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De acordo com a nossa perspectiva de análise desenvolvida até aqui, a obra43 que nos serve de referência por tratar do tema morte e sua relação com a formação do médico, embora ampla, está incompleta. Ela não aborda a visão de morte que mais nos interessa, principalmente pela sua potencialidade educacional e transformadora, qual seja, a de que a morte é, independentemente de qualquer concepção - idealista, metafísica -, um fenômeno natural que qualquer espécie viva está sujeita e, de modo geral, está diretamente muito mais ligada às condições materiais de subsistência do que a qualquer outro fenômeno.

Assim, de acordo com o que já desenvolvemos, a morte está condicionada e é determinada para a maioria dos homens, pelo modo como estes mesmos organizam-se para produzir a vida. Nesse sentido, a ânsia em desvendar o “pós-morte” parece ser mais uma necessidade de criar fantasias na esperança de que superem as expectativas não preenchidas materialmente nesta vida, porém numa outra vida. O peso das más condições materiais medievais fazendo com que a morte se tornasse onipresente por séculos, parece-nos, ponto de vista algo semelhante ao de ARIÈS44, foi o que forçou o homem a criar outro mundo, melhor do que o real e com alguma esperança de, naquele local/mundo idealizado, pudesse viver e não só sobreviver e então driblar a morte a todo momento, como parece ter ocorrido no período medieval. Nalguns aspectos isto se repete na Modernidade, mas, esta postura, ainda que irregularmente, dissipar-se-á às vésperas do esgotamento do feudalismo.

43 ZAIDHAFT, S. Morte e formação médica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990,

44 ARIÈS, P. O homem diante da morte, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1981 citado por ZAIDHAFT (1990).

Um fenômeno que, pelas raízes da tradição, torna os homens alienados, apáticos, passivos e cúmplices nesta vida, de uma organização social classista, ideologicamente e materialmente sólida, com uma má distribuição que vai mostrando ser insustentável.

A medicina, mãos dadas com a morte e com a vida, não deve mais restringir sua ação ao âmbito exclusivo das ciências naturais, digo, promover ações curativas- preventivas munida apenas de instrumental herdado da biologia, física, química e seus derivados, uma herança moderna que ainda prende o médico a idéia de que tudo pode ser tratado exclusivamente por aquilo que pertence à área da saúde, por ele ou outro profissional da mesma área.

Neste sistema contraditório e dialético, é difícil considerar a medicina como ato sacerdotal45 pelas próprias condições dadas de conhecermos os mecanismos determinantes dessa própria realidade moderna que hoje se nos apresenta.

No início da modernidade a relação da medicina com a morte passa a ter um caráter diferente, o que é quase unanimidade para muitos autores. Neste período os homens já possuem condições materiais para explorar, cientificamente e racionalmente, a morte46.

"(...) Se, milenarmente, a vida trazia em si a ameaça de doença, e esta, ameaça de morte, no século XIX, a relação entre esses três termos passa a ser pensada cientificamente. Se, até o século XVIII, o médico tinha o olhar dirigido para a vida e a cura de doenças, sendo a morte uma ameaça sombria a seu desempenho, no século XIX, o olhar médico passa a se apoiar na morte como instrumento que possibilita apreender a verdade da vida e a natureza de seu mal(...)

O lema do início deste século é formulado por Xavier Bichat: “Abram alguns cadáveres: logo verão desaparecer a obscuridade que apenas a observação não pudera dissipar". (ZAIDHAFT 1990, p.97)

45 ZAIDHAFT 1990, p.95. Em relação ao período neolítico"(...) A medicina é sacerdotal... As funções

médicas são fruto de uma ação divina e o médico e sacerdote tem o poder de vida e morte sobre seus pacientes ... A doença e a morte, aqui, são consideradas como um castigo divino por infração de algum tabu(...)"

