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CAPÍTULO I A PERGUNTA DE AUMONT –

1.6 Imagem, paixão e loucura

Uma superfície branca nunca é algo vazio. Em A imagem-

movimento: cinema 1, Deleuze (2004, p. 26) já chamava a atenção sobre

a ideia de vazio quando escreveu que “Se nós vemos poucas coisas numa imagem, é porque não sabemos lê-la bem, avaliamos mal a rarefação como a saturação”. Uma superfície “em branco” está, portanto, cheia de pensamentos de seu criador e de seu observador. Deleuze (2007) foi perspicaz ao constatar isso quando analisou a obra de Francis Bacon (1909-1992): “Seria um erro acreditar que o pintor trabalha sobre uma superfície em branco e virgem [...]. A superfície já está investida virtualmente por todo tipo de clichê com os quais é necessário romper [...]” (2007, p. 19). A tela cheia será varrida por seu criador. Ele pode “escolher” o que pintar, o que escrever, o que captar. A imagem criada é, de certa forma, um estado de núpcias entre criador e criatura; ao mesmo tempo implica um luto, o abandono que toda escolha envolve. Talvez seja por isso que o criador tem dificuldade de fazer a sua obra final: sempre há algo a dizer e dizer melhor, dizer novamente com mais ou menos força, ou recuperar aquilo que inicialmente abandonou. Ou, ainda, porque vive outro momento, ouviu outras

sonoridades, viu outras paisagens, encarnou outros sofrimentos ou outras alegrias.

Da mesma forma, Francis Bacon ou Munch (1863-1944), quando repintaram algumas de suas telas, elas mesmas já eram outras telas16.

Sautet disse certa vez a Tirard (2013, p. 49): “[...] nunca me senti de todo satisfeito com nenhum de meus filmes.” Dificilmente um criador para de pintar, de escrever, de esculpir, de atuar. O movimento de fora para dentro e de dentro para fora não cessa, podendo enlouquecer o criador. Pode-se pensar que, num processo criativo, o dentro e o fora e suas próprias extremidades se confundem ou, quem sabe, compartilham o mesmo tempo/espaço. Parece que é disso que o novo, o inédito, o singular aparece numa obra de arte. A origem, a “essência”, o centro: tudo desaparece. Parece que o criador fica, de algum modo, escravo de sua criatura, talvez de si mesmo, quem sabe de suas imagens. São conhecidos aspectos da vida de Vincent Willem van Gogh (1853-1890), Frida Kahlo, Paul Jackson Pollock (1912-1956) ou Francis Bacon, que tiveram, por exemplo, suas vidas e obras marcadas pela criação, beleza, sensibilidade, dor e muito trabalho. Vincent, mesmo deprimido, nos seus últimos 70 dias de vida na cidadezinha de Auvers-sur-Oise, pintou 72 quadros, 33 desenhos e uma gravura, conforme relatos biográficos. Warburg, ao envolver-se profundamente com suas pesquisas sobre as imagens, “entregou-se ao risco de uma perda completa de si”, escreveu Didi-Huberman (2013, p. 22). Do mesmo modo, é conhecida a história de sofrimento que atravessou parte da vida de Nietzsche enquanto produzia uma das mais importantes obras filosóficas da história. Deleuze (1998, p. 23) fez uma observação interessante sobre a potência dos grandes pensadores enquanto conversava com Claire Parnet: “Todos esses pensadores têm uma constituição frágil e, no entanto, são atravessados por uma vida insuperável. Eles procedem apenas por uma potência positiva e de afirmação. Têm uma espécie de culto da vida.” Na mesma conversa, Deleuze (ibidem) diz ainda: “[...] dir-se-ia que alguma coisa se passa entre eles, com velocidades e intensidades diferentes, que não está nem em uns nem em outros, mas realmente no espaço ideal que

16 No caso da tela de Munch, a “[...] ideia inicial, o quadro trazia apenas um homem de

cartola, de costas para o observador, olhando para o céu. Só depois Munch decidiu inserir uma figura meio andrógina na cena, com uma expressão de desespero. Especialistas supõem que ela foi inspirada em uma múmia peruana que o pintor teria visto na exposição Universelle, em Paris, no final dos anos de 1880. Ela foi enterrada em posição fetal, com as mãos ao lado do rosto. A mesma múmia também teria inspirado Paul Gauguin, artista e amigo de Munch, em duas de suas obras.” (Disponível em:

já não faz parte da história, e tampouco é um diálogo de mortos, mas uma conversa interestelar.”

Quando o corpo não aguenta mais pintar, escrever, cantar, filmar ou compor, pode adoecer ou morrer. Na pobreza, sem saúde e sem perspectivas, Vincent tirou sua própria vida. Dizem o mesmo de Gauguin (1848-1903), pintor e amigo de Van Gogh. “Escrever para não morrer [...]”, como dizia Blanchot, ou talvez mesmo “falar para não morrer” escreveu Foucault (2013, p. 48). Em seu livro Assim falou

Zaratustra, Nietzsche (2011, p. 82), em tom quase profético, diz “Criar

– eis a libertação do sofrer, e o que torna a vida leve. Mas para que haja o criador, é necessário sofrimento, e muita transformação.” Mais adiante continua falando sobre a criação e o artista: “Sim, é preciso que haja muitos amargos morreres em vossa vida, ó criadores! Assim sereis defensores e justificadores de toda a transitoriedade [...]” (ibidem). Em

Nas ilhas bem aventuradas, Nietzsche (ibidem, p. 83) escreve sobre a

vontade criadora que está vinculada ao sofrimento e ao desejo, bem como à alegria de “gerar”:

Em verdade, através de cem almas percorri meu caminho, e de cem berços e dores de parto. Muitas vezes me despedi, conheço as pungentes horas finais.

Mas assim quer minha vontade criadora, meu destino. Ou para dizê-lo mais honestamente: é justamente este destino - o que deseja a minha vontade.

Tudo o que sente sofre comigo e está em cadeia: mas meu querer sempre vem como meu libertador e portador de alegria. Querer liberta: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade – assim Zaratustra a ensina a vós.