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A PREENSÃO PERSECUTÓRIA E A PULSÃO DE MORTE

Estou sirgando, mas o velame foge

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A TEUS PÉS: a potência do sensível

A dor que equivale à perda – inscrição primordial da solidão e da morte – abre um buraco negro psíquico sem representação possível. A essa configuração do vazio, Lacan denominou Das Ding (a Coisa), o que do real padece de significante:

Essa Coisa, o que do real – entendam aqui um real que não temos ainda que limitar, o real em sua totalidade, tanto o real que é o do sujeito, quanto o real com o qual ele lida como sendo exterior – o que, do real primordial, diremos, padece do significante.416

Não há como deixar de relacionar essas reflexões ao seguinte poema de Ana Cristina, que escancara mesmo a falta de significante de algo que ela denomina

coisa :

Onze horas Hoje comprei um bloco novo.

Pensei: a você o bloco, a você meu oco. Ao lápis a mão e os pensamentos em coro Me sugeriam rimas e sons mortos.

Para, coisa. Se oculta, rosto. Cessa estes ecos porcos,

Esta imundície coxa, este braço torto Reabre o tapume verde do poço, Salta dentro, ao negrume tosco E se nada resta afoga-se no lodo Para que sobre o resto do nada, o sono.

(Sussurro) Euvocê.417

Embora tenha inserido aqui esse texto, deixo a interpretação ao sabor da leitura, pois ainda voltarei a esse poema. Por hora, retomo Maurice Blanchot para continuar pensando a Preensão persecutória e a Pulsão de morte.

Ao analisar, em O livro por vir, a obra de alguns escritores como Proust, Musil, Henry James, Joubert (o escritor sem nenhuma publicação), Blanchot conclui que algumas pessoas se submetem a uma condição, um fascínio incessante pelo gesto de escrever, que atua como o canto das sereias que arrasta os homens para o fundo do

416LACAN. A ética da psicanálise, p. 149. 417CESAR. Inéditos e dispersos, p. 31.

195 mar. Essa seria uma estranha experiência na qual se colocaria em causa apenas a obra em si mesma – no sentido do seu conjunto, cuja função tradicional dividiria seu espaço com uma espécie de compulsão que, de certa forma, obrigaria o escritor a vivenciar, intensamente e de modo imperativo, o que Blanchot denomina a experiência da escrita .

Já citado no item anterior para o estabelecimento de uma aproximação entre o poema total de Henriqueta Lisboa e o livro de Mallarmé, retomo o texto A experiência de Mallarmé ,418 no qual Blanchot analisa a frase Senti sintomas deveras

inquietantes causados pelo ato só de escrever . O que importa são essas últimas palavras, diz Blanchot, pois escrever apresenta-se como uma situação extrema que supõe uma reviravolta radical 419 e em que Mallarmé reconhece um duplo estado da

fala, difícil de apreender, mas que pode ser definida por uma palavra: silêncio.

Silêncio puro, a fala em estado bruto: ... talvez bastasse a cada um, a fim de permutar a fala humana, tomar ou por na mão de outrem, uma moeda... Silenciosa, portanto, porque nula, pura ausência de palavras, permuta pura em que nada se troca, onde nada existe de real a não ser o movimento de permuta, que nada é.420

O exemplo de silêncio nesse excerto – tomar ou pôr na mão de outrem uma moeda – o filósofo identifica com a poesia: a fala em estado bruto e a fala essencial. A primeira seria relacionada com a realidade das coisas representadas pelas palavras, enquanto a segunda – a fala essencial – seria aquela que faz as coisas desaparecem, pois ela somente faz alusões, sugere, evoca como o faz a poesia. A fala e o pensamento são, para ele, o modo de apreender um fato ausente, porque pensar é fala pura , é escrever sem acessórios, nem murmúrios [...] Somos tentados a dizer, portanto, que a linguagem do pensamento é, por excelência, a linguagem poética [...] .421

Se a experiência pessoal de Mallarmé – como diz Blanchot – começa a partir de certo abandono da obra escrita (aquela na qual estão os poemas, por exemplo) em direção a uma busca pela origem da obra e quer identificar-se com a visão horrível da

418BLANCHOT. O espaço literário, p. 31-42. 419

BLANCHOT. O espaço literário, p. 31.

420BLANCHOT. O espaço literário, p. 32. 421BLANCHOT. O espaço literário, p. 32.

196 obra pura , penso que há, aqui, um momento em que se pode interceptar uma analogia com a Preensão persecutória. E mais, que essa Preensão persecutória pode ser análoga à Pulsão de morte, inclusive porque a escrita é o poder que as palavras têm de fazer aparecer as coisas e ao mesmo tempo de fazê-las desaparecer.