Então, o que se dá através da concreta relação entre o vivo - médico necroscopista que, de uma análise basicamente macroscópica47 dos órgãos do corpo, formaliza hipóteses diagnósticas e vai, gradativamente, munindo-se de equipamentos como microscópio e principalmente de conhecimentos advindos da física, química e biologia -, e o cadáver - paciente morto em função principalmente das próprias condições de vida48 determinadas pelo modo de produção da vida. Médicos dos séculos XVIII, XIX e boa parte do século XX talvez não considerassem que a interpretação das doenças poderia ser também um modo de conhecer a realidade de como os homens vivem em sociedade, digo, de reconhecerem que são as condições materiais que permitem os homens viverem mais ou menos tempo, com maior ou menor qualidade de vida, e em grupo.

O “tratamento” de mortos e, portanto, da morte no curso da história também foi diferente para cada uma das classes sociais. No século V os mortos ricos eram enterrados próximos dos santos enquanto os pobres eram enterrados na periferia das igrejas. A mortandade assustadora durante a Idade das Trevas fazia com que milhares de corpos fossem amontoados indiscriminadamente em covas coletivas, enquanto ricos eram enterrados nas igrejas. Crenças e religiões ao longo da história mediaram, e continuam mediando, a relação dos vivos com a morte e com seus mortos,

47 Cf. OLIVEIRA (1981) E MAFFEI (1978). Karl F. Rokitanski (1804-1878) – Médico que teve grande importância na área das doenças ocupacionais, chegando a realizar mais de 30.000 necropsias ao longo de sua vida profissional, sendo considerado o maior macroscopista da medicina moderna. Com o aprimoramento do microscópio e sua possibilidade de uso principalmente no século XIX, ele passará a sofrer oposição de Rudolph Virchow que além da macroscopia passou a usar a microscopia para formular teorias, hipóteses mais concretas, publicando por volta de 1858 trabalhos que revolucionariam a medicina teórica e prática. Segundo ele “(...) todas as manifestações vitais, fisiológicas e patológicas

são de natureza celular; a célula constitui o elemento figurado de toda manifestação vital e, por conseguinte, a doença depende de alterações de células ou complexos celulares, determinadas pelos agentes externos(...)”. Estes são os fundamentos da doutrina da Patologia Celular. A propósito, é

importante ressaltar que a trajetória de Virchow pode ser uma síntese do modelo médico que defendemos. Em vida ele pôde implicar o ato médico como uma ação principalmente política e, por outro lado, ele construiu as bases da patologia moderna. Passados 150 anos da sua obra, podemos hoje perceber que durante todo o século XX ele foi mais utilizado-cultuado como “Pai da Patologia” e agora no início do século XXI passa a ser também citado como um dos ícones da medicina social, que é aquela que estabelece uma relação entre as condições de vida e a gênese das doenças.

48 ENGELS, F. “A situação da classe trabalhadora em Inglaterra”, Porto:Afrontamento, 1975. Para maior riqueza de dados e detalhes sobre as condições materiais da sociedade capitalista industrial do século XIX é importante considerar esta obra que não é a única a tratar deste assunto. Nossa opção por ela se deve também ao fato de ter condensado vários relatórios médicos. Ainda que seja uma das nossas teses, o ambiente concreto que exigiu e permitiu a construção das bases da medicina moderna está até hoje presente no cotidiano dos médicos do século XXI de uma forma “matricial” ligada ao Capitalismo.

perpetuando uma cegueira que não permite ver a morte concreta e assim, nela mesma, suas raízes.

A impossibilidade material que permitisse evolução do pensamento médico fazendo com que houvesse, minimamente, uma interrupção da mortandade por pestes, nos leva a pensar que a visão de doença na Idade Média ainda encontrava explicação sobrenatural, não havendo qualquer ligação, parece-nos que as condições materiais eram determinantes e, assim, seguia-se queimando epilépticos e velhas como representantes do mal ou da bruxaria. Segundo HAGGARD (1941, p. 127) acerca do período de decadência do Império Romano,

“(...) En un pueblo cuya mente está sólo en cielo, que busca milagros y la ayuda de Dios, no hay lugar para la ciência, ni para la clase de Medicina que Hipócrates, e incluso Galeno, habian praticado; la fe, la esperanza y las oraciones habian sustituído a la ciencia(...)”.

