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CAPÍTULO I A PERGUNTA DE AUMONT –

1.8 Imagem e pensamento

Samain (2012, p. 16), na apresentação do livro Como pensam as

imagens, escreve que “[...] somos [...] ‘observadores’ condicionados

tanto pelos nossos modos de ver como pela peculiaridade com que as imagens olham para nós.” Esse antropólogo, professor e fotógrafo acredita que as imagens existem, vivem e nos fazem viver. Os maias sabiam disso; o cristianismo fez “milagres”, e o nazismo, horrores por meio de seus signos. Parafraseando um velho ditado alemão25, parece

que deus e o diabo se escondem mesmo nas imagens. Samain fez uma

instigante pergunta em torno da temática: “Será que as imagens poderiam ‘pensar’, elas que são meros objetos desprovidos de

consciência, embora não de vida?” Para tentar responder a esta questão

ele apostou em três proposições. Primeiramente, Samain destacou que

25

“[...] toda imagem nos oferece algo para pensar: ora um pedaço de real para roer, ora uma faísca de imaginário para sonhar [...]” (2012, p. 22, grifos do autor). A imagem possui, portanto, uma força capaz de produzir movimentos de pensamento. De certa forma, é ela que coloca o pensamento em funcionamento, como já havia descrito Bergson em vários de seus estudos. Elas fazem pensar e podem nos mover em diversas e muitas vezes improváveis direções, como nos exemplos anteriores do professor Isak, em Morangos Silvestres, e da tia Lucia, em

Aquarius.

Em segundo lugar, Samain escreveu que “[...] toda imagem é

portadora de um pensamento, isto é, veicula pensamentos [...]” (ibidem,

grifos do autor). Ela veicula criações de quem a produz, da mesma forma que também quem a vê torna-se seu recriador. Seja uma foto, uma pintura ou um filme, a imagem estará encharcada de quem a criou, mas também de quem a olha. Dito de outra forma, entre quem a produz e quem apenas a olha, cria-se um campo de forças cujos deslocamentos são difíceis de prever: suas escolhas, suas emoções, sua história ou seus sonhos e seus amores poderão resultar em estranhas composições, como se pode observar na fala das crianças investigadas por Giraldello e Orifino (2009), por exemplo, ou mesmo a partir simples observações empíricas.

Há situações em que a autoria de uma obra pode ser reconhecida de longe. Seu corpo e sua vida estão lá, de alguma forma, presentes na imagem. São seus pensamentos que vazam para fora e põem-se a correr, deixando um inconfundível rastro de si – o seu estilo. Quem cria se torna tela, tinta, pincel, livro, filme, música, poesia, pedra, escultura. O

sétimo selo (1957), de Ingmar Bergman, é um dentre inúmeros de

exemplos. Considerado um dos mais importantes filmes da história do cinema, ele é composto por alguns fragmentos da memória da infância do cineasta. Uma das cenas mais espetaculares – o jogo de xadrez entre

Antonius (o cavaleiro) com a morte – foi inspirada num afresco do

pintor sueco Albertus Pictor (possivelmente realizado por volta de 1480), presente na igreja Härkebega, na cidade natal do cineasta, Uppland (Suécia). O próprio figurino dos atores e atrizes do filme, Mia (Bibi Anderson) e Jof (Nils Poppe), é uma réplica das figuras desse afresco que Bergman viu quando criança. Bergman presenteou o/a espectador/a com essa obra noutra importante cena entre o pintor

Albertus Pictor (Gunnar Olsson) e o escudeiro Jöns (Gunnar

Björnstrand), trazendo para a tela os afrescos que povoaram a sua infância e fazendo, ao mesmo tempo, uma bela homenagem ao pintor sueco quatrocentista. Esta contaminação da vida e da história do autor

sobre sua obra é bastante comum. Muitas vezes o artista quer homenagear alguém ou alguma coisa que lhe foi importante, assim como o fez Chagall (1887-1985), que, em uma de suas obras, pintou, discretamente, seu avô, sentado num telhado, perturbando o olhar de quem observa, que, a princípio, não saberá quem é.

Assim, correndo para fora de si, é para o encontro com aquele que olha que o artista se lança ao mundo sem parar. Encontro entre o pensamento do artista, a obra e o espectador, cuja reação pode ser uma explosão de novas possibilidades. Ou seja, 1+1+1 não é mais igual a três, mas igual a n. Algo novo, reinventado, aparece. Frida Kahlo (1907- 1954) pode ser mais uma das instigantes provocações dessa ideia; intensidades de sua vida transformam-se em telas que, ao serem observadas, podem ganhar imprevisíveis sentidos. A artista, em uma de suas entrevistas, afirmou que não se considerava uma pintora surrealista, conforme lhe haviam enquadrado, pois ela pintava apenas sua própria realidade.

