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O homem após o estabelecimento da sociedade

2.4 Despotismo: o regime à espreita

2.4.2 O homem após o estabelecimento da sociedade

Montesquieu afirma que o estado de paz presente no primeiro momento se desenvolverá, inevitavelmente, em estado de guerra. Assim, destacamos: “Logo que os homens estão em sociedade, perdem o sentimento de suas fraquezas; a igualdade que existia entre eles desaparece, e o estado de guerra começa.” (MONTESQUIEU, 1979, p. 27).

Binoche faz um comentário interessante sobre esse estado social que desencadeará a guerra. O intérprete francês diz que esse estado é marcado pela ambiguidade, pois, de um lado, ele não pode ser chamado de “estado de natureza” porque ele sucede a esse estado; de outro lado, pelo fato de ele designar uma comunidade anterior a toda legislação positiva, ele corresponde àquilo que Hobbes ou Locke teriam chamado de “estado de natureza”. Na realidade, o estado em que se observará a guerra entre os homens será um estado pós-natural e pré-civil, uma fase intermediária em que Montesquieu verá a presença da guerra (BINOCHE, 1998, p. 51).

Podemos constatar, assim, que Montesquieu defende a existência do desejo de dominação entre os homens. Mas, para esse autor, esse desejo aparece após os homens estarem na sociedade. Nesse estado, os homens vivem em um estado de guerra até o momento em que o Estado intervém para impor a paz.

Dessa maneira, percebemos que, na realidade, há uma grande semelhança entre os pensamentos de Montesquieu e Hobbes no tocante ao desejo de dominação entre os homens. A divergência é que para Montesquieu, o estado de natureza é em primeiro lugar um estado de paz, que por sua vez, se desenvolverá em um estado de guerra.80

Esse estado de guerra começa pelo fato de os indivíduos terem consciência de sua força e quererem se destacar por isso. Os indivíduos tentam transformar em seu favor as principais vantagens da sociedade (MONTESQUIEU, 1979, p. 27). Essa situação fará com que os homens estabeleçam as leis.

Tendo analisado essas constatações de Montesquieu, observamos que, após o estabelecimento das sociedades, os homens tentam dominar uns aos outros. E, para que eles não vivam num estado de guerra, é preciso que as leis estabeleçam a ordem entre eles. Percebemos, assim, que as leis constituem um limite externo para reprimir o desejo de dominação que os homens possuem.

Por sua vez, esse desejo de dominação presente na natureza humana tem estreitas relações com a tendência humana de buscar mais poder. Assim, um governante com determinado

80É oportuno ressaltarmos ainda outro ponto de maior divergência entre o pensamento de Montesquieu e Hobbes.

Para o primeiro pensador, as relações de justiça existem antes do estabelecimento das leis (Montesquieu, 1979, p. 25). Por sua vez, para Hobbes, o estabelecimento da justiça depende da existência das leis positivas.

poder tentará abarcar mais poder. De acordo com as considerações de Montesquieu, isso faz parte da natureza humana.

Assim, Montesquieu diz que todo homem que tem poder sempre buscará mais poder, ele vai até onde encontrar limites. Como já ressaltado, o autor francês acredita que essa busca faz parte da natureza humana. Nesse sentido, destacamos a seguinte passagem da obra “Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e de sua Decadência”:

Enfim, a República foi oprimida, e não é a ambição de alguns particulares que devemos acusar por isso; é preciso acusar o homem, mais e mais ávido de poder à medida que mais o possui, e que tudo deseja tão-somente por possuir muito (MONTESQUIEU, 2002, p. 88).

Diante dessa característica humana, Montesquieu constata que a concentração de poderes na mão de uma só pessoa é fácil de ocorrer, uma vez que quem detém o poder tentará, de todas as maneiras, exceder as atribuições que possui. Dessa forma, deve haver limites externos à atuação do governante.

Em relação a esse pensamento de Montesquieu é oportuno destacarmos outra passagem em que o autor francês descreve o comportamento de alguém com poder:

Encontra-se liberdade política unicamente nos governos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos Estados moderados: só existe nesses últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites (1979, p. 148).