Qualquer tentativa de desvendamento da realidade medieval na busca de soluções para doenças que dizimavam populações inteiras era visto como ofensa à ordem religiosa estabelecida que viria a compor solidamente a classe dominante ao longo da Idade Média. Nesse sentido, à religião católica e todo seu aparato, coube a posição, de um lado, confortadora, solidária de amenizar o processo de adoecimento e morte pela criação-sustentação da fantasia pós-morte e, de outro, em manter seu poderio hegemônico de classe dominante ao lado da nobreza. A posição de classe dominante determina uma visão de sociedade que mantenha o status quo da mesma. Daí a Inquisição. Associa-se a produção de conhecimento racional às religiões não católicas, as quais, por sua vez, apenas representavam os interesses de uma classe incipiente: burguesia.

No que se refere ao trabalho médico no período das cruzadas, HAGGARD (1941, p 161) retrata o alcance dele nos hospitais, período que sucedeu aquele em que a peste e o tifo, “transportados” pelos viajantes, tinham espalhado epidemia e morte pelo mundo:

“(...) En Grecia y en Roma, en la antiguidade, se miraba a los enfermos com cierto menosprecio... eran individuos com mala suerte, reprobados... Mas los cristianos creían

el que lo ayudaba compartía este privilegio y se acercaba más a la semejanza de Cristo. El cristianismo fundó el principio de que ayudar al enfermo y necesitado es un signo de fortaleza y no de debilidad. Y en consecuencia se fundaron órdenes religiosas para cuidar de los que se enfermaban y caían heridos durante las cruzadas... tales hospitales eran unos edificios rudimentarios, con paja esparcida por el suelo, en lugar de camas, y donde se daba comida e abrigo a los pacientes; los cuidados medicos eran insignificantes... se sabia muy poco de como cantagiaban las enfermedades(...).

Assim, através da ideologia da riqueza do reino dos céus e do teocentrismo, reforçado e vigiado pelos tribunais da Inquisição, ainda que de forma alienada, a Igreja Católica pôde manter os miseráveis quietos à espera do reino dos céus e também enriquecer com o processo de adoecimento e morte, pois, sabendo que nas condições materiais existentes, “pouco” seria feito para a recuperação dos doentes, os nobres entregavam fortunas para ter, noutra vida não terrena, aquilo que sabidamente não teriam nesta. À medicina medieval, que ignorou toda sapiência grega, coube, durante a Idade Média, somente amparar o miserável. Assim, esta prática médica confunde-se, digo, ela é propriamente o amparo psíquico, o conforto emocional que cuida do moribundo, mas não questiona as raízes dos males ou, se questiona, contenta-se com as respostas vindas por mensagens do céu, deuses, astros, santos, etc... Talvez, muito deste pensamento e comportamento estivesse relacionado às más condições materiais das sociedades. Todavia, sem comparações, pois tratamos de períodos históricos muito distintos - o medieval e o moderno -, há algo intrigante: passados séculos, notamos agora no século XXI, e considerando toda possibilidade técnica de satisfazer concretamente as necessidades materiais humanas mais básicas, o fato é que elas ainda não foram satisfeitas para a maior parte dos homens e nem parece que serão tão cedo no século XXI. E como não há satisfação material, há sensibilização-mobilização de segmentos da sociedade ao encontro dos efeitos da miséria, sem sabê-lo. É o que ocorre hoje com a medicina propalada pelo governo e por setores ligados à educação médica que defendem a inserção do médico em locais, na maioria das vezes, sem as mínimas condições básicas de vida para que, de um modo moderno-burguês, mas à sombra do modelo católico- medieval, os profissionais da área da saúde dividam a miséria e o sofrimento e, despojados de uma mínima formação política, comportem-se como ‘monges’. Segundo OLIVEIRA (1981, p.144),

“(...) A insistência no tema perante sucessivos Concílios revela a resistência encontrada da parte do clero em abrir mão das suas atividades médicas no meio mundano. É de justiça assinalar que o escopo dessas determinações não era interferir na obra de misericórdia desempenhada pelos religiosos e sim trazer ao adequado e prudente nível a assistência prestada, limitando-a ao apoio moral e aos serviços de enfermagem nos hospitais(...)”.

