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CAPÍTULO I A PERGUNTA DE AUMONT –

1.5 A potência do silêncio

Sylvain Maresca (2012, p. 38), sociólogo e estudioso francês de fotografia, afirma que muitos fotógrafos “[...] não fornecem as chaves de suas imagens como títulos ou e qualquer tipo de ‘explicação’ que pode estar ou não relacionada com sua vida, suas escolhas, seus gostos, etc. Não haveria nada decisivo para fazer ‘ante a imagem’.” Tais fotógrafos acreditam que seu silêncio sobre a imagem “seria o melhor cumprimento” (ibidem, p. 39). Dessa forma, estariam eles preservando o mistério e a magia da imagem. Maresca insiste na questão do silêncio das imagens e pergunta: “E se o mutismo tivesse algo de essencial a nos fazer apreender, a nos fazer descobrir?” (Ibidem). Viver sem a interpretação, preferir a sensação, tirar os pés do chão, criar as próprias perguntas, permitir as próprias sensações e o próprio silêncio: talvez seja essa a proposta de Maresca ante a imagem.

Jorge Coli (2012, p. 46) acredita que “[...] as palavras não conseguem apreender as obras: podem ser, no melhor dos casos, indicativas de intuições mudas.” Coli (ibidem, p. 40) também escreve que

O mutismo da fotografia tem algo de obstinado nos antípodas das volutas delgadas da inteligência abstrata. Tal maneira de resistir em silêncio a desserve e passamos rapidamente demais sobre essas imagens que não querem nada dizer. Mas seu mutismo encobre ao mesmo tempo uma grande força, feita de circunspeção e vigilância, nas quais poderíamos nos inspirar para não pensar rapidamente demais, nem fora do real.

O cineasta francês Claude Sautet (1924-2000) comunga tal ideia. Em entrevista concedida a Laurent Tirard (2013, p. 45), diz que as cenas de silêncio, não raras vezes prolongadas em seus filmes, não servem para transmitir algum tipo de informação, “[...] mas, ao contrário, para expressar o que está acontecendo por trás das palavras e o que, de modo geral, não se disse.” Sua experiência mostrou que, muitas vezes, “[...] o ator que olha fixamente tem mais presença de um ator que fala.”

(Ibidem, p. 48, tradução nossa). Ele está convencido de que o silêncio pode “irradiar força e sensibilidade” (ibidem, p. 49, tradução nossa).

Em uma visita à exposição de parte do acervo Joan Miró15, um

guia, em voz muito alta, além de passar algumas informações sobre a obra, o criador e a criatura, insistia em expressar sua própria interpretação a um grupo que o seguia. A exposição era um convite claro ao diálogo silencioso entre a imagem e a pessoa que olha: um convite à perturbação, ao desequilíbrio, à imaginação, à surpresa, ao pensamento enfim. A exposição era uma provocação ao pensamento que, diante do quadro, poderia correr para todos os lados. Era uma exposição de imagem e sensações percorridas no silêncio e na solidão de quem as olha na busca de seu próprio deciframento. Roland Barthes (2013, p. 15) diria estar “só e desarmado” diante da imagem. Sem sabê- lo, aquelas pessoas que visitavam a exposição perderam, talvez, uma possibilidade única de conectar-se profundamente consigo, deixando que aquela imagem explodisse em milhares de outras, que o prazer ou a emoção corressem pelas veias. Elas perderam, talvez, a chance de uma descoberta de si e de novos pensamentos como algo que lhes permitisse serem cocriadoras daquela imagem que estava imóvel e misteriosa diante de si e “[...] lançar-se na prova paradoxal de não saber [...], de

pensar o elemento do não saber que nos deslumbra toda vez que

pousamos nosso olhar sobre uma imagem da arte.” (DIDI- HUBERMAN, 2013, p. 16). Perderam, talvez, a oportunidade de que novos problemas emergissem a partir de um ato silencioso e inquietante daquela presença fascinante. Essas pessoas, conduzidas pelo saber acadêmico e talvez pouco apurado de seu guia, perderam, quiçá, a possibilidade de experimentar o “choque”, de serem pegas de surpresa e carregadas pelos “labirínticos trajetos de sentido” (ibidem, p. 29) provocados pelas imagens de Joan Miró.