Esse momento, para Mallarmé, é o que Blanchot identifica como a experiência com o Igitur: experiência que só pode ser interrogada se se tiver alcançado um ponto mais central do espaço literário [...] e que é um exemplo perfeito do suicídio filosófico .422 Mallarmé se encontra nesse ponto em que a importância da escrita se

resume apenas no ato só de escrever ; o que não pode parar de falar – sua poesia, seu pensamento – prolifera-se em ecos no seu Livro absoluto . Esse movimento é o que Blanchot identifica como a experiência da escrita :

Sugere que o poema, para Mallarmé, depende de uma relação profunda com a morte, só é possível se a morte for possível, se, pelo sacrifício e a tensão a que o poeta se expõe, ela se converter no poeta em poder, possibilidade, se ela for um ato, o ato por excelência. A morte é o único ato possível.423

Nesse ponto, de que o poema depende de uma relação profunda com a morte e acontece no silêncio da obra, retomo a noção de Preensão persecutória, noção intrigante para a qual Blanchot usa como metáfora a mão que escreve – a mão doente – e a outra mão, aquela que conseguirá (ou não) fazer parar a escrita.

Blanchot, curiosamente, viveu quase toda a sua vida debruçado também sobre a escrita, a leitura, a reflexão e deixando, em seus livros, a reverberação de seus pensamentos sobre uma geografia outra: o ato de escrever. Do exercício desse pensamento, vaza pelo aberto de uma voz que se calou em 2003, a chama de uma escrita reflexiva que ronda e atravessa o muro do significante, alcançando o outro lado do pensamento e fazendo surgir um sem-número de questões que cintilam entre pensamento, escrita, vida e morte.

Ele deixa um pensamento sobre a escrita como uma estranha e inquietante aproximação com a morte – talvez um devir-morte que pensa a morte como algo que o ser humano tem que reconhecer, aprender a encontrar. Uma escrita outra, cindida

422BLANCHOT. O espaço literário, p. 37. 423BLANCHOT. O espaço literário, p. 37.

197 de abismos e (im)possibilidades, eco de uma narrativa que atravessa singularidades e explora os limites da linguagem, os pontos de fuga, as dobras. Dessa força do escrever deriva a obsessão do escritor, que só consegue navegar por meio da obra, revelando nela as infinitas possibilidades da criação, da repetição da morte mesmo, pois morrer não tem fim.

O paradoxo das reflexões de Blanchot encontra-se nessa ideia de que, sem usar a mão doente , ainda assim o escritor continua a escrever – como Mallarmé em seu livro absoluto –, pois ele pertence a uma linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro, que nada revela [...] aí onde está, só fala o ser – o que significa que a palavra já não fala mas é, mas consagra-se, à pura passividade do ser .424

A partir dessa analogia entre o poema total de Henriqueta Lisboa e o Livro de Mallarmé – reitero que essa poetisa viveu, de fato, sob uma exigência que a apreendia ao olhar da incessante e interminável escrita. Se a Preensão persecutória tentou segurar a sua mão doente , impedindo-a com a tentação do poema total, com certeza ela viveu para sempre sob ameaça. Se a escrita continua acontecendo por meio do trabalho de tradução como suplemento, a hipótese é de que isso aconteceu porque o imperativo da escrita, seguido de perto pela ameaça da Preensão

persecutória, assim a obrigava.

A sua experiência – ela sabe e verbaliza – é da ordem do júbilo e da tormenta, pois escrever interminavelmente, sem ter a opção de parar, com certeza não é uma experiência confortável porque não há escolha, é como uma necessidade que a obriga a escrever. Esse o seu tormento e esse também o seu júbilo: escrever e resistir. Poderia dizer: escrever para não morrer.

No ato da escrita, um embate de forças: uma consiste no poder de parar a mão do escritor – a Preensão persecutória –, e a outra, na impossibilidade de não escrever, da necessidade de atender à Pulsão poética. Essa força, que tenta parar a mão do escritor, é análoga à força da pulsão de morte:

Acontece que um homem que segura um lápis, mesmo que queira fortemente soltá-lo, sua mão, entretanto, não o solta, ela fecha-se mais, longe de abrir. A outra mão intervém com mais êxito, mas vê-

198 se então a mão a que se pode chamar doente esboçar um leve movimento e tentar retomar o objeto que se distancia. O que é estranho é a lentidão desse movimento. A mão move-se num tempo pouco humano, que não é o da ação viável, nem o da esperança mas, antes, a sombra do tempo, ela própria sombra de uma mão deslizando irrealmente para um objeto convertido em sua sombra. Essa mão experimenta, em certos momentos, uma enorme necessidade de agarrar: ela deve agarrar o lápis, tem de fazê-lo, é uma ordem, uma exigência imperiosa. Fenômeno conhecido sob o nome de preensão persecutória .425

Não obstante a perseguição e o desejo de retomar o lápis, essa mão parece não querer dar fim ao trabalho; ela quer a escrita sempre presente.

Porém, a partir do desejo pelo poema total não escrito, a Preensão

persecutória ronda Henriqueta, pois o fascínio pela escrita apenas como imagem se

apresenta sempre prestes a fazer parar a sua mão doente . O que é esse fascínio, para Blanchot?