De acordo com ZAIDHARFT (1990), por volta do século XIV e XV nota-se uma mudança do modo como os homens passam a considerar a morte. Gradativamente ela vai tornando-se mais um fenômeno da natureza (fim da vida terrestre) e menos a passagem para um outro mundo. Esta visão será reforçada por uma noção de "individualidade" onde a alma separa-se do corpo, permitindo que este se transforme cada vez mais em objeto de estudo, investigação das causas da morte, ou seja, permitindo tentativas de desvendar os mecanismo das doenças que no final causavam a morte, de posse dos conhecimentos que já vinham sendo produzidos com base nas ciências naturais49. Embora possam existir inúmeras abordagens dos fenômenos vida e morte na transição da Idade Média para Idade Moderna, um fato inegável, baseado nos estudos daquele período e para quaisquer linhas interpretativas destes fenômenos, é que todos devemos considerar uma realidade onde a contradição intrínseca e inerente a estes mesmos fenômenos merecia uma resposta adequada, mas que só agora podia ser dada devido às novas condições materiais que se colocavam diante dos novos homens.

49 OLIVEIRA, A.B. A evolução da medicina até o século XX. São Paulo, Pioneira, 1981, p.371. “(...) A

orientação trazida por Magendie não limitou-se à fisiologia e à farmacologia, estendendo-se à patologia, dando-lhe um caráter mais amplo de uma fisiologia patológica. Segundo ele “La Medicine est la Physiologie de l’Homme Malade(...)”. No século XIX a medicina evolui com a física e a química

e, progressivamente vai tornando-se ciência. Não há “espaço” para lucubrações, raciocínios engenhosos e sedutores, e sim para observação e pesquisa. “(...)A medicina iria evoluir com as ciências e com a

pesquisa em surto magnífico no século XIX (...)”. Agora a moléstia era um episódio multifacetado onde

aliavam-se desvios funcionais e alterações patológicas variáveis. “(...) Essa é a denominada medicina

anátomo-patológico-clínica ou medicina hospitalar (...)”. A medicina hospitalar estreitava

progressivamente os laços com as ciências físicas e químicas. Sua base era a fisiopatologia. O destino das ciências agora estava ligado com a vinda da investigação e experimentação básica para o campo da biologia. Há uma série de aquisições dessa orientação pós revolucionária, como a “(...) síntese da uréia

(1828, Wohler); assimetria molecular (Pasteur, 1848); osmose (1897; Pfeffer); raios X (1895, Roentgen); radioatividade (1896, Becquerel); radium (1898, P. e M. Curie); energia quântica (1905, Einstein); definição de pH e índice de acidez (1909, Sorensen); (...)”. Essa expansão dos métodos

laboratoriais trouxe para a medicina clínica avanços na bacteriologia, anatomia patológica microscópica e na estatística. De especulativa, teórica e imaginativa, a medicina transformava-se em

Não são de outro período os pensamentos revolucionários de Galileu, Déscartes, Francis Bacon, etc, ao lado dos sinais de esgotamento do feudalismo. Ora, nas novas relações econômicas que vinham se estabelecendo entre os homens, o espaço para a hegemonia da classe dominante, digo, clero e nobreza, era cada vez menor. Parece-nos então adequado crer que a redução da mortalidade entre os homens fosse tornando-se uma tarefa inadiável. Desimpedidos das limitações anacrônicas da Igreja os homens podiam agora, ir diretamente a ela, morte, através da abertura dos cadáveres, na esperança de que encontrariam, quem sabe de forma clara, a causa mortis. Entendemos que, desde as primeiras dissecções imbuídas de intencionalidade50, seja em animais irracionais, seja em humanos, não poderia existir outra finalidade além daquela de conhecer o interior do corpo humano e, a partir da repetição do ato, que segundo Xavier Bichat51, “não precisava ser em demasia”, e das constatações advindas deste processo cognitivo que iam sendo compiladas em vários relatos e por de vários homens espalhados pela Europa, formava-se então, gradativamente, a idéia de doenças distintas. Nem sempre a causa pôde ser estabelecida com clareza ficando somente para a posteridade, seja no fim do século XIX e/ou ao longo do século XX. Algumas até hoje continuam a ser refeitas, reelaboradas, como podemos comprovar nas teorias acerca da etiologia do câncer.

