ressaltamos também o comentário de Dédéyan sobre o aspecto temporal da obra, esse autor diz existir uma estrutura tripartite nesse romance: a saída do serralho, a viagem à Europa e o retorno ao serralho (1998, p. 114).

Como o trabalho que estamos desenvolvendo tem como objetivo analisar o despotismo, optamos por desenvolver os seguintes temas abordados nas “Cartas Persas” relacionados com esse regime: a forma com a qual esse conceito está descrito nesse romance, a posição da mulher no regime despótico; e por fim, a vulnerabilidade desse regime.