No famoso Abecedário de Gilles Deleuze, o próprio Deleuze comenta que existem situações em que não há necessidade de nenhuma especialização para contemplar uma obra de arte, porque existem “emoções extraordinárias, autênticas, extraordinariamente violentas, em uma total ignorância da pintura” – ou de qualquer outra arte. As pessoas sabem, por exemplo, que não precisa ser estudioso de música para admirar uma canção. Esta é, sem dúvida, uma experiência bastante comum. No mesmo texto, Deleuze ainda comenta que nem sempre existe a necessidade de compreender; em alguns casos, o mais

15 Exposição chamada “Joan Miró – a força da matéria”, realizada no Museu de Arte de

importante é apreciar, deixar-se tocar por uma emoção profunda e singular. O que Deleuze sugere é que existem diferentes possibilidades de leituras e de encontros respeitosos entre áreas diversas e que a sensibilidade não é necessariamente uma questão de academia.

Muitas daquelas pessoas foram à exposição de Miró, de certa forma, enquadradas, aprisionadas pelas palavras transformadas em “interpretação” na voz do “guia”. Tal episódio remete a uma importante observação de Didi-Huberman (2013, p. 11) quando chama a atenção sobre certas imposições realizadas por interpretações dadas às imagens, de modo especial pelos historiadores de arte:

Os livros de história da arte, [...] sabem nos dar a impressão de um objeto verdadeiramente apreendido e reconhecido em todas as suas faces, como um passado elucidado sem resto. Tudo ali parece visível, discernido. Sai o princípio da incerteza. Todo visível parece lido, decifrado segundo a semiologia segura – apodíctica – de um diagnóstico médico. E tudo isto constitui, dizem,

uma ciência, fundada em última instância sobre a

certeza de que a representação funciona unitariamente, de que ela é um espelho exato ou um vidro transparente, e de que, no nível imediato (“natural”) ou então transcendental (“simbólico”), ela terá sabido traduzir todos os conceitos em imagens, todas as imagens em conceitos.

... Nossa indagação é, portanto a seguinte: que obscuras ou triunfantes razões, que angústias mortais ou que exaltação maníaca puderam levar a história da arte a adotar esse tom, essa retórica da certeza?

Parece que Didi-Huberman, assim como Maresca (2012), Coli e Sautet (2012), convoca a romper com a palavra, a borrar o saber instituído e, consequentemente, a lutar pelo silêncio e pelos mistérios diante da imagem. Didi-Huberman (2013, p. 24, grifo do autor) escreve sobre a possibilidade de “deixar-se desprender do saber sobre ela”. Lutar pelo silêncio da imagem para que o saber, o dito seja abalado e o não saber transborde em “constelações inteiras de sentidos” (ibidem, p. 26). Lutar pelo silêncio diante da imagem é, portanto, arriscar-se ou perder-se quem sabe. É poder ir, talvez, aonde ainda ninguém foi.

Não apenas o silêncio, mas sobretudo ele, pode nos afastar da interpretação, da sobrecodificação e nos possibilitar experimentar sentidos, como tem provocado Foucault por meio de seus escritos. Diante de uma imagem, de modo particular telas como as de Miró, nem sempre há necessidade de buscar sua origem ou “o que o autor quis dizer com...”. Essa fórmula precisa ser problematizada, interrompida, recriada; talvez invertida. Quem sabe, usando outra matriz: “o que eu sinto quando olho...”. Na linha do pensamento deleuziano e foucaultiano, o que está proposto é “rachar” a imagem, penetrar a imagem a partir do que se olha e de quem a olha, buscar um pensamento novo, uma nova energia (DELEUZE, 2010), sem preocupar-se com um passado. Didi-Huberman (2013), acompanhando, de certa forma, esse raciocínio, escreve sobre a ideia de “abrir a imagem”. Mais precisamente, ele propõe “pelo menos fazer uma incisão, rasgar” (ibidem, p. 185). Para ele, seguindo um tom nietzschiano, isto significa “[...] debater-se nas malhas que todo conhecimento impõe e busca dar ao gesto mesmo de debate – gesto em seu fundo doloroso, sem fim – uma espécie de valor intempestivo, [...] incisivo.” (Ibidem, grifos do autor).