O fascínio é o olhar da solidão, o olhar do incessante e do interminável, em que a cegueira ainda é visão, visão que já não é possibilidade de ver, mas impossibilidade de não ver, a impossibilidade que se faz ver, que persevera – sempre e sempre – numa visão que não finda: olhar morto, olhar convertido no fantasma de uma visão eterna.426

Poderia exemplificar essas reflexões de Blanchot também por meio de uma metáfora. Metáfora borgiana. Refiro-me a Jorge Luis Borges e o seu conto O livro de areia .427 Interessante é articular aqui tanto o que Borges pontua enquanto metáfora

como seu pensamento a respeito da literatura, o que ele expressa por meio de contos como O Aleph ou A biblioteca de Babel , bem como nos contos do Livro de areia. Para ele, a literatura é o espaço heterogêneo da totalidade onde o escritor e o leitor ampliam seus espaços geográficos, ideológicos e estéticos por meio de mitos como a biblioteca, os labirintos, os duplos, os espelhos, ideias abordadas por Ana Cristina Cesar e analisadas no Capítulo 1 desta tese – Escrita do mito, mito da escrita .

425

BLANCHOT. O espaço literário, p. 15.

426BLANCHOT. O espaço literário, p. 23. 427BORGES. O livro de areia, p. 111-116.

199 Penso O livro de areia como o mito da escrita. Mito que persegue o ser humano em seu desejo de completude; esse livro não passa de um mito, construído por meio da escrita – essa capaz de fazer aparecer e desaparecer todos os objetos.

Trata-se de uma narrativa sobre um livro que desaparece enquanto tal (e) cede lugar à obra infinita que, paradoxalmente, é o próprio livro de areia. O livro parece conter todos os assuntos, todas as histórias do mundo. Se o leitor/narrador abre uma página e depois tenta voltar nela, não a encontra. O número da página já mudou, é outro, e o assunto também. O narrador, de posse do livro que o inquieta e que o deixava insone, resolve escondê-lo de qualquer pessoa – inclusive dele próprio. Vai à Biblioteca Nacional e esconde-o no ponto mais escuro e obscuro, onde ficam apenas mapas. Ponto mais escuro e também mais claro. Afinal, haveria maior clareza na localização de um lugar, um endereço, que em um mapa? Perdida fica a obra na Biblioteca Nacional, lugar do saber e do conhecimento de uma nação, lugar onde se guarda, acolhe, recolhe, junta, colecionam-se livros e mais livros.

É nesse lugar, nesta obra infinita que é uma biblioteca nacional, onde não se pode pensar que tudo está completo e para onde sempre se adquirem mais livros, amontoam-se milhões de palavras – em si mesmas inúteis, silenciosas – que se renovam a cada instante, e reencontram-se teorias, acrescentam-se dados, subtraem- se ideias obsoletas. Estranhamente o livro faz mal ao narrador que quer livrar-se dele. Embora o ser humano busque o todo, quando com ele se depara, sente-se como a morrer. É nesse lugar, em um entrelugar – o dos mapas –, que o narrador esconde, oculta o livro de areia , no vazio silencioso do fundo da biblioteca, lugar ideal porque é aí em que ele se encontra com a biblioteca infinita – por ele representada.

A Preensão persecutória se faz presente para o narrador que, apavorado pela impossibilidade de absorver todo o saber do mundo, livra-se dele. Ultrapassa, ainda, os limites da ficção, imbricando-se pela vida do escritor que, anos depois, encontra-se impedido de escrever pela cegueira que o acomete.

Ocioso, então, da mão doente , pois que cego, passeia pelos corredores da Biblioteca Nacional da Argentina, de onde já havia sido funcionário anos atrás. Entre corredores lotados de prateleiras e mais prateleiras de livros, algo o persegue, o inquieta, quer tomá-lo. A mão que escrevia – a mão doente – agora é impedida pelos olhos que não veem (a mão que não escreve, aquela representante da Preensão

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persecutória). No entanto, se a sua cegueira fez o papel de Preensão persecutória (em

lugar da mão que não escreve), a obra, no entanto, ainda exige dele, ainda o chama e ele não pode parar. A exigência da obra não o dispensa. Mentalmente, e enquanto passeia entre os corredores, Borges escreve muito ainda. Ele só precisava de alguém – um secretário? – para colocar no papel os seus poemas. E toma a mão de alguém emprestada.

E Borges continua a escrever infinitamente a obra. Assim como Mallarmé e seu livro absoluto, ele não precisa da mão, esse membro do seu corpo físico. E nem dos olhos. Da visão, sim. Visão do infinito da escrita. Essa visão exerce o papel da mão doente .

Maurice Blanchot não foi um psicanalista, porém sua obra dialoga – em vários momentos – com a psicanálise. Quando analisa a questão de Mallarmé em relação à escrita, chega à conclusão de que aquilo que não pode parar de falar em Mallarmé necessita de silêncio para que sobrevenham os ecos e, por isso, o poeta se cala na escrita de seu livro absoluto .

Assim como Borges, Ana Cristina Cesar viveu também à mercê dessa força – potência do sensível –, sempre ameaçada pela Preensão persecutória, essa Pulsão de

morte que invoca o silêncio da sua fala em um encontro marcado.