Por sua vez, quando Montesquieu trata do regime republicano ele diz que esse regime é o mais difícil de ser realizado, uma vez que a virtude política traz como consequência a renúncia a si próprio (1979, p. 54). Essa renúncia é penosa, ela parece entrar em choque com os desejos dos indivíduos.

Porém, como já mencionado, o fato de Montesquieu afirmar que os homens sempre desejam mais poder não constitui o único argumento que Montesquieu utiliza para afirmar que o regime despótico é o mais fácil de ser realizado. O fato de o homem com poder sempre procurar mais poder constitui mais um elemento que demonstra a facilidade da instauração do despotismo nas sociedades. Montesquieu não se interessa em fazer um estudo aprofundado sobre o ser humano. O interesse primordial de Montesquieu é analisar os regimes políticos.

Podemos afirmar, portanto, que há um fator antropológico que favorece a instauração do despotismo. Entretanto, existem outras causas, como por exemplo, o fato de o regime moderado exigir muitos requisitos para ser alcançado. Por sua vez, o regime despótico não depende de quase nada para se instaurar, ele somente precisa de paixões.

Dessa forma, observamos que Montesquieu utilizará também de um argumento indireto, ou seja, ele dirá que o despotismo é o regime mais fácil de ocorrer pelo fato de o regime moderado ser difícil de ser alcançado. Assim, observa-se uma inclinação dos governos a se tornarem regimes despóticos, o despotismo é o horizonte dos governos moderados. Essa ideia é expressa, de forma clara, na seguinte frase de Montesquieu: “Os rios correm para se juntar aos mares: as monarquias perdem-se no despotismo.” (1979, p. 121).

Cabe ainda ressaltarmos que apesar de as características tratadas nos tópicos anteriores desse capítulo somente retratarem aspectos negativos do despotismo, aspectos que contradizem o sentimento de amor que os homens têm pela liberdade, observa-se a tendência de se instaurar o despotismo e a dificuldade de se estabelecer um regime moderado. Assim, destacamos:

Depois de tudo que acabamos de dizer, pareceria que a natureza humana erguer-se-ia incessantemente contra o governo despótico. Mas apesar do amor dos homens pela liberdade, apesar de seu ódio contra a violência, a maioria dos homens está submetida a ela. Compreende-se isso facilmente. Para formar um governo moderado, é mister combinar os poderes, regulamentá-los, moderá-los e fazê-los agir; oferecer, por assim dizer, um lastro a um para colocá-lo em condição de resistir a outro; é uma obra-prima de legislação que o acaso raramente produz e que também raramente deixa-se à prudência fazer. Um governo despótico, pelo contrário, salta, por assim dizer, aos olhos; é uniforme em toda parte; como apenas paixões são necessárias para estabelecê-lo, todas as pessoas são úteis para isso (MONTESQUIEU, 1979, p. 74).

Constata-se, assim, que o regime despótico não surge em decorrência de situações que demandam esforço. Pelo contrário, esse regime se manifesta facilmente, basta que os homens sigam suas paixões. Frisamos o seguinte comentário de Grosrichard: “Deve-se concluir então que, de modo necessário, o despotismo existe embrionariamente em toda sociedade civil e política, pois é ela que engendra o desejo de domínio na natureza humana.” (1988, p. 67).

Dessa forma, Montesquieu naturaliza o regime despótico enquanto que o governo moderado passa a ser exceção, um regime difícil de ser realizado. O abuso do poder não é algo acidental, mas natural aos homens. Assim, os limites para as condutas dos indivíduos devem ser externos, eles não podem depender de decisões de cunho interior dos seres humanos. Mas, devemos nos lembrar que, se o despotismo é fácil de instaurar, é difícil de permanecer, uma vez que ele perece por causas internas, ele mesmo se destrói.

Sendo assim, tendo já exposto pontos importantes do regime despótico, como sua natureza, seu princípio, sua caracterização e a facilidade que esse regime tem de se manifestar, iremos analisar, no próximo capítulo, o fato de o governo despótico ser um regime autodestrutivo. Ademais, também trataremos das formas de prevenção ao regime despótico. Assim, investigaremos os meios que impedem a instauração desse regime sempre pronto para marcar a sua presença.

3 A CORRUPÇÃO DOS REGIMES E AS FORMAS DE PREVENÇÃO AO

DESPOTISMO