Artista, obra e assistente podem constituir-se numa espécie de triângulo em que cada parte afeta e é afetada pela outra continuamente, cujos sentidos perturbam e são perturbados sem parar. Não se trata aqui certamente do triângulo edipiano a que Deleuze e Guattari (2014) se referem. Para eles, existe uma espécie de matriz ou de marca d’água que contaminou, de modo especial, o Ocidente, onde o trinômio pai-mãe- filho constituiu-se num modelo hierarquizado de submissão, controle e culpabilização, produzindo sem cessar relações doentias. Trata-se, sim, de um triângulo que altera o equilíbrio do par, do binômio, e estremece a ordem. Neste caso, o encontro entre obra, artista e assistente pode criar movimentos intensos de perturbação e de deslocamentos imprevisíveis: um bloco de intensidades em que hierarquias podem muito bem ser desmanchadas; um sistema neural de circuitos de sentidos opera nesse triângulo. Para Saiman (ibidem, p. 23, grifos do autor), “[...] toda imagem é uma memória de memórias, um grande jardim de arquivos declaradamente vivos [...]”, como já havia sinalizado Aby Warburg (2013).

A terceira e última hipótese de Samain (2012) sobre a relação entre imagem e pensamento, além de ambígua, é questionável, como ele próprio reconhece ao afirmar que ela é um tanto “imaginária”. É, sem dúvida, uma tese instigante. Inspirado por Jean-Luc Godard, Samain escreveu: “Ouso dizer que a imagem – toda imagem – é uma ‘forma que

pensa’ [...]” (2012, p. 23 – grifo do autor). Para ele, “as imagens seriam

formas, que entre si se comunicam e dialogam” (ibidem), inclusive, independentemente de seus autores e observadores. Como isto seria

possível? Segundo o autor, por meio de seus códigos sígnicos: “[...] ao combinar nela [...] traços, cores, movimentos, vazios, relevos e outras tantas pontuações sensíveis e sensoriais ou associar-se com outra(s) imagem(ns), seria uma forma que pensar [...]” (ibidem, grifo do autor). Tais dados seriam, portanto, forças responsáveis por perturbar o pensamento, colocando-o em movimento (criador de ideias e sentimentos). Um cenário fílmico (mise-en-scène) pela sua composição, pela sua articulação entre as imagens, por exemplo, cria um sentido articulando um conjunto de memórias num efeito tipo cascata, uma imagem vai “puxando” outra (uma mesa, um vaso um quadro, um copo, um vestido, e assim por diante). Mais adiante, Samain escreve: “Uma imagem forte é uma ‘forma que pensa e nos ajuda a pensar’.” (Ibidem, p. 24).

Afinal, as imagens pensam ou não, são elas vivas ou não? Samain apresenta de um ponto de vista mais amplo, o raciocínio de Gregory Bateson. Para este estudioso da comunicação, “[...] o que pensa é o sistema na sua totalidade, engajado num processo de tentativa e erro, e que é composto do ‘homem’ mais seu ambiente [...]” (apud SAMAIN, 2012, p. 26). Parece que há aqui uma aproximação ao argumento de Aumont anteriormente apresentado. Talvez Bateson e Samain tenham deixado escapar a linha da distorção, da imaginação, que pode muito bem correr por fora dos limites da cultura e fazer proliferar por lugares não antes visitados.

Enquanto Samain se refere à imagem como um “grande jardim de arquivos vivos”, com Deleuze e Guattari (2014), poder-se-ia pensar as imagens como um agenciamento maquínico. Isto é, entendê-las como esse lugar de movimentos e de multiplicidade, de posições heterogêneas e de possibilidades, de arranjos, de negociações, de afetos, de traições, de desobediências produzidas por forças potencializadoras internas e externas que nunca cessam de criar conexões entre si e com outros agenciamentos (igrejas, estado, família, mídias, economia, etc.), cujos resultados podem ser imprevisíveis.

Uma tela, um filme ou uma fotografia, por exemplo, podem ser compreendidos como um agenciamento imagético que pertence, em última instância, ao mundo mas, quando “separados”, transformam-se imediatamente noutra multiplicidade – uma nova multiplicidade aparece –, porém conectada à anterior e a outros mais. Tais arranjos e conexões possibilitam “um mundo de criações” (SILVA, 2011, p. 11) capaz de desestabilizar continuamente o território e seus seres. “Sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um

processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante [...]”, escreve Samain (2012, p. 31).

Deleuze e Guattari (1995) denominaram agenciamento coletivo cada ser ou cada conjunto de seres que está no todo, e vice-versa; uns afetando aos outros por graus de força que cada um disponibiliza para viver. Isso corresponde tanto aos diálogos entre as imagens proposto por Samain quanto à noção de sobrevivência proposto por Warburg, conforme mencionado anteriormente. As cadeias imagéticas, assim constituídas de dados sígnicos em profusão, poderiam ser compreendidas também como um corpo sem órgãos – conceito precioso apresentado por Deleuze e Guattari (1995) para explicar esses tipos de territórios constituídos por multiplicidades ultraconectadas e disformes.

Imagens e pensamentos são, portanto, duas cabeças do mesmo corpo, que agem em sintonia mas não necessariamente em harmonia. Jogam o tempo todo para ver quem chegou primeiro e como uma dimensão pode modificar a outra, num contínuo processo de criação, deformação e transformação.