Na perspectiva histórica que estamos desenvolvendo, o aspecto nuclear que interessa para que seja utilizado como elemento fundamental na organização da educação médica e que acreditamos que fará com que haja uma confluência de interesses além de poder aproximar, estabelecer e confirmar cientificamente inúmeras situações médicas é o da relação entre doença-morte ou vida-saúde X condições materiais determinadas a partir do modo de produção da vida. Portanto, a ligação histórica definitiva e incontestável entre a medicina e a estrutura econômica das sociedades se concretizará. Existe, portanto, um nexo material, histórico e dialético entre o modo como

50 Acreditamos que há diferença entre a dissecção e a retirada de vísceras com finalidade de embalsamamento, como no Antigo Egito, onde os profissionais incumbidos desta prática já tinham algum contato com os órgãos humanos, porém não interessando nestes casos, encontrar uma causa

mortis, isto é, estabelecer uma relação causal entre a morte, um ou mais órgãos alterados e uma

etiologia. Afinal, até o fim da Idade Média, grande parte dos povos e daqueles envolvidos com a tarefa de promover a saúde e afastar a doença e a morte acreditavam em causas místicas, espíritos, astrologia, entre outras causas sobrenaturais, mesmo encontrando alterações grosseiras nos órgãos.

o homem viveu e morreu ao longo do processo de evolução humana e o modo como produzia a vida.

É este desenvolvimento histórico que necessariamente determina readequações, reformulações teórico-práticas da medicina. Numa perspectiva futura para a medicina, ignorar este aspecto é acreditar que não existem novas possibilidades dos homens estabelecerem relações entre si senão aquela da expropriação material que é, radicalmente, uma das principais causas de doenças e mortes. A luta da medicina, embora não há muito tempo, tem estado restrita a ação curativa-preventiva, ontem, contra microorganismos e no nível assistencial hospitalar e, hoje, nas Unidades de Saúde Básicas, porém, ambas vinculadas, exclusivamente, à própria ação médica. Não há uma atuação da medicina no sentido de considerar seu campo de interferência no processo de desenvolvimento humano como algo mais amplo e, portanto, mais dependente de outros fatores, dados e informações oriundas de outras áreas do conhecimento. E como não poderá dominar os inúmeros campos do conhecimento, o médico deverá associar-se, cada vez mais, com áreas afins para estabelecer metas de ação, no mínimo para o Terceiro Mundo.

No princípio da Modernidade e de acordo com a definição de Medicina, parece- nos lógico, diante de tantas mortes em decorrência de males ainda incuráveis, que prosseguissem cada vez mais as dissecções ao encargo do médico, membro da sociedade e formalmente incumbido de encontrar “soluções para morte”. Além da riqueza de detalhes que começam a surgir a partir das dissecções na tentativa de entender os fenômenos ligados às doenças, associa-se o fato de que não era mais aceitável tamanho número de mortes, num capitalismo incipiente. Sem a crença total no paraíso, na vida eterna, a vida terrena deveria tornar-se mais longa. A morte progressivamente torna-se um incômodo sob todos os aspectos, mas principalmente o econômico.

Sem generalizações, é importante lembrarmos que os deslocamentos populacionais (geográficos) ao longo da história do homem - as diásporas, a navegação para as Índias, América, etc., os êxodos rurais, como aqueles ocorridos no início da modernidade com a Revolução Industrial e mesmo aqueles ocorridos na segunda metade do século XX pelo mundo -, tiveram, e continuam tendo, importância nalguma forma de reorganização da medicina – ensino e prática. Acreditamos que esta reorganização em

muitas situações se fez em função da economia ou como conseqüências dos modos de produção.

Mas, na modernidade, a medicina reorganiza-se principalmente para proteger o enriquecimento social. Segundo ZAIDHAFT (1990) desde o século XVIII, o médico já sofria pressão dos poderosos, desejosos de riqueza, para lutar contra a morte e fazê-la recuar, embora até o século XIX o médico seja mais um espectador da morte, nada ou muito pouco podendo fazer para evitá-la. Tratava-se de promover a saúde do proletariado, de onde vem a força de trabalho que seria vendida e de onde se poderia